"Lembranças que a rotina não deixa apagar"
Alexandre Lyrio
A profissão de Paulo envolve ver gente morta todo dia. Funcionário do Instituto Médico Legal (IML), a proximidade com esse universo não lhe deu qualquer vantagem (ou desvantagem) na superação do trauma de ter estado dentro da Lancha Cavalo Marinho I no dia 24 de agosto de 2017. Muito pior do que ver os corpos do IML é fazer a mesma travessia a cada amanhecer.
Paulo Pimentel, 56, nasceu em Salvador, mas há 40 anos mora em Mar Grande. Há 40 anos faz a mesma travessia. Nunca imaginou que teria medo em viver a sua rotina. Paulo fica apavorado se uma onda qualquer faz a lancha dar um sacolejo maior. “Hoje, eu só viajo no meio do barco, porque balança menos. Se invernar e balançar demais eu começo a suar frio, passar mal, minha pressão sobe. O pessoal vem e pega na minha mão, me abraça, me dá um apoio”, revela.
“É a minha rotina. Infelizmente, vem a lembrança da tragédia. Mas, eu tenho essa rotina. Vou fazer o quê? Preciso ir trabalhar”, diz ele, segundos antes de entrar junto com o CORREIO na embarcação Anita Garibaldi, uma das mais modernas entre todas da atual travessia. A lancha pertence à empresa Vera Cruz: “Eu não viajo mais pela CL. Na Vera Cruz viajo muito mais tranquilo”. Antes, Paulo conta usava o tempo da travessia para descansar. “Era 40 minutos que eu vinha dormindo. Agora, quem vai dormir mais?”, questiona.
Na manhã da tragédia, Paulo já acordou com a lancha adernando. “É um filme de terror que eu nunca mais vou esquecer. Eram 6h30 de um dia nublado. Não estava chovendo. Lembro de cada passo que eu dei”, garante. “Em alguns minutos, eu já estava dormindo na parte de baixo, no porão, como de costume. Foi quando a lancha começou a virar e eu acordei submerso. Deus e meus orixás me iluminaram. Dei um murro em uma daquelas janelinhas por onde consegui sair. Ainda bem que eu perdi 50 quilos há alguns anos”, relembra.
"Sair do porão era só o início da via-crucis até o salvamento. Subi no mastro da Cavalo Marinho. Foi o que me salvou. Mas vi muitos corpos boiando, passando por mim. Eu vejo corpos todos os dias, mas aquilo era triste. Vi crianças tentando nadar, senhoras gritando de desespero", lembra. Quem resgatou Paulo sabe o estado dele no momento que foi colocado em terra firme. “Eu fui um dos que salvou ele. Paulo estava em choque”, conta o pescador Juarez dos Anjos Silva, 44 anos, morador de Gamboa.
Funcionário da prefeitura de Salvador, Eduardo José Reis, 65, tem uma rotina de travessias semelhante à de Paulo. Por isso, estava no mesmo barco. A diferença é que Eduardo estava acordado quando a Cavalo Marinho I virou. Ele conta que a lancha já chegou atrasada no píer e só não saiu superlotada porque algumas pessoas se negaram a embarcar: “Normalmente, aquele horário é feito com uma embarcação maior por conta da demanda. Mas, naquele dia, mandaram uma das menores lanchas. Senti vontade de sentar lá embaixo, mas depois desisti. Muitos desistiram de viajar naquele dia. Acharam que tinha muita gente a bordo e disseram: ‘Não, nesse barco eu não vou!’”.
Eduardo conta que a viagem começou normal: “Até a primeira sinalização (sinalizador de concreto) estava tudo bem. Mas, logo depois, começou a chover. A chuva batia na lona tão forte que parecia que tinha alguém jogando pedra". Eduardo confirma que algumas pessoas mudaram de lado por conta da chuva: “Umas quatro pessoas foram para o outro lado se proteger”.
Ele diz que, em determinado momento, a lancha começou a oscilar. Até que a borda da embarcação beirou a água. “Eu pensei: ‘Essa lancha não vai voltar mais’. Foi quando uma pessoa gritou: ‘Meu Deus, eu não acredito que essa lancha vai virar’. Foram as únicas palavras que a gente ouviu”.
