Quase nada mudou na travessia

Amanda Palma

Falta de segurança ainda é marca das lanchas que atravessam a Baía de Todos-os-Santos

A embarcação sai do Terminal de Vera Cruz depois de algumas horas de espera. Tudo é tranquilo, até que o mar parece um pouco mais agitado ao chegar no primeiro banco de areia. As ondas ficam mais intensas e a embarcação vai de um lado a outro, sem parar, num ritmo cada vez mais rápido. Parece que vai virar e não tem como não lembrar da Cavalo Marinho I. Quase um ano depois da tragédia de Mar Grande, a sensação de medo é mesma, assim como as condições da travessia.

Do dia do acidente até hoje, pouca coisa mudou. Os coletes salva-vidas, por exemplo, não ficam mais amarrados uns aos outros, como reclamaram os sobreviventes da tragédia. Mas têm aparência de velhos. As instruções de como usá-los se resumem, em algumas embarcações, a um aviso próximo aos assentos da entrada. Quem fica distante, não tem como ler.

Terminal náutico de Salvador (Foto: Marina Silva/CORREIO)

As orientações dos marinheiros sobre como fazer uso do equipamento ou dos botes salva-vidas não são mais realizadas. Passageiros que ainda utilizam o terminal contam que são poucos os barcos que ainda exibem os vídeos de como usar os coletes. “Não se trabalha com a prevenção dos acidentes. No meio do mar, não tem como se virar só com quatro marinheiros”, pondera o enfermeiro Johnny Vitório, que trabalha em Salvador.

Apesar disso, sobre a demonstração dos coletes, Jacinto Chagas, da Associação de Transportadores Marítimos da Bahia (Astramab), garante que a associação cobra que as empresas façam o procedimento. “A gente tem cobrado para que, a cada viagem, seja feita a demonstração pessoalmente, naquela embarcação que não tem televisão”, diz.

Para Johnny, a insegurança permanece a mesma que a de um ano atrás. Essa também foi a percepção das equipes de reportagem do CORREIO que fizeram a travessia diversas vezes durante a semana passada, em horários diferentes. Em nenhuma das embarcações houve apresentação de vídeo do uso dos coletes, ou qualquer recomendação. De acordo com a empresa Vera Cruz Transportes Marítimo, as Normas de Autoridade Marítima não exigem mais que sejam realizadas as demonstrações ao vivo, que foram substituídas pelos banners expositivos.

Em alguns dos barcos, havia maior quantidade de pessoas que a capacidade permitida, como na lancha Maria Quitéria I, que saiu às 6h30 do Terminal Náutico do Comércio, em Salvador, com 164 passageiros, mas tem capacidade para 161. Teve até passageira sentada em cooler para fazer a travessia. Em conversa rápida com o CORREIO, o comandante da embarcação disse que não havia extrapolado a capacidade.

Chegada ao terminal de Mar Grande (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Sem documento


Outros problemas também permanecem, como a falta de controle dos passageiros que usam o serviço. Desde a entrada no terminal, como acontece em Vera Cruz. Apesar do novo espaço ter catracas eletrônicas já instaladas, elas ainda não funcionam e qualquer pessoa tem acesso livre ao terminal. Por meio de sua assessoria, a empresa Socicam, responsável pelos dois terminais (Comércio e Vera Cruz), explicou que ainda depende de autorização da Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba) para colocá-las em funcionamento.

Dentro do terminal, o embarque continua com situações que não dão segurança ao passageiro. A passagem é apenas um tíquete, sem nenhuma identificação – nem do passageiro, nem da embarcação. Depois da entrega do bilhete ao funcionário da Socicam, só a pedido do cliente é que um recibo (também sem nenhum dado preenchido) é entregue. Também não há um controle da distribuição desses recibos. Em uma das viagens, a repórter do CORREIO, sozinha, solicitou quatro recibos, que foram entregues sem questionamento. Com acúmulo de pessoas, a entrada é desordenada e algumas pessoas têm acesso ao píer sem entregar o bilhete de passagem.

Já na embarcação, também não há nenhuma exigência para o acesso. Por meio de sua assessoria, a Vera Cruz Transportes Marítimo informou que “o controle efetuado é quantitativo, o que é suficiente para assegurar a segurança e pleno atendimento aos nossos passageiros”. Segundo a Astramab, são transportados, em média, 3.500 passageiros por dia. A Agerba diz que, “sobre os procedimentos de embarque, não há previsão para mudança”.

Fiscalização


O presidente da Astramab, Jacinto Chagas, diz que nada mudou em termos de fiscalização do serviço. “Continua tudo normal, continuamos cumprindo as normas que a Capitania faz a

gente cumprir”, diz. De acordo com a associação, oito embarcações fazem a travessia pela empresa Vera Cruz: Anita Garibaldi, Joana Angélica I, Maria Quitéria, Vitória Régia, Catarina Paraguaçu, Vera Cruz e Bahia Express.

Pela CL, ainda operam o serviço a Costa do Mar, Costa do Sol, Cavalo Marinho II. Duas estão passando por manutenção, de acordo com a Astramab: Nossa Senhora da Penha e Cavalo Marinho III (esta última, impedida de operar pela Capitania dos Portos). Este é o terceiro barco retirado de circulação, temporariamente, em 2018. Os barcos são os mesmos que prestavam serviço no ano passado, sendo que a Costa do Sol e a Cavalo Marinho II são as mais temidas pelos passageiros. Apelidada de “caixão”, a Costa do Sol é, em grande parte fechada.

GPS nas lanchas


A empresa Vera Cruz Transportes Marítimo, por meio de sua assessoria, informou que os barcos passam por manutenção a cada quatro meses. Além disso, segundo a empresa, os marinheiros receberam treinamento de combate a princípio de incêndio e resgate de homem ao mar.

