São 2h30 e Maristela Sacramento, 41 anos, já está na rodoviária de Salinas da Margarida, com 70 quilos de marisco. O destino, a 74 quilômetros, é o Mercado do Peixe de Água de Meninos, em Salvador, onde ela venderá a mariscagem dos últimos dias. O ônibus chega e ela é uma das primeiras a entrar. A maioria das passageiras é marisqueira e o coletivo logo adquire um odor de moluscos. Acompanhada da irmã, Dinorá, Maristela se aninha para um cochilo. A manhã está apenas no início.

Demitidas de seus empregos ou impedidas de praticar suas antigas atividades, mulheres começaram a mariscar na Baía de Todos-os-Santos (BTS). Os pontos de mariscagem ficaram mais cheios desde o início da pandemia, em março de 2020. Elas passam de seis a dez horas trabalhando, ensopadas de água e sal ou entre galhos, para ter uma fonte de proteína na mesa ou vender o quilo do marisco por R$ 17.

É o caso de Maristela, que era dona de um bar em Salvador, mas retornou com a filha de oito anos para Salinas, e à mariscagem, em janeiro deste ano. Depois de sofrer um infarto, a rotina de trabalho ficou mais pesada, e as dificuldades da pandemia, que já trazia dívida, se somaram ao problema de saúde. Não teve outro jeito, senão voltar para a terra natal. “Não tinha como continuar com o bar”.

Depois do trajeto de ônibus para Salvador, Maristela e Dinorá tomam o ferry-boat das 5h, o primeiro do dia. A viagem, repetida às quartas e sábados, dura três horas. Em terra firme, elas vendem mariscos no Mercado do Peixe. A irmã, Dinorá, agenda os clientes na véspera e termina o trabalho mais cedo. Já Maristela demora mais para zerar o estoque. Está na fase de cativar os clientes, mostrar que seu produto é de qualidade.

Nos 16 municípios margeados pela Baía, a renda média é de R$ 1,1 mil - um salário-mínimo, calcula o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já as 30 mil mulheres que, em média, sobrevivem da mariscagem nas cidades fronteiriças à BTS têm um rendimento mensal de R$ 550, segundo a Bahia Pesca, órgão estadual responsável por fomentar a aquicultura e a pesca. Em todas essas cidades há mulheres que se declaram marisqueiras.

“Minha renda é a maré... mas não vou mentir, não queria estar fazendo isso”, diz Maristela. Em abril, quando voltou a mariscar, ela tinha completado 25 anos longe da atividade. Mesmo depois de tanto tempo, Maristela não esqueceu os movimentos da mariscagem, essa dança das mãos transmitida a cada geração de mulheres que vivem cercadas pela BTS.

Nesse intervalo de mais de duas décadas afastada da mariscagem, trabalhou como empregada doméstica, cozinheira e, por último, dona de um restaurante no Alto do Cabrito, no Subúrbio de Salvador. Lá, o carro-chefe era o camarão, que comprava de marisqueiras de Salinas.

“A gente percebe o retorno de mulheres com origens pescadoras a essa atividade. Mulheres que até viviam em outros lugares, mas precisaram voltar para os interiores”, diz Eliana Carla Ramos, coordenadora de Promoção Social da Bahia Pesca. Como não precisam de um grande investimento financeiro para trabalhar, nem de autorização especial para exercer a atividade, esse retorno fica mais simples. Um saco, um balde e disposição física são o suficiente para mariscar.

A família de Maristela tem uma tradição pesqueira que passa de pai para filho e de mãe para a filha. A mãe dela é marisqueira aposentada. O pai, pescador. Quando a maré está boa, Maristela madruga e vai a pé, com Dinorá, para o mangue do Espigão. A atividade, entre galhos, resulta em cortes nos braços. Em Maristela, eles demoram a cicatrizar, pois ela tem diabetes, doença que prejudica a cicatrização.

No antigo bar de Maristela, hoje funciona um depósito de bebidas. Três meses depois de desembarcar em Salinas, ela voltou a mariscar, numa madrugada chuvosa de abril. Naquele dia, mariscou três quilos de chumbinho. Durante a pandemia, o único programa de assistência voltado para as marisqueiras, enquanto classe trabalhadora, foi a distribuição de máscaras, álcool em gel e cartilhas de informação sobre a covid-19 promovida pela Bahia Pesca.

