É esperado e saudável que os sobreviventes ainda se emocionem ao lembrar do terror que viveram
Em nossa sociedade, aprendemos a evitar e negar nossa relação com a morte. Isto implica em não reconhecer ou minimizar o sofrimento gerado por experiencias de perdas e lutos. Espera-se que as perdas sejam rapidamente superadas e que os sobreviventes reconstruam suas vidas e se adaptem às mudanças. No entanto, este é um processo complexo no qual fatores individuais, sociais, psicológicos e físicos combinam-se de forma imprevisível.
Após tragédias, como a ocorrida com a embarcação Cavalo Marinho I, algumas pessoas, passada a fase de estresse agudo, podem ter diminuição progressiva de sintomas de ansiedade ou depressão produzidos pelo evento e retornar à sua rotina anterior. Nestes casos, é importante que sejam respeitados os limites dos sobreviventes e que a exposição a estímulos potencialmente estressores, como voltar a usar embarcações, se dê de forma segura e gradual.
Outras pessoas podem desenvolver adoecimento psíquico grave. Os sobreviventes, que são tanto as pessoas que estavam na lancha, como seus familiares e amigos que viveram momentos de desespero a espera de notícias e os que participaram do socorro às vítimas, podem desenvolver, dentre outros, o Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e o luto complicado.
O TEPT é provocado pela exposição a uma experiência que ameaça a vida, ou em que há ameaça de danos e ferimentos. Pessoas que sofrem de TEPT relatam medo intenso, horror, choque, desamparo e a sensação de estar revivendo a experiencia ameaçadora em situações específicas. Desta forma, voltar a utilizar embarcações como meio de transporte pode ser aterrorizante para os sobreviventes, pois todo o desespero do naufrágio pode ser revivido de forma intensa.
Outros eventos similares, uma conversa, uma imagem ou lembrança que remetam o sobrevivente ao dia do ocorrido também podem deflagrar a revivência e todas as sensações ruins que a acompanham. O medo de reviver a experiencia traumática pode gerar a necessidade de evitar lugares, pessoas ou atividades que lembrem o acidente. Este padrão de evitação ou esquiva, por sua vez, pode interferir nas relações com as pessoas mais próximas gerando distanciamento afetivo e isolamento social, além disso pode fazer com que o sobrevivente evite buscar ajuda profissional para tratamento.
Os sintomas de TEPT podem durar anos ou, até mesmo, toda a vida se não forem tratados. Os mais comuns estão a irritabilidade, hipervigilância, impaciência e depressão. E estão associados ao abuso de álcool e outras drogas, perturbações do sono, doenças cardiovasculares, obesidade, desemprego e suicídio, por exemplo. Assim, outras formas de adoecimento físico e psicológico podem se desenvolver ao longo do tempo comprometendo toda a vida das pessoas afetadas pelo evento.
Nem todos vão desenvolver TEPT, mas aqueles que, antes do evento traumático, tinham problemas psicológicos pessoais ou familiares considerados graves, as que foram expostas repetidamente a ameaças ao longo da vida (por exemplo: abuso sexual, violência, insegurança alimentar), aqueles que passaram por outros eventos traumáticos avaliados como de difícil resolução tem maior risco de desenvolver este quadro clínico. A boa notícia é que já existem pesquisas e protocolos bem estabelecidos para tratamento do TEPT, portanto um profissional da saúde mental experiente ou uma equipe pode proporcionar um processo psicoterápico de sucesso na maioria dos casos.
É importante lembrar que, na data especial em que se completa 01 ano desta terrível experiência, é esperado e saudável que os sobreviventes ainda se emocionem ao lembrar do terror que viveram, que queiram conversar sobre o assunto ou desejem se recolher, que façam rituais segundo suas crenças pessoais e religiosas, que se lembrem dos que faleceram com saudade e tristeza. Nestes casos, é importante que familiares e amigos ofereçam apoio emocional e confortem o sobrevivente, ouçam respeitosamente e com paciência aguardem que o processo de luto se complete. Deve-se reconhecer e validar o luto desta pessoa pelo tempo que for necessário, afinal houve uma perda relevante para o sobrevivente.
No entanto, devemos prestar atenção e buscar ajuda profissional se o sobrevivente relata sentimento de culpa por alguma omissão ou ação praticada (por exemplo: não impediu que a pessoa pegasse aquela lancha ou contribuiu para o naufrágio ao se proteger da chuva), pensamentos de inutilidade (“Não presto para nada, não consegui salvar aquela mulher”) ou que teria que morrer junto ou no lugar do falecido, ou relata sensações semelhantes ao de afogamento, ou sofrimento tão intenso quanto no dia do naufrágio, sentimento de ruína acompanhado de ideias de suicídio. Neste caso, o sobrevivente pode estar desenvolvendo uma forma complicada de enlutamento que pode piorar com o passar do tempo e trazer riscos a vida se não houver acompanhamento profissional.
Jeane Tavares é psicóloga e professora da UFRB