Os restos da Cavalo Marinho I

Bruno Wendel

CORREIO encontrou restos da embarcação que adernou na Baía de Todos-os-Santos

Uma tragédia e muitas lembranças. A dor que as ondas não levam não está só no sofrimento das famílias dos 19 mortos. As águas fortes trouxeram à praia mais do que partes da Cavalo Marinho I, embarcação de 44 anos toda em madeira. Deixaram em terra firme memórias físicas da maior catástrofe nas águas baianas.

É na casa do pescador Manoel Souza Bastos, 56 anos, na localidade da Gamboa – onde a maioria dos corpos foi trazida à terra firme – que o CORREIO encontrou restos da embarcação que adernou na Baía de Todos os Santos no dia 24 de agosto de 2017, 10 minutos depois de ter deixado o Terminal de Mar Grande, na Ilha de Itaparica, às 6h30.

Manoel Bastos encontrou restos da embarcação (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Sentado em um dos bancos da Cavalo Marinho I, Manoel fala: “Toda vez que olho, lembro de tudo. Vi gente morta, socorri muita gente também. É um dia que não sai de minha memória. Não guardo isso como um troféu, apenas ainda não achei quem queira comprar”, declarou o pescador.

No corredor da casa de Manoel estão dois bancos – ambos de pouco mais de 70 cm de altura – de madeira firme, nada confortável. A cor que ainda prevalecia é o branco, mas em alguns pontos, o azul surge como sinal de desgaste. 

Não é possível saber se os assentos compunham a parte do andar superior ou inferior do barco, mas o pescador sabe que as peças são o retrato da dor de quem lutou para sobreviver e de quem sequer teve essa chance.

“Não quero isso lá dentro (casa). É muita lembrança ruim. Sinto um aperto no peito. Evito até de passar perto”, disse ele. Por enquanto, os bancos servem como decoração, enquanto ainda não há compradores. 

Além dos assentos, o pescador tem em casa parte da proa e do teto e um colete salva-vidas – provavelmente a única peça que não conseguirá vender. “Além de pescar, trabalho vendendo madeira. As madeiras são boas. Peguei jaqueira, sucupira, licurana, que servem para fazer telhado e cercados por serem resistentes. Já o colete, vai ficar aí. Quem vai querer?”, indagou Manoel.

Cemitério


O acidente aconteceu em uma manhã chuvosa. A lancha Cavalo Marinho I saiu do terminal de Mar Grande, na Ilha de Itaparica, em direção ao Terminal Náutico, no Comércio, em Salvador. Alguns minutos depois de deixar o atracadouro, a embarcação virou. Havia 120 pessoas a bordo e os sobreviventes contaram que uma onda gigante fez a lancha tombar.

“A embarcação que vai para cima da arrebentação dos recifes não escapa. Ali vira um cemitério. Caiu nos recifes, dificilmente escapa. O mar ali é muito forte, principalmente com o vento”, contou Manoel.

Depois da Cavalo Marinho I, o pescador disse que recolheu destroços de outra embarcação, a escuna Cristal – no dia 3 de setembro do ano passado, a embarcação se soltou das amarras e saiu à devida pela Baía de Todos os Santos. “A escuna bateu nos recifes onde a Cavalo Marinho I ficou presa. Ela arrebentou nos corais”, relatou o pescador, que já perdeu as contas de quantas embarcações ele recolheu os destroços. “Vixe, foram muitas. Se for parar para relatar, essa entrevista não termina hoje”, brincou.

Destroços


Segundo Manoel, as ondas levaram à praia partes da embarcação. “Muita gente levou o que podia, o que aguentava carregar. Foi um trabalho danado para retirar algumas partes. Os destroços ficaram por alguns dias na praia, até retirarem o que sobrou e levar para o lixão”, declarou o pescador.

O CORREIO localizou dois dos três funcionários de uma empresa contratada pelos condomínios para fazer a manutenção da praia. Eles retiraram os restos da embarcação que não puderam ser lavados pela população. Eram pedaços de madeira foram transportados em carrocerias de dois triciclos até um lixão.

“Foram necessárias quatro viagens para levar tudo o que restou. Em algumas situações, precisamos serrar a parte da caverna (andar inferior) para dar na carroceria. O entulho ficou no lixão por quase uma semana até alguém pôr fogo. Até hoje ninguém sabe quem fez isso”, relatou um dos funcionários que preferiu não se identificar.

