Taxista conta como foi sua última corrida como pai de família

Quem perde alguém importante lembra disso em boa parte dos dias que lhe resta na vida. Quem perde um filho lembra disso todos os dias, sem exceção. Quem perde uma família inteira e a todo momento refaz o trajeto que o levou até a cena da tragédia, lembra-se de cada detalhe a todo o instante.

No dia 24 de agosto, Danilo Reis Julião, 28 anos, viveu a dor de quem estava fora da embarcação, em terra firme, e nada podia fazer. Perdeu mulher, o único filho e a sogra no desastre da Cavalo Marinho. Nativo da ilha, pintor de formação, mudou de ramo e virou taxista. A todo momento, faz o trajeto entre Bom Despacho e Mar Grande. O mesmo que percorreu quando foi avisado que uma lancha que saiu cedo da localidade afundou na Baía de Todos os Santos.

Danilo ainda não sabia. Mas, naquele momento, não era mais pai de família, marido ou genro. Havia perdido tudo que construiu. Nada material. Mas, boa parte de sua vida estava naquele barco. Hoje, tem seus pais e uma irmã, além dos amigos. Mas, a Cavalo Marinho levou a família que escolheu para construir o futuro. Por isso, ao refazer todos os dias o mesmo trajeto, não esquece dos momentos de agonia, quando, até ver de perto a cena que jamais pensou assistir, ainda acreditava que esse futuro imaginado pudesse ser possível.

“Eu faço o trajeto que eu fiz da última vez que eu vi minha família praticamente todos os dias. Fui eu que levei eles para pegar a lancha. Então, eu vivo a cena todo santo dia. Não tem como esquecer. O que aconteceu foi o seguinte:

Depoimento de Danilo (taxista)


“Deixei eles em Mar Grande e vim para Bom Despacho. Aí, até antes de saber do ocorrido, dei outra viagem de Bom Despacho até Mar Grande. Quando retornei para Bom Despacho chegou um amigo meu comentando que a esposa havia ligado para ele dizendo que tinha acontecido um acidente com a lancha. Mas não sabia se essa lancha tinha vindo de Salvador ou tinha saído daqui para Salvador. Aí, ele correu e entrou no carro para saber mais informações em Mar Grande. Aí eu disse: ‘peraí que eu também vou’. No meio do caminho a gente já ficou sabendo que tinha sido a lancha de 6h30. Aí, eu já saí ligando pra minha esposa. Dava fora de área e eu já comecei a entrar em desespero. Depois, chegou a informação que tinha sido a de oito. Quando a gente chegou no portão, eu perguntei a um colega meu que trabalha na lancha, o Elvis. Elvis disse que foi a de 6h30. Eu disse: ‘Pô, minha família tava na lancha’. Ele disse: ‘Calma’. Mas eu já estava em desespero. Aí, Elvis: ‘Não, não foi nada constatado ainda’. E eu ligando, ligando, ligando... Só dava fora de área e desligado. Aí fomos no sentido Gamboa. Chegou a informação que as vítimas estavam sendo levadas para a Penha. Um colega pegou a gente no carro e levou até lá. Viemos da Penha até Mar Grande procurando e nada. Ninguém tinha informação. Disseram que tinham levado para a UPA. Fomos lá e não encontramos ninguém. Aí meu telefone tocou. Era uma falsa informação de que minha esposa tinha sido levada para o Hospital de Itaparica junto com meu filho. Quando a gente ia pegar o carro, chegou outra informação dizendo que minha esposa estava na Penha. Aí, a gente ficou na dúvida se ia para um ou para outro. Aí, alguma coisa me avisou: ‘vá para a Penha’. Chegando lá já me deparei com minha esposa já morta. Uma cena que eu não esperava (começa a chorar). Eu perguntava sobre meu filho e minha sogra. Depois, chegou um vizinho dizendo que meu filho estava na Gamboa. A gente veio pela praia procurando. Quando eu fui chegando na praia da Gamboa já tinha vários corpos. Quando olhei para o lado já vi ele no bote. O rapaz trazendo ele... De longe eu reconheci. Entrei na água. Ele não queria deixar, meu eu informei que era meu filho. Aí, ele deixou eu carregar ele.

E até a CL trata como se nada tivesse acontecido. Como se fossem animais que tivessem perdido a vida. A única certeza que eu tenho é que não vai ficar assim. A Justiça vai ter que se feita de uma forma ou de outra. Ou pelo bem ou pelo mal. Falei no Boletim de Ocorrência e vou falar de novo. A vida da minha família não vai ficar por isso mesmo. Isso não existe. Foram 19 vítimas fatais. Conheço muitas pessoas aí que estão traumatizadas. Quem sobreviveu não vai superar. E quem perdeu seus familiares pior ainda.    

É uma coisa que mesmo que eu não fale eu não vou esquecer nunca. Tô tentando seguir, né? Infelizmente, a vida segue com essa dor. Tem que se esforçar ao máximo para conseguir sobreviver com essa perda”.

Voltar para página inicial