A MARISCAGEM TEM FATORES DE RISCO

Depois de quatro horas de trabalho em Salvador, Maristela e a irmã fazem o caminho inverso para casa. Estão cansadas do dia de trabalho, mas amanhã retornarão ao mangue do Espigão, em Salinas. No fim do mês, ela ganha R$ 600. “Estou mariscando à base de remédio (relaxante muscular e antiflamatório)”, conta. A mariscagem exige uma rotina de trabalho que ela havia se esquecido, mas inclui catar, limpar, guardar, vender e doer.  

A mariscagem impõe riscos à saúde das mulheres que repetem movimentos em todo o processo de trabalho, do catar ao vender, explica o médico e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Paulo Pena. Ele pesquisa doenças ocupacionais em comunidades pesqueiras. "São movimentos repetitivos que duram muitas horas. Tudo isso causa uma sobrecarga no sistema músculo-esquelético", explica.

Os fatores de risco não são só os movimentos, como a postura durante o trabalho, que provoca dores na coluna, e o sol sob o qual mariscam. O analgésico vira rotina sem a devida prescrição médica e o câncer de pele é outro risco para o futuro. "Isso [tomar remédio] é para suportar o trabalho". Enquanto trabalham, as marisqueiras tentam não racionalizar a dor.

A rotina de Maristela se aplica a outras mulheres que se espalham pelos mares e mangues. No bairro da Ribeira, em Salvador, depois de uma noite de lua cheia, centenas de mulheres chegam com a vazante da maré. Esse é o momento mais apropriado para a atividade, quando o mar desce e as coroas (bancos de mariscos) estão descobertas. Nessa época, onde os olhos podem alcançar, há marisqueiras agachadas ou sentadas.

Faz quatro horas que Talita Conceição, 36 anos, está sentada sobre a água, que não ultrapassa os calcanhares. Ela era manicure, mas perdeu as clientes e voltou para o mar. O recipiente que ela levou para o dia de trabalho vai à metade de mariscos. A partir das 8h, mulheres como ela começam a chegar e disputam, silenciosamente, o espaço. Conforme o mar seca, elas mudam de lugar para catar o que a maré deixou. As marcas desse fluxo, que dura de seis a oito horas, ficam gravadas na areia seca. No fim da manhã, o peso do trabalho é sentido por Talita, que remedia a dor na coluna ao chegar em casa.

Em Salvador, a BTS banha alguns dos bairros mais pobres, não por acaso onde estão concentrados os pontos de marisco, entre a Cidade Baixa e o Subúrbio Ferroviário. Na Ribeira, um deles e onde Talita mora e marisca, o rendimento médio da população em geral era de R$ 679 em 2010, estima o IBGE. Entre os quatro bairros com menor rendimento da capital baiana, aparecem a Ilha de Maré, na antepenúltima posição, e Ilha dos Frades, na última. Cada morador dessas penínsulas ganha R$ 246 por mês.

Às 11h, o mar da Ribeira já está tomado por marisqueiras. A maioria é negra, como Maristela e Talita. No último censo do IBGE, 80% da população da BTS se autodeclararam pretos ou pardos. As marisqueiras levam comidas secas - como pacotes de biscoito - e uma garrafa de água para passar o dia. Como carregarão os mariscos sobre a cabeça ou a bordo de uma bicicleta no retorno para casa, quanto menos peso levarem, menos custoso é o transporte. Para economizarem, elas vão e voltam a pé.

Parece que o dia é de sorte para Talita, que acaba de encontrar uma lambreta, do tamanho do palmo da mão. “É rara”, ela diz. O mais comum é encher os baldes do marisco conhecido como papa-fumo, bebe-fumo ou chumbinho. Esse cesto, depois de limpo, raramente ultrapassa o quilo, que é vendido a R$ 17, ou alimenta as próprias marisqueiras. Nem sempre a venda compensa, e o marisco é uma garantia de comida na mesa, numa época de mais insegurança alimentar. A realidade da fome ainda não é devidamente mapeada pelas estatísticas, por estado brasileiro.

