O mistério da menina perdida

Fernanda Lima*

Suposto 20º corpo da tragédia na Ilha nunca foi encontrado, e polícia desconfia até de sua existência

O dia começou para Lorena às 5h. Tomou banhou, vestiu a roupa e seguiu para o terminal de Mar Grande. A menina de 12 anos deveria chegar a Salvador por volta das 7h do dia 24 de agosto de 2017, na embarcação Cavalo Marinho I. A mãe, Cidneia, aguardava do outro lado da Baía de Todos os Santos.

Poucos minutos depois, os bombeiros estavam no mar em busca dos sobreviventes do naufrágio. Dos 116 passageiros, 19 mortos comprovados, sendo o último corpo localizado no dia 27 do mesmo mês. Mas, faltava Lorena. A busca pela adolescente seguiu até 11 de setembro, 19 dias depois do acidente, sem nenhuma pista encontrada sobre seu paradeiro. Após um ano, ainda sem achar vestígios do corpo, a polícia suspeita até da existência da menina.

Bombeiros fazem buscas por jovem que estaria desaparecida (Foto: SSP/Divulgação)

A versão da viagem de Lorena é contada por Adriana Souza, 28, que se diz tia da adolescente perdida. A mulher foi encontrada pelo CORREIO no município de Vera Cruz e aceita relatar as lembranças daquele dia 24. Num pequeno bar à beira da praia na região da Gameleira, Adriana afirma: acompanhou a sobrinha ao terminal e esperou o embarque. À notícia da tragédia, seguiu quase imediatamente para a 24ª Delegacia (Vera Cruz). A história também foi reportada a defensores públicos do estado da Bahia.

Mas, um ano após a tragédia, nem a própria Adriana tem certeza dos fatos. “Depois de 15 dias de desespero, eu pensei que Lorena pode nem ter morrido”, diz. As cinco embarcações do Corpo de Bombeiros da Bahia e mais quatro navios, com médicos e mergulhadores a bordo em busca da menina procuraram o corpo por 400 quilômetros marítimos, segundo o Comando do 2º Distrito Naval. Nada nunca foi encontrado. Para tentar entender melhor a situação, a polícia, então, decidiu enviar uma intimação para casa onde Adriana vive com o marido desempregado e seus três filhos.

Há um mês, o titular da 24ª Delegacia Ricardo Amorim recebeu Adriana no Complexo Policial de Vera Cruz. Lá, ela soube da possibilidade de ser punida legalmente por falsa comunicação de crime, ou seja, quando o Estado é mobilizado por uma ocorrência inexistente. Neste caso, por exemplo, a atividade de buscas diárias nas águas da Baía e também no ar, por meio do Grupamento Aéreo da Polícia Militar.

Bombeiros fazem buscas por jovem que estaria desaparecida (Foto: SSP/Divulgação)

O advogado criminalista Fabiano Pimentel explica as possíveis punições caso seja provado o delito: de um a seis meses na cadeia. E frisa: “Só é considerado crime se realmente há a certeza de que o fato não existiu. Porque o Código Penal fala: ‘sabendo que o fato não existiu’. Mas, se a família realmente estava em dúvida e registrou a ocorrência, é diferente. Se eles sabem que não existiu e mesmo assim registraram denúncia, é crime. Porque é um fato inexistente”.

O delegado não quis se pronunciar sobre o caso. Já a Secretaria da Segurança Pública da Bahia afirmou: “a informação passada sobre a presença de uma adolescente, na embarcação, nunca se confirmou” e o “nome informado pela suposta tia da garota não consta em nenhum banco de dados baiano”.

Diante do delegado, Adriana lembra da advertência. Ao que afirma ter respondido: “‘Saíram duas lanchas. Em qual delas ela embarcou? Não sei...’ Acabei sendo ignorante, depois pedi desculpas. Eu disse ao delegado: ‘não vou me responsabilizar por nada’. Depois, eu que tenho que pagar pelos outros. Mas se Cidneia, como mãe, quiser procurar...”

Os rastros


A suspeita da polícia é baseada em outras duas informações: a ausência de qualquer fotografia de Lorena e a igual falta de qualquer documento de identificação. Adriana olha para o mar e cruza as mãos ao tentar esclarecer o porquê da falta de qualquer registro da garota. Parece nervosa e não consegue lembrar nem a roupa que a garota vestia no dia do embarque – parece que foi short e blusa, mas não sabe dizer a cor. “Na verdade, não era rotina ela viver comigo. Eu não poderia dar uma coisa que eu não tinha. Agora, olhe para mim, você acha que eu levantaria uma informação falsa dessa por que?”, defende-se.

