A espera por justiça
Júlia Vigné
Nenhum culpado condenado e a angústia de 120 famílias. Esse é o saldo da tragédia de Mar Grande. A dor de quem perdeu parentes e de quem sobreviveu ao naufrágio da lancha Cavalo Marinho I pode se estender por, pelo menos, mais seis anos, prazo mínimo considerado por advogados para que os mais de 90 processos ingressados na Justiça sejam julgados.
A procura é por uma resposta, um conforto e um ponto final para tudo o que ocorreu no naufrágio. Com quase um processo para cada sobrevivente, as 95 ações mapeadas pelo CORREIO contam muito sobre a história desse primeiro ano. A divergência de entendimento quanto a quem deve ser responsabilizado é um exemplo. Pelo menos 11 réus diferentes foram identificados pela reportagem nos processos.
Além da CL Empreendimentos LTDA, empresa dona da embarcação - que realiza a travessia - e seu dono; tem a Marinha; o Estado da Bahia; a Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transporte e Comunicação da Bahia (Agerba); a Associação dos Transportadores Marítimos da Bahia (Astramab); o Centro Náutico da Bahia; a Socicam Administração, Projetos e Representações LTDA; a Superintendência de Desportos do Estado da Bahia (Sudesb) e a Vera Cruz Transportes Marítimos LTDA, também colocados no banco dos réus.
Foram mapeados 43 processos de autoria da Defensoria Pública do Estado (DPE), 20 ações da Defensoria Pública da União (DPU), duas do Ministério Público da Bahia (MP-BA) e pelo menos 30 processos de advogados particulares, sendo 22 de um único escritório de advocacia. Os processos pedem indenização moral, material e pensão vitalícia para sobreviventes e familiares de vítimas do naufrágio e estão nos âmbitos cíveis e criminais. As ações correm tanto no Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) como no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
Durante esse período, mais de 30 audiências de conciliação foram realizadas somente pela DPE, mas não tiveram resultado. Tentativas de chegar a um acordo também foram feitas por alguns advogados particulares. A DPU, o MP e o escritório de advocacia - que concentra 22 ações - não utilizaram essa estratégia. A Defensoria estadual pede, para cada um, até R$ 200 mil em indenizações. Os outros órgãos não informaram os valores pedidos, mas afirmaram que as quantias variam de acordo com cada caso.
Os esforços por garantias de direitos foram diversos. O MP chegou a pedir suspensão da travessia entre os municípios e a cassação dos contratos das empresas que operam entre Salvador e Mar Grande. Os pedidos foram negados pela Justiça; os órgãos recorreram.
A DPE conseguiu na última terça-feira (21) a penhora das cotas sociais do dono da CL Empreendimentos LTDA, Lívio Garcia Galvão Bueno, concedida pelo juiz Maurício Lima de Oliveira, da 16ª Vara de Relações de Consumo de Salvador. A Defensoria estadual identificou outras três empresas em que Lívio é sócio. A medida de penhora foi realizada pela impossibilidade de depósito judicial de 5% da renda líquida mensal conseguida pela empresa com a venda de bilhetes de transporte marítimo de passageiros.
Apesar dos 95 processos – todos cíveis – estarem em andamento na Justiça, alguns deles começaram a ser congelados (suspensos) por um período de 60 dias. O advogado especialista em Direito Marítimo, Zilan Costa e Silva, explica que o artigo 313, inciso VII, do Código Processual Cível, prevê a possibilidade de suspensão de processos quando se discute acidente de competência do Tribunal Marítimo. “Isso é uma questão prejudicial externa, ou seja, a razão de ser de determinada coisa depende de conclusão externa. No caso, as ações dependem da conclusão do processo no Tribunal Marítimo”.
A competência para ingressar com ação criminal é do Ministério Público da Bahia (MP-BA), que aguarda diligências da delegacia de polícia para oferecer denúncia. “As questões criminais não serão obrigatoriamente suspensas (embora devessem pelo mesmo princípio), mas o Código de Processo Penal, que é da década de 40 do século XX, não contém essa determinação”, frisou.
Investigação da Marinha
Além de todo o emaranhado de processos existentes na Justiça, a Marinha também abriu um processo administrativo para apurar o acidente, após o inquérito que foi concluído em janeiro deste ano. O processo foi aberto no Tribunal Marítimo, que funciona no Rio de Janeiro. A Corte tem a jurisdição para julgar as responsabilidades pelo acidente. O processo possui caráter administrativo e não excluiu a possibilidade de responsabilização nas esferas penal e cível. No inquérito, foram considerados responsáveis o engenheiro técnico e o dono da empresa, por negligência, além do comandante da embarcação, por imprudência. Além disso, foi indicado que a embarcação não tinha condições de navegabilidade e que havia pesos soltos no convés da embarcação. Após sua conclusão, o inquérito foi encaminhado para o Ministério Público da Bahia.
