Os heróis anônimos

João Gabriel Galdea

Moradores que salvaram dezenas de vidas dispensam rótulo: ‘era obrigação’

A chuva nem assustava tanto, mas o vento e a maré desaconselhavam a pescaria na Praia da Gamboa, na manhã de 24 de agosto do ano passado. Batiam quase 7h e o pescador Orton Bastos, 49 anos, ante o dever frustrado, acabava de avisar a dois primos, parceiros de ofício, que estava indo em casa tomar café. Não era dia de cruzar os arrecifes a serviço. Outro primo, marinheiro, também era avisado da agenda atualizada quando o quarteto familiar percebeu que alguma coisa mais incomum que a manhã sem pesca acontecia. “A gente começou a olhar na praia e viu a lancha vindo, se aproximando, até bater nas pedras”, relembra Orton, que entraria no mar, momentos depois, com uma missão de busca bem diferente da qual estava habituado.

O cronograma daquela quinta-feira também foi modificado, de repente, para o caseiro Jailson Carvalho, 40, que a princípio tinha apenas uma obrigação a cumprir. “Minha sogra me chamou, numa casa que ela toma conta, e pediu pra eu apagar a luz da casa. Aí eu parei e tinha um rapaz olhando (pro mar). Eu perguntei (o que ocorria) e ele respondeu que era uma embarcação que saiu pra pescar. Aí eu disse: ‘oxente, como é que sai pra pescar com um mar desse?’” Dez minutos depois, Jai estava a bordo do primeiro barquinho a alcançar a lancha Cavalo Marinho I, que levava 120 pessoas a bordo, a caminho de Salvador. O itinerário dela também estava alterado e o destino de 19 pessoas selado para nunca mais.

Um ano depois, pescadores e caseiros relembram drama para retirar vítimas da Cavalo Marinho I (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Mas para Jai e Orton, hoje profetas do ocorrido, a coisa teria sido muito pior não fosse a ação rápida dele e de outros caseiros e pescadores, principalmente. "Ia ter bem mais que o dobro de mortos", estima Jai. "Quando o Samu chegou, foi só pra socorrer os feridos (na praia). A gente já tinha tirado até os corpos", comenta Orton, após mencionar que o resgate oficial só chegou quando já era tarde demais.

“Quase uma hora depois veio o helicóptero (do Graer). O rapaz desceu pela corda, perguntou pra a gente se tinha sobrevivente, dissemos que não, e ele autorizou tirar os corpos. Levamos os mortos dentro dos barquinhos e fomos colocando na praia”, conta Orton, que rejeita o rótulo de paladino. “Ninguém quer ser herói em uma situação como essa. Me considero uma pessoa voluntária, apenas”.

Jai e outros caseiros que participaram do resgate também abdicam dessa reputação. "Era nossa obrigação. Se a gente não tomasse uma atitude ia se sentir mal”, comenta o caseiro Leandro Souza, 31, que chegou à Cavalo Marinho I no segundo barco de alumínio, tipo lambari, que saiu nas primeiras viagens com os mais desesperados e machucados.

O carpinteiro Juarez dos Anjos Silva, 44, que contabiliza mais de 15 sobreviventes e nove corpos resgatados com seu auxílio, conta que a ação rápida dos caseiros foi o que evitou tragédia muito maior. “As embarcações usadas no resgate eram dos veranistas, dos barões da praia, que os caseiros têm acesso", lembra o morador, que também dispensa louvores: "eu me considero uma pessoa que cumpriu o seu dever."

Entre os caseiros que partiram para a água nos barcos dos barões estava Delmir Borges, 27, que também faz a conta de vidas que ajudou a poupar. “A gente salvou muito mais de 15 pessoas. Não dá nem pra contar", afirma. O colega Erivelton Júnior, 25, destaca a dificuldade em cumprir a missão. “O desespero era grande. Tinha gente que a água tava no joelho (em cima dos arrecifes), e tava achando que tava fundo, que ia morrer afogado”, recorda o caseiro.