É quando começa a tentar explicar seu relacionamento com irmã e sobrinha. Durante os primeiros minutos do encontro, usa o nome Célia para tratar da irmã. Depois, percebe as anotações da reportagem e corrige: “Não, é Cidneia; eu que me confundi”. Mas, por toda a entrevista, sempre caracteriza a irmã como uma “drogada”. Assim como toda a família biológica. “São sete filhos, cinco homens e duas mulheres [Adriana e Cidneia]. Todos se meteram com droga, com tráfico, menos eu. Desde os 2 anos, sou criada pelos meus pais de criação”, conta. A caçula Cidneia, 27, seria a única irmã com quem o contato havia sido mantido. Embora, segundo Adriana, fossem contatos raros e nunca íntimos.

A irmã, conta Adriana, deixou Vera Cruz aos 14 anos para viver com um traficante, morto logo em seguida, em Salvador. Nenhum nome ou sobrenome é revelado. Lorena seria filha do criminoso assassinado e Adriana esperava um futuro não muito diferente para a sobrinha. “Tinha vontade de tomar a menina para mim. Porque eu via cada um deles para o rumo errado. Achei que ela ia levar Lorena para o mesmo rumo”. Apesar dessa suposta boa vontade, os encontros com a menina eram difíceis.

Tia afirma ter visto jovem embarcar na Cavalo Marinho (Foto: Marina Silva/CORREIO)

No dia 22 de agosto aconteceu um desses encontros entre as irmãs.  Cidneia e Lorena estariam na Praia do Duro, em Mar Grande, por volta das 12h, quando Adriana as avistou. Cidneia, segundo Adriana, “muito bêbada”: “Aí eu pedi: ‘deixa Lorena dormir lá em casa’. Ela fez: “leve. Agora, amanhã eu vou para Salvador e quinta-feira você leva ela’”. Depois da tragédia, Adriana diz ter começado a pensar em todo o ocorrido. A “irmã drogada” pode, muito bem, ter recebido a menina em Salvador e nunca ter revelado o paradeiro dela.

Uma vez após o suposto desaparecimento de Lorena, Cidneia foi vista por Adriana na Avenida Sete, junto “a outros sacizeiros [drogados]”. Adriana sequer teria falado com a irmã para perguntar sobre a menina. O pensamento de que Lorena estaria viva é quase uma certeza. “Eu acredito até que ela não estava na lancha do acidente. Ela pode ter ido na outra lancha. Isso, se ela não estiver com a mãe dela. Eu acho possível”, diz. E continua: “Não era nem para eu ter falado nada”.

Lorena?


A imagem da menina de pele morena-clara e com cabelo black atribuída à figura de Lorena é completamente desconhecida dos moradores de Mar Grande e Gameleira encontrados pela reportagem. Sob anonimato, muitos chegam a duvidar até da existência da adolescente. “Nem mãe, nem pai vieram procurar. Como é isso? Ou não existe ou um tubarão comeu”, acredita um senhor de quase 60 anos, morador de Mar Grande, que não quis se identificar. E assim começam a crescer as teorias sobre o paradeiro e a existência da garota.

O raio de busca e os 19 dias de procura sem sucesso são estranhados pela maioria. Por que somente ela não foi encontrada? É a pergunta repetida quase em uníssono. Pelo processo natural de decomposição, segundo explica o professor de Medicina Legal da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Raul Barreto, o corpo costuma boiar em 15 dias. O de Lorena nunca boiou. “Essa é a fase gasosa, em que o corpo geralmente flutua. Dura, em média, 15 dias. Depois, os gases se dissipam e começa a fase de liquefação. A massa orgânica, pele e músculo, começa a se liquefazer. [...] Dura por um ano e meio”, explica.

A reportagem tentou contato com os bombeiros envolvidos na busca para detalhes da operação, mas a SSP não permitiu nenhum encontro ou esclarecimento. Ao todo, 167 militares da Marinha do Brasil foram diretamente empregados, segundo a própria Marinha, sem nenhum vestígio de Lorena.

Num grupo de Whatsapp que reúne mais de 30 moradores de Mar Grande, acessado pela reportagem por meio de uma participante, todos são questionados sobre o caso da menina perdida, o suposto 20º corpo. “A história, única, que chegou para mim foi que uma menina foi colocada na lancha. Mas ninguém viu ninguém. Nem tinha como ver”, comenta um. “Todo mundo só ouviu o burburinho, ninguém nem sabe que conversa é essa”, escreve outro.

A indenização planejada para vítimas da tragédia e familiares é até citada como possível razão de uma mentira. No entanto, nenhum parente apresentou alguma informação “além do que foi passado pela tia da menina”. Afinal, não há nenhum registro: a menina perdida, caso tenha mesmo existido, era quase inexistente mesmo em vida. Sem documento, sem foto. Agora, entra para lista dos mistérios infindáveis da ilha. Do mar ou da terra.

Voltar para página inicial