O LUGAR DAS CRIANÇAS

Existe uma preocupação com a intensidade do consumo desses moluscos. Esses organismos têm capacidade de habitar ambientes contaminados por metais e compostos orgânicos são bons indicadores da qualidade do ambiente. A adaptação, no entanto, tem seus custos, e essas espécies acumulam contaminantes em si.

Por isso, o consumo deles pode causar riscos às populações que têm os moluscos como a principal fonte de proteína ao longo de toda a vida, como as marisqueiras.

Três estudos do grupo de pesquisa de Vanessa Hatje, doutora em Oceanografia Química pela Universidade de Sidney e professora da Ufba, publicados entre 2020 e 2021, mostram que a contaminação de frutos do mar da BTS existe e varia conforme a região e o contaminante. Ela estuda poluição marinha na BTS há 18 anos.

"Em termos de contaminação, o sururu e chumbinho [dois dos mariscos mais coletados na BTS] estão contaminados principalmente na região próxima à Refinaria Landulpho Alves (RLAM) e do estuário do Rio Subaé, devido às atividades industriais, de refino de petróleo e esgotos domésticos".

Hoje, os mariscos são a proteína principal na mesa da família da marisqueira Talita. Nada do que ela marisca é vendido. Os filhos dela não gostam do sabor, mas nem sempre dá para escolher. Não há idade comum entre as marisqueiras no horizonte, na Ribeira. Há de adultas e idosas a crianças que acompanham as mães e reproduzirão a mariscagem, no futuro, sempre que precisarem. A pobreza nos arredores da BTS, como se vê, também reflete o trabalho infantil.

No Brasil, o termo "trabalho infantil" se refere às atividades econômicas e de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, realizadas por crianças ou adolescentes em idade inferior a 16 anos - exceto em condição de menor aprendiz. No caso dos filhos e filhas das marisqueiras que acompanham familiares, no entanto, há ressalvas a fazer, acredita Antônio Inocêncio, auditor-fiscal do Trabalho que coordena a fiscalização de combate ao trabalho infantil na Superintendência Regional de Trabalho na Bahia (SRT) e preside o Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Adolescente Trabalhador (Fetipa).

"O limite entre transmissão cultural e trabalho infantil realmente às vezes é tênue. É necessário observar a rotina da família, a atividade desenvolvida, vida escolar da criança e momento de lazer dessa criança", diz.

BTS SEMPRE FOI 'REFÚGIO'

No perímetro que Talita escolheu para mariscar, à margem da Avenida Beira-Mar da Ribeira, há pelo menos outras 20 mulheres. Elas não conversam entre si. O trabalho exige concentração e movimentos repetitivos. "Aprendi a mariscar com minha mãe, que me trazia quando eu tinha uns sete anos", recorda Talita.

A Baía sempre figurou como um “refúgio a populações que sofrem negações de várias formas”, diz Gal Meirelles, doutora em Cultura e Sociedade pela Ufba e professora do Instituto Federal da Bahia, em Santo Amaro. Em regiões mais pobres margeadas pela BTS, há um clima pesqueiro e as pessoas, como ditar a necessidade, aprendem a conhecer o mar e os mangues.

Se forem homens, dominarão a pesca. Se mulheres, aprenderão a mariscar, trabalho que acumulam com os ofícios de dona de casa e mãe. Essa dupla jornada justifica, em parte, o porquê de as mulheres ficarem mais em terra firme, onde dão mariscos. Para cuidar dos filhos e do lar, é preciso ficar mais perto do chão. Tanto Maristela quanto Talita criam seus filhos sozinhas.

O mar de águas tranquilas e os estuários da BTS são uma garantia mínima de “liberdade, de dignidade da humanidade”, aponta Meirelles. “A mariscagem, esse trabalho físico, é visto como a última fronteira, todas as mulheres estão ali como último recurso. Elas sabem que é a garantia para manter a segurança alimentar de sua família”, explica a professora. Na pandemia, o fechamento de postos de trabalho contribuiu para atrair mais mulheres de volta à atividade.