Caixão


Na Estrada da Gamboa, o CORREIO encontrou mais duas peças da Cavalo Marinho I. Na entrada de uma vila de casas, um banco da embarcação está no lava-jato de Marcelo de Oliveira de Assis, 50, empresário do ramo de pedras e granitos.

“Os destroços começaram a dar na praia, atrapalhando os banhistas e nós, que moramos perto, resolvemos tirar e trouxemos para um lugar que atrapalhassem menos a movimentação da praia”, disse ele, que tem dois bancos – o outro assento fica no corredor da vila.

Marcelo disse que as cadeiras o lembram todos os dias da tragédia, mas que algo precisa ser feito porque um outro acidente igual ou mais grave pode acontecer a qualquer momento. Ele se refere a Costa do Mar, embarcação da CL Transportes Marítimos, apelidada de Caixão.

“Me remete às pessoas que se foram por irresponsabilidade dos poderes públicos e dos donos da embarcação. Era uma tragédia anunciada. Hoje, nós lutamos para a retirada de outra embarcação, a Caixão, que visualmente não tem condições de embarcar. Ela é toda fechada. Não tem estabilidade no mar, qualquer acidente, não tem como sair - como o que aconteceu com as pessoas que morreram na Cavalo Marinho I, elas ficaram presas embaixo”.

Oficinas


Segundo moradores da Ilha, as embarcações que fazem a travessia Salvador / Mar Grande vão para estaleiros em Valença ou Cairu quando necessitam de manutenção demorada, como retifica e reparos no casco ou proa. Mas, as duas empresas que operam a linha, CL Transportes Marítimos e Vera Cruz, mantêm oficinas em Mar Grande para pequenos reparos.

Elas funcionam em garagens de residências na localidade chamada de Jaburu. No dia 16 deste mês, o CORREIO foi até as duas oficinas. A primeira, localizada na Rua Joaquim, da Avenida Beira Mar, é a oficina da CL Transportes Marítimos - que funciona nos fundos da casa de Lívio Garcia Galvão Júnior, dono da empresa, um dos indiciados pela polícia e pela Marinha como responsável pelo acidente.

Um caseiro confirmou que no local funciona uma oficina para pequenos reparos, como troca de óleo ou de pequenas peças, mas informou que o dono não estava. Então, o CORREIO ligou para o gerente da empresa, que se identificou apenas como Léo. “Ele [Lívio] não vai querer falar. Ele não está falando sobre o assunto”, disse. Questionado sobre o destino das Cavalo Marinho I, ele respondeu: “Retiramos só o motor. O resto foi para o lixo. Não guardamos nada como lembrança. Lembrança pra quê? Lembrança tem aí um bocado”.

A oficina da Vera Cruz está a poucos metros da primeira. Fica em frente à casa de número 14, onde funcionava o escritório da empresa. “Já tem mais de um mês que o escritório está funcionando em Salvador mas, ainda de vez em quando, pessoal está aí, na oficina”, disse Maria Antonieta Brás, 54, moradora da região, apontado para a uma área da oficina, repleta de motores de lanchas e outros equipamentos.

Marcelo de Oliveira e um dos bancos da Cavalo Marinho I (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)

Embarcação


A equipe do CORREIO foi a única que entrou na embarcação após o acidente e mostrou o cenário de destruição. No dia 26 de agosto – dois dias após o acidente – a reportagem teve acesso à lancha sem nenhuma dificuldade, pois a embarcação não estava isolada. Quem se aproximava da lancha inclinada, dava de cara com o buraco no lado direito do casco. Eram quase dois metros de altura e um pouco mais que o dobro de largura. 

A lancha media 18,6 m de comprimento. O teto de proteção foi completamente arrancado. Na parte superior, alguns pontos ainda estavam firmes na estrutura. Outros foram arrancados com o impacto. Próxima à cabine da embarcação, um aviso que indicava a lotação de passageiros: 160. No dia do acidente, 120 pessoas estavam a bordo.

Na cabine do comandante só restou de intacto o leme. Os vidros das janelas foram destruídos, os equipamentos usados na navegação todos danificados. Uma das portas que dão acessos ao local foi arrancada com impacto. O cheiro de combustível exalava dos motores expostos.

Na parte inferior, o retrato do que foi o desastre era ainda mais chocante. De acordo com relatos de sobreviventes, a maioria dos mortos viajava na parte inferior da lancha. 

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