Caso os indiciados sejam condenados pelo Tribunal Marítimo, eles poderão receber penalidades administrativas, como repreensão, medida educativa, suspensão de pessoal marítimo, interdição para o exercício de função, cancelamento da matrícula profissional, proibição ou suspensão do tráfego da embarcação, cancelamento do registro de armador, além de multa.
O processo encontra-se na fase de vista à Procuradoria Especial da Marinha (PEM), que poderá representar em face de quem acreditar ter dado causa ao acidente. O processo no Tribunal Marítimo poderá receber recursos. O prazo para julgamento não foi informado.
Paralelo ao inquérito e processo administrativo, a Marinha continuou com suas ações de inspeção naval. Através dela, três lanchas que fazem a travessia de Salvador-Mar Grande foram colocadas fora de operação temporariamente durante este ano. Neste momento, a Cavalo Marinho III está impedida de trafegar desde o dia 2 de agosto.
O Ministério Público Federal investiga uma possível responsabilização da Marinha no acidente através de um inquérito civil. Já o Ministério Público da Bahia possui um inquérito aberto. Nele, uma primeira versão do inquérito policial, realizado pela Delegacia de Polícia de Vera Cruz, foi recebido pelo promotor Ubirajara Fadigas, da 2ª Promotoria de Justiça em Itaparica, em abril deste ano e foi devolvida para realização de novas diligências. A promotoria aguarda a conclusão dessas atividades para ingressar com uma ação criminal.
Indefinição
Além do processo na DPE, Paulo Sérgio Castro, conhecido como Paulo Pimenta, técnico administrativo do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IML), que sobreviveu ao acidente, também entrou com uma ação movida pelo seu advogado particular. “O grande problema é que a Justiça não dá justiça. Vera Cruz hoje é uma cidade triste e cabreira por conta dessa falta de definição. As lanchas continuam andando como se nada tivesse acontecido. Eu espero justiça para amenizar o nosso sofrimento. Tem gente passando necessidade, dificuldade. É uma perda que nunca mais se recupera, um trauma definitivo. Não tem psicólogo que faça você melhorar”, lamenta.
Apesar do medo que adquiriu de viajar no mar, o transporte marítimo é a única opção para o técnico administrativo, que mora em Vera Cruz e trabalha em Salvador. “Todo dia eu ando de lancha duas vezes. Meu único transporte é a lancha. Imagine nessa época (de inverno) como ela balança. As pessoas vão conversando comigo para me acalmar. Não tem fechar os olhos, nem rezar. São 50 minutos de sofrimento. Cada balançada é um terror. Imagine como fica minha família”, pondera.
A busca por justiça também é o que faz com que a família do aposentado Antônio de Jesus Souza, 68 anos, que foi vítima do naufrágio, movesse dois processos após o acidente. Uma das três filhas, Aline Silva Souza, 34 anos, explica que a resposta da Justiça irá auxiliar principalmente sua mãe, Maria Augusta Domingos Souza, 68, que foi casada com Antônio por mais de 40 anos. “Além da questão financeira, que minha mãe sentiu bastante, ela se prendeu a um sonho do meu pai, que era construir uma casa na ilha”, conta. A residência já estava sendo levantada há seis anos com a renda extra que Antônio conseguia como autônomo. Falta concluir.
Os processos
A atual situação jurídica pode gerar questionamentos sobre a quantidade de processos. Para o advogado especialista em Direito Marítimo, Zilan Costa e Silva, no entanto, esse é o esperado. “Entrar com ação é direito de todos. As pessoas podem exercer seus direitos individuais porque tiveram danos distintos e nem todo mundo é igual. Um perdeu a perna, ficou com problema psicológico, perdeu a família… Cada um será indenizado de acordo com seu perfil”, explicou Zilan.
O advogado, que é o único especialista sobre o assunto do estado, ainda opinou sobre os processos que foram abertos. Para ele, a Marinha não deve ser responsabilizada pelo acidente. “Na minha opinião, a Marinha agiu de acordo com a lei. O caminho viável é ir contra a empresa e contra a Agerba em questões específicas, como fiscalização. Eu acredito que é equivocado ir contra a Marinha, que não fez nada de errado. A empresa tem responsabilidade objetiva. Ela faz uma atividade de risco e, por isso, é responsável. Independentemente de ter dolo ou imprudência, ela tem que responder pelo acidente”, opinou.