Ainda de acordo com a Vera Cruz, neste último ano foram instalados aparelhos de GPS nas lanchas que fazem a travessia, que permitem o rastreamento das embarcações.

O advogado que representa os donos da empresa CL Transporte Marítimo, Manoel Joaquim Pinto Rodrigues da Costa, informou apenas que as embarcações da empresa ainda são as mesmas que operavam no ano passado.

Eles só querem ir pelo ferry


Logo após a tragédia no ano passado, o serviço ficou suspenso por quase uma semana e quem precisava se deslocar entre as duas cidades, precisou usar o ferry-boat. Com a travessia retomada, nem todo mundo teve a confiança de fazer a travessia novamente nas lanchas.

Com a memória viva do dia da tragédia, o enfermeiro Johnny Vitório prefere usar o ferry com o tempo instável. A estudante Iasmin Rocha Silva, 25, também prefere o ferry quando o tempo está chuvoso. “Eu não tinha medo antes, mas agora...”, diz. A marisqueira Ingrid Santos, 25s, evita usar as lanchas. “Eu nunca gostei de usar, na verdade”, contou.

Para o ambulante Henrique Moreira dos Santos, que trabalha em frente ao terminal do Comércio, o movimento caiu desde quando aconteceu a tragédia. “Ficou um clima estranho aqui. Não é mais como antigamente, que ficavam aquelas filas enormes”, conta. Sobrevivente do naufrágio, a ambulante Josiane Ramos de Souza não esquece dos momentos de pânico que passou no mar, mas é uma das pessoas que ainda usam o serviço. Só não usa mais as lanchas da CL. “Fico esperando a próxima”, conta.

A defensora pública Soraia Ramos Lima, coordenadora das Defensorias Regionais e coordenadora da força-tarefa da tragédia de Mar Grande, conta que a empresa CL Transportes Marítimo alega que o movimento caiu muito e usa isso como argumento para ter um balanço negativo. "Como o juiz bloqueou 5% da renda líquida, eles apresentam um balancete todo mês dizendo que está no vermelho, e aí não se consegue bloquear nada”, explica a defensora.

Fila, maré baixa e obras de dragagem


Faltavam duas horas ainda para conseguir fazer a travessia, mas cerca de 30 pessoas já formavam uma fila na entrada do Terminal Náutico no bairro do Comércio, em Salvador. O motivo de tanta espera é que mais uma vez o serviço de travessia Salvador-Mar Grande tinha sido interrompido por causa da maré baixa.

Chegada ao terminal de Mar Grande (Foto: Marina Silva/CORREIO)

“No terminal não tem lugar pra gente sentar, tem que ficar em pé quando a maré baixa, esperando para que eles abram”, conta a marisqueira Rita Maria Dias, 50. Segundo a Socicam, “as empresas (CL e Vera Cruz) não vendem antecipadamente suas passagens, só realizam suas vendas cerca de 20 minutos antes da saída de suas embarcações”.

Em Salvador, a espera é na fila, do lado de fora do terminal. Em Mar Grande, o terminal fica na praia, e, por isso, o canal não é profundo o suficiente para que as embarcações consigam operar durante a maré baixa.

Segundo o prefeito de Vera Cruz, Marcus Vinicius, a licitação para que a obra de dragagem seja realizada já está em andamento. “Essa dragagem retira a pedra e areia, e avança mais de 100 metros retirando areia. Então, muda o perfil das embarcações. Vai possibilitar que o terminal receba catamarãs, por exemplo”, explica o prefeito. Segundo a Agerba, a previsão é de que as obras sejam iniciadas até o final do ano e devem durar quatro meses.

Travessia pela saúde


Mais do que ligar duas cidades, a travessia Salvador-Mar Grande é um meio de ter acesso aos atendimentos de saúde para muitos moradores da Ilha de Itaparica. No dia da tragédia, alguns passageiros da Cavalo Marinho I vinham a Salvador para consultas médicas e para fazer exames, como o bebê Davi Gabriel, 6 meses, que morreu no acidente.

A situação continua a mesma para quem faz a travessia hoje. A dona de casa Maria de Fátima dos Santos Andrade, 57, atravessa o mar sempre que precisa ir a um ortopedista. “Aqui em Vera Cruz não tem especialista”, conta. Segundo ela, o atendimento de emergência na UPA é bom, mas a assistência básica é precária, não tem pediatra, por exemplo.

Com uma escassez de atendimentos de especialistas, a prefeitura reinaugurou, há menos de um mês, o Hospital Municipal Maria Amélia Santos. Segundo o prefeito de Vera Cruz, Marcus Vinícius, a unidade vai suprir a demanda que existe na cidade. “Nós fizemos um investimento justamente para esse serviço de especialidades médicas atendesse a toda cidade. Com a abertura do hospital, dobramos o número de médicos da cidade, com 19 médicos”, explica.

Em Itaparica a situação não é diferente. Os moradores reclamam da dificuldade, apesar do funcionamento do Hospital Geral de Itaparica (HGI). “Qualquer consulta que eu precise, tenho que vir a Salvador”, diz a marisqueira Rita Maria Dias, 50.

A prefeitura de Itaparica, em nota, informou que está em funcionamento o Centro de Especialidades Médicas Municipal, com atendimentos de ginecologista e obstetra, geriatria, ortopedista, ultrassonografista e fisioterapeutas. No HGI, segundo comunicado oficial, tem atendimentos de médico clínico, ortopedista, pediatra, cardiologista, ginecologista, obstetra, ultrassonografista e cirurgião.

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