O que fazia, comia e bebia o mais ilustre itaparicano durante seus famosos Verões de janeiro
Alexandre Lyrio (alexandre.lyrio@redebahia.com.br – @lyrioalexandre) e Linda Bezerra (linda.bezerra@redebahia.com.br – @linda_bezerra)
Descoberta pela contraluz do amanhecer, a sombra dos barcos ancorados na praia da Coroa começa a surgir no horizonte. Como se fora um deles, mareado pelo sono e o cheiro da maré da Ilha de Itaparica, João Ubaldo Ribeiro levanta-se. Pronto. Nesse instante, como dizia, uma radioatividade pegava ele em cheio, uma preguicite aguda que o acompanhava até a volta para a cama. Normalmente, entre 22h e 23h.
É que, nos inesquecíveis janeiros em Itaparica, João Ubaldo funcionava como uma daquelas típicas embarcações da Baía de Todos os Santos. Mole, lento e estável, um saveiro movido a leseira. “Meu pai dizia que Itaparica tinha uma radioatividade que deixava as pessoas moles. Atacava principalmente os homens. As mulheres sofriam pouco”, diz Emília Ribeiro, filha do escritor. E assim, às 6h, passo a passo, Ubaldo singrava a calçada e seguia uns 300 metros até o Mercado do Peixe.
Era o começo de um circuito que cumpria religiosamente, todo santo dia. Para os que pensam em reviver esse roteiro, apresentamos aqui o mundo de Ubaldo em Itaparica. No universo de área reduzida – um mercado, um bar, um restaurante, uma sorveteria e uma biblioteca – cabia toda a grandiosidade cultural, etílico-gastronômica e histórica da Ilha. O que comia, o que bebia, com quem conversava e quais personagens inspiraram o mais ilustre itaparicano?
“O mundinho de João na Ilha não fugia muito do raio de poucos metros de sua casa. Nem na bica ele ia. Achava longe”, entrega logo, aos risos, José Carlos Harfush, o Zeca Harfush, hoje com 80 anos. Um dos maiores amigos do escritor, Zeca, tratado nas crônicas de Ubaldo como Zecamunista, mora em Salvador, mas vai sempre à Ilha, onde mantém uma casa de praia. É fácil encontrá-lo tomando uma dose de uísque aqui e ali.
As águas das praias de Itaparica são calmas e, na maré baixa, pode-se avançar pelo mar: Ubaldo não pisava os pés na areia, mas não faça essa desfeita, o banho é imperdível. Foto: Evandro Veiga.
Afazeres
Pendendo para um lado e para o outro, orientado pelo farol das boas histórias, João então caminhava em direção ao mercado. Vez ou outra, tinha a companhia de Antônio Joaquim da Silva, 75 anos, o Tonho Sabacu, que só descia de sua bicicleta quando estava lado a lado com Ubaldo. “Ele andava devagar”, diz Sabacu, outro personagem dos livros de João que pode ser encontrado a qualquer hora em Itaparica. Chegando no mercado, João Ubaldo tinha muito o que fazer.
“Nada. Ali ele não fazia era nada. Quer dizer, batia um papo de meia hora com o pessoal e ia embora”, lembra Sabacu. No máximo, procurava saber da maré e dava palpite no carteado. O mingau e o cuscuz de tapioca do mercado não o seduziam. Preferia voltar para casa e caía no cuscuz de milho de Lea, com ovo e leite de vaca, acompanhado de café preto. Daí, olhava o e-mail. Raramente escrevia na Ilha.
Invariavelmente, por volta de 11h, Ubaldo levantava âncora e seguia, com sandália de dedo e sem camisa, bermudão, até o Largo da Quitanda. Era sua Macondo – a cidade para onde o escritor Gabriel Garcia Marques sempre voltava. Praticamente fundeava-se em uma das cadeiras plásticas do Restaurante do Negão, sob um frondoso pé de oiti centenário. O mesmo Negão que nos atendeu tão bem e nos deixou registrar o preparo de uma moqueca de ostra – sem leite de coco – como João Ubaldo gostava. “Ele dizia que a moqueca tradicional não leva leite de coco”, narra Vivaldo da Cruz, 53 anos, o Negão, que também nos serviu um suco de cajá dos deuses.
Maior distância percorrida por Ubaldo, o Mercado de Santa Luzia fica de frente pro mar e é point dos pescadores. Não raro, o pescado fresco é preparado ali mesmo e o cheiro se espalha. Foto: Evandro Veiga.
Primeiro, João perguntava a Negão ou à mulher, Rosa, o que tinha para comer. Como se fizesse alguma diferença. Glutão, não impunha muitas restrições alimentares. “Mas, se tivesse a moqueca de ostra, ele preferia. Se não tivesse, também não tinha problema”, lembra Negão. A mesa enchia de gente, chegados e não-chegados, para filar o rango e a companhia do conterrâneo.
“Eu ficava retado com ele. Pagava a conta pra todo mundo. E ainda brincava: ‘Dinheiro pouco eu tenho muito. Eu ganhei um Jabuti, porra’”. Apesar disso, nunca tirou um real do bolso após os almoços. “Ele nunca pagava a conta, sempre pendurava. Nunca assinou um cheque. Berenice, a mulher dele, é que pagava no final de janeiro”, lembra Zeca Harfush. Certa vez, revelou Negão, a conta bateu em R$ 14 mil.