Ainda para ele, a competência correta seria a estadual. “A Agerba eventualmente pode ser responsabilizada por falha eventual na sua fiscalização da prestação do serviço da concessão. Pode ser punida com relação à prestação, não em relação à navegabilidade”. Zilan acredita que ainda demore mais seis anos para que decisões judiciais comecem a sair.
A seguir, veja a participação de cada órgão nas ações.
DPE
No dia do acidente, a Defensoria Pública do Estado (DPE) organizou uma força-tarefa para oferecer assistência aos familiares e sobreviventes. Uma Unidade Móvel ficou à disposição no município do dia 26 de agosto ao dia 30, para oferecer esclarecimentos e providências judiciais e extrajudiciais. Em setembro, a unidade também se deslocou até Mar Grande, entre 25 e 28 de setembro, para coletar documentação para os processos. De acordo com a DPE, foram mais de 100 pessoas ouvidas. São 43 processos que tramitam na Justiça com autoria da DPE. Eles foram ingressados no Tribunal de Justiça da Bahia. São 63 representados pela Defensoria, sendo 58 pessoas em Itaparica/Vera Cruz e cinco em Salvador.
A Defensoria estadual tem como alvo a empresa e a Agerba. Ações individuais e coletivas foram protocoladas. Nenhuma audiência de julgamento foi realizada. A coordenadora das Defensorias Regionais e integrante da força-tarefa da tragédia de Mar Grande, Soraia Ramos Lima, explicou que ações individuais foram ingressadas porque “cada caso tem sua peculiaridade”. “Mesmo que dê mais trabalho, preferimos as ações individuais”.
Só a DPE realizou pelo menos 30 tentativas de conciliação com a empresa. “A gente quer ver se faz uma composição de negociação com a empresa e com a Agerba, porque essas ações demoram bastante, tem prazo de defesa, recurso. A gente quer mesmo é fazer as negociações, ouvir cada uma das vítimas e familiares. Começamos aqui em Salvador a ouvir e chamar as partes para eles dizerem quanto vão aceitar. Tem danos materiais e morais, ressarcimentos das perdas dos momentos do acidente... O nosso objetivo é ser o mais célere possível”, afirmou a defensora.
Soraia destacou que alguns dos sobreviventes não queriam entrar com ação “porque não queriam reviver” o acidente. “Eles me disseram que estavam vivos e que não queriam reviver. Eles falaram que só não queriam que acontecesse de novo. Fora todos os danos e sequelas que ficam para sempre e que nenhum dinheiro vai pagar. Cada vez que temos uma audiência, eles voltam a lembrar”, disse ela.
O advogado da CL Transporte Marítimo LTDA, Manoel Joaquim Rodrigues, disse que apesar da empresa estar predisposta para conciliar, existem ações “absurdas”. “Tem gente que pede R$ 100 mil, R$ 150 mil de dano moral só porque estava na embarcação. Tem quem peça ressarcimento de despesas e diz que estava com R$ 8 mil no bolso, R$ 5 mil no bolso. Tem quem peça que a empresa devolva o dinheiro que pagou com o funeral, sendo que a empresa já havia pago isso. É necessário fazer com que as pessoas ajustem as suas pretensões para suas realidades. A empresa não vai se furtar de enfrentar o assunto hora nenhuma”, afirmou o advogado.
A defensora Soraia Lima criticou a fala do advogado. “Eu não sei se ele sabe, mas tem pessoas que tiveram suas vidas modificadas. Pessoas que vivem à base de remédio, não conseguem dormir, tem trauma para ir no mar. O fato de estar lá é, sim, um grave sofrimento para qualquer pessoa. Eles viram pessoas morrendo ao lado deles, gente sofrendo. Um policial nos disse que teve sua vida completamente mudada por não ter conseguido salvar uma criança. R$ 150 mil é um valor alto? Não é. Não foi nenhum valor inventado para as pessoas ficarem ricas às custas da empresa, porque esses valores nunca vão cobrir o que elas passaram”, opinou.
DPU
A Defensoria Pública da União também ingressou com pelo menos 20 ações no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Os processos que estão com a entidade são contra a Marinha, que é da União, e por isso não poderiam ser ingressados pela DPE, que apenas tem jurisdição estadual. Além da Marinha, a Agerba também é alvo da DPU. A empresa e o dono chegaram a ser elencados como réus nos processos, mas foram retirados pelos juízes por não terem foro na Justiça Federal.