Na Bahia, 560.342 pessoas foram demitidas de seus trabalhos formais, com carteira assinada, em 2020, contra 551.141 contratadas, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados. Nos municípios da BTS, 7.489 pessoas perderam seus trabalhos. O número apenas ilustra o desemprego, já que boa parte das atuais marisqueiras vivia na informalidade antes da pandemia.

Depois de quatro horas no mar, o balde de Ivonete Cristina da Silva, 56, está mais vazio que o de Talita. Há seis dias, inclusive sábado e domingo, ela sai de casa, em Massaranduba, para mariscar. Dispensada das duas casas onde faxinava, a opção foi o mar. Ivonete precisará ficar mais tempo, porque o marisco não garante só sua alimentação como a renda do mês, que varia de R$ 500 a R$ 700. Na porta de casa, ela vende os mariscos do dia.

“É minha única renda. Na pandemia, ninguém quer mais que a gente vá na casa dos outros”, diz Ivonete, mãe de três filhos já adultos. Quando não vendem os mariscos na própria vizinhança, as marisqueiras comercializam em feiras. Em Salvador, os principais pontos são o Mercado do Peixe e a Feira de São Joaquim.

MULHERES ESCRAVIZADAS MARISCAVAM NA COLÔNIA

As mulheres negras escravizadas que viviam margeadas pela BTS aprenderam a mariscar para atender aos desejos dos seus senhores e, de certa forma, garantir sua subsistência. Com o fim, no papel, da escravidão no Brasil, em 1888, essas mulheres aprenderam a conhecer a maré e os estágios da lua para não se submeterem a uma “nova escravidão” - embora muitas delas tenham tido esse destino, como empregadas domésticas, por exemplo.

“Foi um dilema que essas populações viveram: submeter-se à nova escravidão ou garantir o sustento da família de uma outra forma”, pontua o historiador e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Wellington Castelucci. Ao voltarem para o mar e para os mangues da BTS, essas mulheres remontam ao passado.

Não é necessariamente só a falta de opção que sempre guia a escolha pela mariscagem, acredita Wellington. Mas, “procurar uma forma de trabalho autônomo que não a exponha ainda mais exploração", diz o historiador. “Existem depoimentos de mulheres que preferem continuar mariscando que trabalhar sob as amarras de alguém, nessa ‘nova escravidão”, contextualiza Castelucci.

A mãe de Edileide Bispo, 35, foi a primeira mulher do distrito de Acupe, em Santo Amaro, a ter um freezer para conservar os mariscos. “Desde criança, marisco com minha avó, que aprendeu com a mãe dela, e minhas tias”, lembra Edileide. Na infância, ela achava que mariscar era brincadeira. Logo viu que estava errada. “Quando tinha os trabalhos de escola, precisava de cartolina, lápis de cor, eu ia para a maré para conseguir comprar. Aí eu vi que mariscar era trabalho”, conta.

Edileide é professora desde 2015, mas, em 2020, o contrato dela na escola municipal não foi renovado. No intervalo até retornar à mariscagem, em janeiro, abriu uma loja de roupa. Mas a quem vender? "As pessoas estavam sem dinheiro para comprar”, conta. “Se eu não tivesse aprendido a mariscar, o que estaria fazendo?”, pergunta a estudante de Pedagogia da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Ela é, ao mesmo tempo, reflexo da história e minoria. Reproduz a história das mulheres da sua família, quase todas marisqueiras, e tenta um novo futuro.

De um milhão de mulheres que vivem nos arredores da Baía, 368 mil não completaram o ensino fundamental e 153 mil concluíram a graduação, segundo o IBGE.

Enquanto Edileide está no mar, a filha dela fica em casa. Lisa acompanha a mãe em situações raras e encara os dias na maré como brincadeira. “A consciência de não querer ser marisqueira nem era minha. Minha mãe sempre trabalhou com isso, mas não queria que a gente vivesse assim”, conta Edileide.

Na semana que antecedeu a publicação da reportagem, Edileide e Maristela traçavam novos rumos. Com os dias mais quentes, a mariscagem estava pior e Edileide se dedicava a outras atividades. Maristela planejava seu retorno definitivo para Salvador. Já Talita e Ivonete ainda pensavam em como seria a mariscagem depois da lua cheia.

PUBLICADO EM 30 DE OUTUBRO DE 2021