Quando a conversa pós-moqueca fugia do controle, João simplesmente se retirava. “Deixava todo mundo falando sozinho”, lembra Zeca. De vez em quando, dava uma passada na sorveteria How Nice. “Ele pegava um pote e enchia de vários sabores até a boca. Meu pai gostava muito de doce. Adorava o de carambola”, reforça Emília. Com o bucho cheio, João caminhava vagarosamente, um saveiro ainda mais lento.
Aí a maré baixava de vez. E João vivia o auge da sua preguiça de Verão. Sob a mangueira, adernava por três ou quatro horas. “Só acordava umas cinco da tarde”, afirma Emília. Hora de fazer uma visita ao Espanha. O bar, logo atrás da Praça da Quitanda, é um clássico das crônicas de Ubaldo, assim como o Siribóia, ao lado. Pudera. Nessas bodegas, mais do que a própria voz rouca para jogar conversa fora, João usava o dedo apontador. Mexia o gelo no copo com doses de Old Eigth, seu uísque preferido.
A velha mangueira da casa do escritor, onde ele armava a rede, testemunhou muita conversa fiada dele e dos amigos: a casa não é aberta à visitação, mas vale passar na frente. Foto: Evandro Veiga.
“Isso antes de ficar rico. Porque, quando ele começou a ser bem pago, só tomava Johnny Walker 18 anos”, conta Harfush, repetindo o gesto de mexer o gelo. Houve um tempo em que João parou de beber, mas, da mesma forma, enchia o copo de Guaraná Antarctica Diet para parecer uísque. “Entupia de gelo”, lembra a filha Emília. Aliás, jogar conversa fora é força de expressão. João andava para cima e para baixo com um gravador no bolso. Não queria perder nada. “Ele dizia, com aquela voz dele: ‘Cuidado com o que você fala. Você está na minha mão. Estou gravando tudo’. Era dessas conversas no bar e em todo o lugar que ele tirava as histórias”, acredita Zeca.
Prosa
À noite, depois de umas talagadas e de rabiscar crônicas e trechos de livros, João Ubaldo recebia os amigos em casa. Além de Tonho Sabacu, Beto Atlântico e outros que sempre apareciam, Zeca Harfush ia lá todas as noites. “A gente conversava besteira. Muita besteira. Podia ser sobre qualquer coisa. Sempre disputávamos quem tinha comido primeiro Rita Hayworth, Marilyn Monroe ou Brigitte Bardot”, revela Zeca.
Certamente, o imaginário das conversas com Harfush, Líbio Jacob e seu filho, Jacob Branco, e outros personagens da Ilha recheou crônicas e livros como Viva o Povo Brasileiro, traduzido para o inglês na biblioteca de Itaparica, um dos poucos locais que tiravam Ubaldo do seu roteiro diário. No circuito de “afazeres” na ilha, de vez em quando também cabia uma visita à localidade do Baiacu, que dá nome ao lugarejo criado por ele em Viva o Povo. O Baiacu da vida real, especialmente as ruínas de uma igreja, era considerado por Ubaldo um local mítico.
Amigo-irmão de Ubaldo, Carlos Harfush, o Zeca Harfush, 80 anos, mantém emoldurada na parede uma crônica em que é citado como o personagem Zecamunista. Foto: Evandro Veiga.
Homem de fé, devoto de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, ligado a tradições e raízes, Ubaldo era também homem de tecnologia. Trabalhava com um laptop de última geração.
“Ele foi um dos primeiros escritores a ter um PC no Brasil”, diz a filha. “Mas não gostava de celular”, observa Zeca. “Ele tinha o aparelho, mas não atendia de jeito nenhum”. Uma das poucas contradições do itaparicano. Aliás, havia outra. Nascido cercado de mar por todos os lados, João Ubaldo não ia à praia. “Nem pisava na areia”, revela Emília. Era um barco a navegar pelas histórias de seu povo.
Receita da moqueca de Ostra
Moqueca de ostra fresca, retirada dos mangues do Alto das Pombas, é servida com arroz, feijão e pirão. Prove o refresco de cajá, feito com água da bica e pouco açúcar. Foto: Evandro Veiga.
Tradição
Depois de comer a moqueca de ostra, João Ubaldo se arrastava por cinco minutos até sua casa, resfestelado. Negão, dono do bar, conta que o escritor considerava uma heresia colocar leite de coco na receita. Provamos com e sem o ingrediente rejeitado e temos que concordar com o autor. Sem o leite, o sabor do marisco é realçado, o prato não fica com o gosto de todas as moquecas. Ubaldo comia só com feijão. Perdão, mas discordamos do mestre. Com o pirão é muito melhor. A ostra é fresca e feita com caldo de cabeça de dourado. Serve 2 pessoas (R$ 45).
Clique na imagem e assista, no vídeo Negão, proprietário do Restaurante do Negão, localizado no Largo da Quitanda (região histórica da Ilha), preparando esse moqueca.
Ingredientes para preparar a Moqueca de Ostras
- 1/2 cebola média picada
- 1/2 tomate picado
- Pimentão
- Coentro picado
- Cebolinha picada
- Caldo de cabeça de peixe dourado
- 200 g de ostras aferventadas, já sem cascas
- Três colheres (sopa) de azeite de dendê. Sal a gosto
Modo de Preparo
Em uma panela de barro, faça uma “cama” com todos os ingredientes, já cortados. Coloque a ostra, sem cascas, após ser aferventada. Cozinhe em fogo baixo a nossa iguaria com o caldo da cabeça do peixe. Quando estiver no ponto, acrescente o azeite de dendê, mas não deixe cozinhar por muito tempo. Assim, a moqueca não perde o frescor e o cheiro inebriante. Bom apetite.