Eduardo conseguiu pular na água como muitos outros. Mas, a força da onda levava eles de volta para dentro da embarcação que se desfazia. “Nessa hora, com a água escura, eu tateei para sair e me bati no plástico. Não conseguia. Pensei: ‘Poxa, eu vou morrer afogado’. Mas eu olhei para cima e vi um clarão. Vi que eu estava na posição errada. O céu estava lá em cima. Segurei o fôlego ao máximo. Fui um dos primeiros a conseguir sair do barco”, relembra.
Ele ainda arrumou disposição para salvar os outros passageiros: “Consegui pegar um bote e ajudei um senhor a segurar. Ele perguntou onde tava a esposa. Para ele ficar mais tranquilo eu disse ‘O marinheiro falou que não morreu ninguém’”. Eduardo ainda voltou para ajudar uma menina que estava em cima do barco e procurava pela mãe. “Falei a ela que a corrente estava muito forte e ela disse: ‘Mas minha mãe tá lá embaixo’. Eu falei: ‘Se você ficar aí você também vai morrer’ Ela pegou em meu braço e ficamos em um bote em 19 pessoas”, narra.
Colete
'Hoje, a estudante de direito Jucimeire Santana Santos, 47 anos', costuma ser um ponto laranja entre os passageiros. Em quase todas as lanchas que embarca, é a única que usa o colete do início ao fim da travessia. “Tem uns turistas gringos que, de vez em quando, também vejo usar”, diz. Apesar de fazer o que é correto, o que Meire faz é resultado do trauma que ficou da tragédia: “Hoje eu fico apavorada! Para alguém que não tinha medo nenhum de navegar”.
Sobre os fatos que ocorreram naquela lancha, Meire prefere resumir em poucas palavras. “O que me lembro é de muita gente gritando e todo mundo tentando viver, puxando um ao outro. Bebi bastante água. Mas consegui subir e, depois de muita espera, um salva-vidas me salvou e conseguiu me botar no bote”.
Chocante
A narrativa de Ana Paula, 29, sobrevivente que perdeu o filho Davi, de seis meses, é talvez a mais chocante. São relatos de uma mãe que viu os filhos desaparecerem enquanto a lancha ia se desfazendo no meio do mar. “Foi a lancha virando e eu descendo com meu filho. Eu tentando segurar ele de todo o jeito para que o mar não levasse, mas levou. Muito sofrimento. Crianças estavam dentro do mar, as pessoas mortas e meus filhos desaparecidos. E eu vim pra cá pra ilha sem ele e sem minha filha, que estava solta no barco. E eu: ‘Meu Deus, cadê os meus filhos?’”.
As pessoas perguntavam pelas crianças e Ana Paula se desesperava ainda mais: “Quando cheguei aqui uma prima minha perguntou: ‘Paula, cadê os seus filhos? Eu disse pra ela: ‘Meus filhos estão no mar’. Eu não sabia se eles estavam lá no fundo do mar. Minha filha de 4 anos e meus filhos de seis meses. Ele só tinha seis meses, gente”.
Omissão de socorro
No relato dos sobreviventes, um ponto em comum: todos confirmam que a lancha do horário seguinte passou, viu o naufrágio e as vítimas, mas não parou. O mesmo fez a lancha que vinha de Salvador logo em seguida. “Um disse que achou que era uma baleia, o outro deu outra desculpa. Eles se omitiram. Teriam salvo muito mais pessoas”, acredita Eduardo.
Os erros da tripulação são apontados, além dos problemas com os coletes. “Não tinha marinheiro embaixo. Todos estavam em cima, na cabine. Os coletes estavam todos amarrados. Era nó forte que as pessoas não conseguiam soltar. O socorro demorou muito para chegar”, relata um. A demora para a chegada do socorro também foi narrada. “Passaram-se duas horas e cadê o Graer (Grupamento Aéreo), cadê a Marinha? Não vinha ninguém”, disse outro.
O primeiro barco a chegar no local, diz Paulo, foi um catamarã cinza chamado Raimundo. Só depois chegaram as outras embarcações, inclusive da Marinha. Por essas e outras questões, os discursos dos sobreviventes são carregados de indignação.
“Eu não sou navegador e na época achei que tinha sido uma fatalidade. Hoje sei que não. Hoje sei que foi negligência e irresponsabilidade da empresa CL e uma sequência de erros no resgate das vítimas”, afirma o sobrevivente Paulo Pimentel. Indignação e certeza de que tudo jamais será esquecido. “Podem passar dez, 20 anos, tá tudo aqui na minha memória”, diz Ana Paula.