Infinita como o horizonte

Alexandre Lyrio

Um ano depois, a dor de quem perdeu parentes no naufrágio da Cavalo Marinho
parece sem fim

É como se todos os dias fosse 25 de agosto de 2017. A dona de casa Ana Paula Santana Monteiro, 29 anos, acorda sempre desamparada na data seguinte à tragédia. “A dor é a mesma, o sentimento de indignação e impotência também. Nada mudou!”. Está tudo ali: o chapeuzinho de palha do São João, a banheira e até o casaquinho que ele usava na hora do acidente. A arrumação das roupinhas é a mesma. Há um ano, Ana Paula acordou pela primeira vez sem o pequeno Davi. E todos os dias se tornaram 25 de agosto de 2017.

“É difícil olhar para as coisinhas dele, ver as roupinhas e a banheira. Tá tudo aí. A gente comprou tudo com muito amor, com muita alegria. Como vou doar? Metade do nosso coração se foi. A gente tá pela metade”, disse, reunindo coragem para nos mostrar algumas poucas peças de roupas do menino. Sobre o dia anterior, aquele 24 de agosto, ela relata um desespero ainda maior. Um sentimento duplamente desesperador.

Ana Paula perdeu o filho Davi no naufrágio (Foto: Marina Silva/CORREIO)

É que Ana Paula, sobrevivente do naufrágio, se viu sem os dois filhos no meio do mar. Na hora do acidente, Davi Gabriel, de seis meses, e a irmã Milena, então com 4 anos, caíram na água e desapareceram. Durante as duas horas de espera pelo resgate dentro do mar, Ana Paula não teve qualquer notícia dos filhos.

O silêncio seguiu por algumas horas depois. Ela, a mãe e a irmã (avó e tia das crianças) foram encaminhadas para a UPA de Mar Grande sem saber do paradeiro de Davi e Milena. “Achei que tinha perdido os dois. Foi quando Milena surgiu do nada”, lembra. “Mas, então a senhora não sabe como ela conseguiu se salvar? A senhora tem ideia de como isso aconteceu?”, perguntamos.

“Tenho. Foi Deus! Não tem outra explicação. Ela tava solta no barco e sumiu na água. Deus trouxe ela de volta”, respondeu Ana Paula, que ainda tem Matheus, de 10 anos. “É neles que me seguro. Eles são minha fortaleza hoje”, diz, encarando a filha, um dos poucos motivos dela, de vez em quando, realizar dois atos comuns na vida de qualquer um: sorrir e sair de casa.

Ana Paula, o marido e os dois filhos são moradores do Alto do Riachinho, uma comunidade pobre de Mar Grande. Vivem em uma casa muito humilde, onde sala, cozinha e quartos se confundem e são separados por lençóis. Apesar de tudo, ela se esforçava para dar o melhor para o bebê que havia chegado. Como qualquer mãe, curtia cada evolução, cada passo que ele dava: “Meu filho estava começando a se levantar para andar. Lembro que comentei com meu marido que quando voltasse para casa iria ajeitar a andadeira para ele dar os primeiros passinhos”.

O carinho era tão grande que Ana Paula aprendeu a fazer bolos de aniversário para comemorar cada mês de vida completado por Davi. Dois dias antes da tragédia, teve festa de seis meses. Ana Paula guarda as fotos daquele dia no celular. Na verdade, as comemorações de “mêsaniversário” de Davi lhe deram a chance de ter um meio de sobrevivência, principalmente, com o marido desempregado. Hoje, Ana Paula faz bolos de encomenda. “Esse é o nosso sustento, atualmente. Eu não tenho forças para fazer mais nada”, diz.

Insistência


Tem algo que Ana Paula lamenta o tempo todo em seu depoimento sobre o dia da tragédia. Insiste em um detalhe que a levou a estar naquele barco junto com Davi. Ela estava ali porque queria ouvir de uma médica dermatologista em Salvador que o filho estava bem e que o tratamento dele poderia ser suspenso. “Tratei ele durante dois meses. Eu só queria ouvir dela que era pra suspender o remédio”, conta.

Ana Paula insiste nisso porque é nesse momento que se dá conta da falta de estrutura na Ilha de Itaparica. Foi isso que, na verdade, colocou muita gente naquela embarcação: “As pessoas estavam indo para o médico. Meu filho mesmo estava indo para uma consulta. A gente faz isso porque não tem estrutura aqui na ilha. Não tem médico especialista. A gente precisa fazer isso”.

“A gente pensava que seria uma viagem comum, como as que a gente faz todos os dias. Mas foi aquele pesadelo! Tem que haver melhorias aqui na ilha. A gente não pode depender dessa travessia para ter um médico especialista, gente! Estamos tão perto de Salvador e tão distantes ao mesmo tempo. Que descaso é esse?”, questiona Ana Paula.

Socorrista


A morte de Davi foi praticamente transmitida ao vivo. Já sem qualquer sinal de vida, o menino foi carregado por um socorrista do Samu. O mais novo dos 19 mortos era um bebê de apenas 6 meses e todos se chocavam com aquela cena que ia ao ar na TV e saía nos sites e no jornal. Talvez, a imagem mais marcante daquela tragédia. Por isso, o técnico de enfermagem Jaelinton Assis foi um dos heróis naquele dia. Um herói que não conseguiu atingir o seu objetivo final: salvar o pequeno Davi. Mas, não menos herói por isso. “Por mais situações que a gente pegue no Samu, isso realmente comoveu”, disse, na época, em frente ao terminal marítimo de Salvador, mais de 24 horas depois do acidente na baía. No trajeto do barco até a unidade móvel do Samu, Jaelinton carregou o peso de uma vida inteira pela frente. “A cena em si diz tudo, né?”, resumiu.

Ana Paula conta que, sem qualquer tipo de holofote, Jaelinton apareceu um dia em sua casa. “Ele esteve aqui para me dar um abraço. Agradeci muito o esforço dele e da equipe de salvamento”, conta. E revela que assistiu o momento em que a reportagem mostrava Jaelinton carregando seu bebê. “Eu vi tudo na reportagem. Eu só queria dormir e acordar pensando que tudo foi um pesadelo. Mas, aquelas imagens me mostravam que era real”, completa Ana Paula.

Hoje, Ana Paula só enxerga um caminho para ter a sua dor diminuída: a Justiça. “Essa impunidade tá acabando com a gente! Saber que as pessoas (tripulação, comandante e empresa) continuam trabalhando e ganhando dinheiro com esse serviço deixa a gente mal. Aquela lancha tava transportando pessoas. A gente vê hoje tudo do mesmo jeito. E isso dói! Um ano depois e nada mudou?”, indaga.

E continuam os inúmeros questionamentos durante a entrevista de mais de uma hora que concedeu ao CORREIO. “Quer dizer, vai ficar assim? Vai ficar impune? Se a lancha não tinha condições porque estava no mar? Quem vai responder por isso?”, perguntava, sem parar. Enquanto não tiver essas respostas, Ana Paula só enxerga uma maneira de viver: “A gente vive um dia de cada vez”. Um dia de cada vez. Ainda que todos esses dias sejam iguais a 25 de agosto de 2017.

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