“O pessoal não aguentava mais, tava cansado. Tinha muita gente com os lábios roxos, com hipotermia, com braço quebrado”, complementa Leandro, destacando que a ação de muitos passageiros e tripulantes também foi indispensável para evitar mais perdas.

DESESPERO


Apesar do esforço de quem estava e quem chegava para acalmar os mais aflitos, os ‘heróis da Gamboa’ e da própria lancha não tiveram sucesso em alguns momentos, como relata o pescador Orton. “Eu lembro bem de uma mulher que a gente ficou falando pra ela não pular, que a gente ia pegar ela, mas, no desespero, ela pulou na água e a onda levou”. O caseiro Leandro relata o destino trágico: “no que ela caiu na água, a onda arrastou, ela bateu nas pedras e morreu ali mesmo”.

Por pouco a ambulante Josiene Ramos de Souza, 45, não teve destino semelhante. Só foi diferente porque ela, que não sabe nadar, seguiu à risca a orientação de outro passageiro. “Eu lembro que quando começou a chover, me levantei, cheguei um pouquinho pro lado, depois disso só ouvi duas vozes. Uma gritou 'ai, meu Deus!', e outra gritou 'vai virar!". Depois disso foi um segundo e eu já tava lá no fundo. (...) Quando Jesus me trouxe à tona, pra respirar, esse rapaz segurou na minha mão e disse: 'moça, segure nesse bote e não solte por nada’”, diz ela, que seguiu a orientação e hoje, não sabe bem por que, até ri da situação. Só não sabe o nome do rapaz que a livrou da morte.

“Eu sei quem é a pessoa. Um jovem, mas não sei o nome. Foi Jesus que botou aquele rapaz lá”, comenta Josiene, que tinha na programação daquele dia uma visita ao filho, então recluso no Presídio Salvador, e compras para abastecer a banca ao lado da UPA de Mar Grande, para onde nem precisou ser socorrida, um ano antes. “Só tive um arranhão na mão”.

NÃO DÁ PRA ESQUECER

Feitos os resgates dos feridos ou em situação de perigo (duas pessoas chegaram a ser levadas de helicóptero), era hora de retirar os corpos da lancha. A conta de quantos estavam por lá, na hora, também pela confusão do momento, é variada na memória dos moradores.

Um ano depois, pescadores e caseiros relembram drama para retirar vítimas da Cavalo Marinho I (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Na cabeça de Jai – que calcula sete minutos entre a hora que percebeu o acidente, colocou o motor no barco do patrão e chegou na lancha –, o número de corpos no local ainda é incerto, “talvez nove”.

“Eu, André e Neguinho descemos (no convés) e vimos que tava todo mundo morto. (...) André ainda tirou uma criança, que parecia que tava viva, mas também faleceu. E teve outro menino (dentro da lancha) que morreu nos braços da mãe”, diz ele, sobre as cenas que, desde o dia do acidente, não comentava. “É a primeira vez que falo sobre o assunto, nunca dei entrevista, e ainda assim não me sinto à vontade”, comenta, ao expor o próprio trauma.

O pescador Orton parece mais preciso na contagem funesta. “Em cima dos arrecifes tinham duas mulheres, duas senhoras e um menino. E dentro tinham nove (corpos)”. O restante o mar levou e devolveu já sem vida.

Na conta do carpinteiro Juarez, cerca de 30 barcos e, certamente, mais de 100 pessoas participaram da ajuda à Cavalo Marinho I. “Tinha barcos de pescadores, veranistas, moradores. Todo mundo tentando ajudar. Essa praia ficou parecendo formigueiro, parecia estádio de futebol”, compara o morador, ao citar outros vizinhos e heróis anônimos, que certamente negariam a legenda na Gamboa.

Naquele dia de rotinas quebradas, de vidas apagadas e outras tantas poupadas, Jai, o primeiro a chegar para o resgate, sai e esquece acesa a luz da esperança de que nada parecido volte a acontecer um dia.

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