“Nós entramos com mais de 20 ações judiciais em face da Marinha, da Agerba e da empresa. Houve uma ausência de fiscalização e a Marinha deveria realizar um controle mais regular nessas navegações. Se tivessem realizado de forma correta, iriam saber que as embarcações sofreram as intervenções que comprometeram a estabilidade da navegação”, explicou o defensor público federal e defensor regional de Direitos Humanos, Átila Ribeiro.
O defensor disse ainda que requere indenizações em face das vítimas, que têm valores variáveis de acordo com cada caso. Quando o processo administrativo, que corre na Marinha, for finalizado, a DPU irá ajuizar uma ação civil pública coletiva por dano moral.
Ações individuais
Os outros 22 processos que foram ingressados pelo escritório José Brito Advogados Associados requerem danos morais e materiais para familiares de vítimas e sobreviventes. Nos casos de óbito, eles ainda pedem pensão vitalícia para a família. Eles entraram com o processo na Justiça Federal contra a Marinha, a empresa e a Agerba.
“Nós entramos com o processo contra a Marinha porque a Capitania dos Portos tem o dever, por lei, de fiscalizar. Algo que não ocorreu. Nós não pedimos audiência de conciliação porque não acreditamos que esse seja o caminho e nem que irá haver conciliação”, disse um dos advogados do escritório, que preferiu não se identificar.
Fora do escritório, pelo menos outras oito ações também foram ingressadas com diversos polos passivos diferentes na justiça estadual e federal. Dentre os réus estão todos os 11 supracitados. Pelo menos três audiências de conciliação foram realizadas com os advogados particulares e as partes.
Ministério Público da Bahia
Logo após a tragédia, em 24 de agosto de 2017, o Ministério Público da Bahia entrou com um pedido de tutela cautelar de urgência para suspender a travessia Salvador-Mar Grande. Uma ação civil pública foi ajuizada pela entidade em outubro do ano passado pedindo a cassação do serviço prestado pelas empresas que realizam a travessia. Sua última movimentação foi no dia 9 de agosto deste ano, requerendo agilidade no processo.
No âmbito criminal, o MP aguarda uma segunda versão do inquérito policial. O pedido de mais diligências foi realizado pelo promotor Ubirajara Fadigas, da 2º Promotoria de Justiça em Itaparica após a conclusão do inquérito, em abril deste ano.
Ministério Público Federal
O Ministério Público Federal (MPF) ainda não entrou com processos. A entidade, no entanto, abriu um inquérito civil para apurar a realização de inspeções e vistorias navais pela Capitania dos Portos da Bahia (Marinha do Brasil). No momento, o MPF aguarda a conclusão do julgamento de procedimento administrativo da Marinha para dar seguimento às apurações.
Caso encontre irregularidades e responsabilização, a entidade poderá oferecer denúncia à Justiça Federal. “Relembramos que a fiscalização do serviço de transporte hidroviário de passageiros intermunicipal compete ao Estado da Bahia e, neste caso, as apurações criminais e eventuais ações que busquem indenizações às vítimas e familiares estão fora da esfera de atuação federal”, afirmou a entidade, em nota.
A investigação abrange o papel da Marinha na execução de suas missões e deveres institucionais, especialmente no que se refere à realização de inspeções e vistorias navais e na fiscalização do cumprimento das normas e procedimentos que regulam o tráfego marítimo.
O que os acusados dizem
O CORREIO entrou em contato com os 11 réus dos 95 processos. O dono da empresa CL Transporte Marítimo LTDA preferiu não se pronunciar. A Socicam, empresa responsável pela administração do Terminal Turístico Náutico da Bahia (TTNB), afirmou que a “empresa foi equivocadamente incluída em processos relacionados ao acidente, pois não possui qualquer ingerência sobre as concessões e fiscalizações das linhas e embarcações”.
A Agerba argumentou que “os órgãos competentes pela apuração das circunstâncias do acidente não apontam ou citam a Agerba como responsável pela tragédia”. “No transporte intermunicipal hidroviário de passageiros a agência regula, concede e fiscaliza os serviços de travessias, estabelece tarifas, cumprimento de horários das embarcações, limpeza, conforto nos barcos e serviços de atendimento prestados ao usuário. Sobre as ações que citam a empresa dona da embarcação e a Agerba solidariamente, os processos estão em andamento e foram apresentadas as defesas”, afirmou a agência em nota.
A Vera Cruz Transporte Marítimo afirmou que tem ciência de um processo contra ela e que “não há pretensão de acordo”. “Não temos responsabilidade pelo acidente que ocorreu com a lancha da CL e não temos relação com o acidente nem com os eventuais danos causados”.
O Estado da Bahia, a Astramab, o Centro Náutico da Bahia e a Sudesb não responderam aos questionamentos da reportagem até o fechamento desta reportagem.