Do amor ao dia de tragédia

Fernanda Lima*

Praia onde foram colocados os corpos da tragédia do dia 24 de agosto de 2017 é conhecida como Praia do Amor

A água cristalina balança uma pequena embarcação. Poucos nativos passeiam pela faixa de areia no ensolarado dia de inverno. Os únicos barulhos são ou da onda no mar ou dos pássaros rasantes. É um lugar bastante reservado. Por isso mesmo, mais à noite, é geralmente visitado por casais. A Praia da Gamboa tornou-se, então, a Praia do Amor. E assim foi até o fatídico 24 de agosto de 2014, quando virou a embarcação Cavalo Marinho I. Naquele dia, recebeu somente a tristeza de quem chorava a morte dos 19 corpos estendidos, lado a lado, na areia. Tristeza chorada até hoje, um ano depois. 

Os corpos começaram a chegar à praia por volta das 7h30. A maré estava alta, a ventania forte. Na caminhada matinal, Antônio Felisberto Filho, o Fred, avistou os primeiros minutos da tragédia. Saía da Penha, vizinha da Gamboa, quando percebeu. Desde então, passear naquela areia é relembrar o dia 24. 

Praia para onde os corpos foram levados virou memorial silencioso (Foto: Marina Silva/CORREIO)

A água cristalina balança uma pequena embarcação. Poucos nativos passeiam pela faixa de areia no ensolarado dia de inverno. Os únicos barulhos são ou da onda no mar ou dos pássaros rasantes. É um lugar bastante reservado. Por isso mesmo, mais à noite, é geralmente visitado por casais. A Praia da Gamboa tornou-se, então, a Praia do Amor. E assim foi até o fatídico 24 de agosto de 2014, quando virou a embarcação Cavalo Marinho I. Naquele dia, recebeu somente a tristeza de quem chorava a morte dos 19 corpos estendidos, lado a lado, na areia. Tristeza chorada até hoje, um ano depois. 

Os corpos começaram a chegar à praia por volta das 7h30. A maré estava alta, a ventania forte. Na caminhada matinal, Antônio Felisberto Filho, o Fred, avistou os primeiros minutos da tragédia. Saía da Penha, vizinha da Gamboa, quando percebeu. Desde então, passear naquela areia é relembrar o dia 24. 

“O lugar da tragédia é sempre o lugar que mais marca, né? Nunca imaginamos, nunca esperamos essa tragédia não. Inicialmente, até o povo até ficou sem querer voltar aqui”. 

Voltaram. Fred continuou as caminhadas, as casas à beira da praia voltaram a receber os veranistas, os finais de semana voltaram a ser de movimentação. Vizinha à Praia da Penha, muito conhecida pelas casas mais luxuosas, e à Praia do Duro, a mais movimentada de Vera Cruz, a Praia da Gamboa voltou à rotina aos poucos. 

Seu Bibico, 88, acompanhou quase toda fase de popularização da praia.  Já morou mais próximo à faixa de areia e, há anos, vive em uma casa no bairro impulsionado pelo desenvolvimento, a um quilômetro do mar da Gamboa. 

Ele lembra: “Antes, minha comadre, isso aqui tudo era mato [aponta para a porta do fundo da residência, onde se vê um pouco de matagal]. Tudo. Agora não, cresceu muito. A Gamboa foi crescendo para cima. Ficou enorme”. 

O crescimento começa no final da década de 60, conforme conta o professor do Departamento de História da Universidade Federal do Recôncavo (Ufrb), Wellington Castelucci Júnior, com mestrado no processo de urbanização da ilha em um balneário turístico. É com a implantação do ferry-boat, segundo ele, que tem início uma “corrida imobiliária para Ilha”:

“Hoje, os mais jovens têm uma referência de especulação mobiliária na Linha Verde. Isso aconteceu na ilha, lá atrás. Houve um projeto de transformação de ilha em balneário turístico. Depois, nos anos 70, há uma intensificação de pessoas mais ricas indo para Ilha, porque há a montagem de uma infraestrutura para isso”.

Há, também, uma questão geográfica na mola da valorização. A Gamboa, como toda a região de Mar Grande, “foi valorizada pela sua própria proximidade com Salvador”. Antes disso, até, pelo menos, início do século 20, a Gamboa e praias vizinhas eram lembradas como produtoras de Cal. Da rochas calcárias, era extraída a matéria vendida, posteriormente, a Salvador. 

Mas a grande fama da Gamboa, o amor nas areias, ficou. E é lembrada por Seu Bibico: “Eu ia muito namorar ali”, ri do passado. Havia até uma árvore na areia apelidada de Árvore do Amor, onde se escondiam alguns casais. Mas caiu devido às ações do sal e ao vento. 

Numa casa próxima à de Seu Bibico, Dona Branca, 92, também relembrado o passado. A Gamboa era um lugar terminantemente proibido por pais de meninas (escondidas, elas iam). “Agora está assim, né, minha filha, todo mundo vai quando quer. O pai fala uma coisa e a filha responde”, lamenta.

Mansidão


Foram poucos os momentos de agonia na Gamboa até um ano atrás. Os moradores lembram de apenas dois: a queda de um avião bimotor, no dia 22 de janeiro de 2010, e o encalhe de um tubarão, há três anos. 

“Mas tubarão a gente encontra, às vezes. Eu, surfando, já vi”, diz Afonso Santana, fotógrafo e morador da Gamboa. Já a queda do bimotor foi realmente atípica, embora não trágica: ninguém ficou ferido. 

O dia mais movimentado costuma ser um: o primeiro do ano, em festa para Bom Jesus dos Navegantes. “Nessa Gamboa, não tem nem onde passar de tão cheio”, conta Dona Branca, 92. E o espaço da Gamboa, aos poucos, deixou de ser apenas dos brancos e ricos, comemora Dona Branca, ex-cozinheira e ex-marisqueira. Os brancos ficavam com tudo, eram os donos de tudo. Os pretos começaram a ser donos também, aparecer”. 

Afonso Santana, morador da Gamboa (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)

Dona Branca referia-se principalmente à vizinhança da Penha, onde está o mais luxuoso condomínio de casas de Vera Cruz. Seu Bibico relata a ironia: a família Galvão, dona da CL Transporte Marítimo, proprietária da Cavalo Marinho I, ter sido dona (e ser, segundo ele e outros moradores) “a dona da Penha”. “Oh a vida, que ironia”, menciona Bibico. Em 2017, moradores e veranistas da Penha chegaram a propor bloquear a entrada de visitantes no perímetro – ir para lá seria possível apenas pela areia, quando a maré permitisse.

Mas a proposta não seguiu. Gamboa e Penha continuaram separadas apenas por uma linha imaginária. A Gamboa, com extensão litorânea de 1,5 quilômetro, voltou a ser frequentada poucos dias depois da tragédia. Num bar na Gamboa, João Alcântara, 57, comenta a reaproximação rápida: 

Corpos são resgatados do mar e enfileirados em praia na Gamboa (Foto: Marina Silva/CORREIO)

“As coisas passam. Tempo desses mesmo, mataram uma pessoa num banco pertinho daqui [aponta para o banco do lado de fora]. A gente tem que seguir a vida”. 

No Verão passado, período de maior fluxo de turistas na praia, a movimentação habitual do período; neste Verão, a mesma expectativa. Há oito anos, Raimundo Xavier é caseiro de uma casa na Praia da Gamboa. Viu os corpos serem colocados na areia, hoje acompanha a retomada natural das coisas. “Todos estão vindo, como sempre”, falou. O amor segue na Gamboa, mas não sem esquecimento.  

*com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier 

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