Ciências da Saúde – Cérebros da Ufba https://especiais.correio24horas.com.br/ocerebrodaufba Conheça alguns dos maiores dos pesquisadores da Bahia Sat, 27 Jun 2020 01:08:39 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.3.17 Jairnilson Paim: o médico pesquisador que decidiu cuidar do SUS https://especiais.correio24horas.com.br/ocerebrodaufba/jairnilsonpaim/ https://especiais.correio24horas.com.br/ocerebrodaufba/jairnilsonpaim/#respond Thu, 25 Jun 2020 04:19:16 +0000 https://especiais.correio24horas.com.br/ocerebrodaufba/?p=3214 Vinculado ao Instituto de Saúde Coletiva (ISC), professor é autor do ‘best-seller’ O que é SUS Depois de quase duas horas de conversa, o professor Jairnilson […]

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Vinculado ao Instituto de Saúde Coletiva (ISC), professor é autor do ‘best-seller’ O que é SUS

Depois de quase duas horas de conversa, o professor Jairnilson Paim levantou da cadeira onde esteve sentado durante toda a entrevista. Saiu pela porta de seu gabinete, no Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (Ufba) para voltar alguns minutos depois com um livro nas mãos: O que é SUS, publicado por ele em 2009. 

Entregou-o à repórter. Era um presente. “É um best-seller”, acrescentou. De fato, as vendas são impressionantes para uma publicação científica: de acordo com a editora Fiocruz, responsável pelo livro, foram mais de 15 mil exemplares e sete reimpressões em mais de dez anos. 

O professor Jarnilson não é de falar de si. Não gosta nem de falar na primeira pessoa do singular. Sempre lembra da dificuldade que teve para escrever um memorial acadêmico – um tipo de texto que resume toda a vida acadêmica de alguém.

“Não sei falar muito ‘eu, eu, eu’, na primeira pessoa, não, e no memorial você escreve assim”, explicou, antes de seguir falando sobre ‘o professor’ na terceira pessoa do singular. 

Ele prefere falar sobre o SUS. Faz sentido que alguém assim tenha se dedicado a pesquisar sobre o sistema baseado justamente na igualdade e na premissa de que todas as pessoas têm direito à saúde. E esse também é um dos motivos pelos quais tem trabalhado tanto, apesar do confinamento imposto pela pandemia da covid-19. 

Jairnilson sabe que esse é um dos momentos em que o SUS mais deve ser debatido. Entre reuniões presenciais substituídas por encontros virtuais, tem destinado horários também para falar sobre saúde pública no enfrentamento ao coronavírus em novos ambientes: das palestras em entidades científicas e da sociedade civil aos seminários com jornalistas, estudantes e mesmo pesquisadores de outras áreas, como o Direito. 

“Estamos no mesmo barco, mas, no Titanic, os que tinham primeira classe morriam menos que os demais”, enfatizou, em uma das lives que participou – o seminário ISC em Casa, promovido por pesquisadores do instituto. 

O cenário, segundo ele, é de um Brasil que vive crises políticas, econômica, sanitária e social – tudo ao mesmo tempo. Tudo isso agrava a pandemia no país.

“No nosso caso específico, temos um SUS extremamente potente, com uma possibilidade grande de ser criativo nessa situação. Mas, ao mesmo tempo, ele vive, nos últimos 30 anos, com um subfinanciamento crônico, convivendo com um setor privado subregulado e que tem sido objeto de prioridade”, analisou, na ocasião. 

O professor Jairnilson Paim ingressou na Ufba pela primeira vez em 1967, na graduação em Medicina
(Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)

Mas não basta debater: a covid-19 e o SUS também viraram um projeto de pesquisa. Submetido a um edital do CNPq e sob a coordenação da professora Isabela Pinto, diretora do ISC, o projeto foi aprovado e deve reunir investigações sobre modelos, estratégias e ações de vigilância e de proteção aos trabalhadores, comparando sistemas de saúde. 

“A vigência é de dois anos, ainda que os resultados devam ser publicizados no processo e não apenas no término do projeto”, adiantou o professor Jairnilson. 

O pesquisador

Mas, no que se refere a ele mesmo, os dados – a exemplo do próprio número de cópias vendidas por um de seus principais livros – falam por si. Aos 71 anos, aposentado desde janeiro de 2019, ele é um dos pesquisadores com produtividade 1A na Ufba, onde cursou todos os seus estudos. Da graduação em Medicina, iniciada em 1967, passando pelo doutorado em Saúde Coletiva, concluído em 2007, até chegar ao ponto mais alto da carreira científica no CNPq, toda sua trajetória esteve ligada à Ufba. Prata da casa, diriam alguns. 

Nas comunidades acadêmicas, é comum haver movimentos para evitar a chamada endogenia – o nome, emprestado da Biologia, diz respeito à ação de se formar e ficar, o tempo todo, no mesmo grupo, no mesmo lugar. Daí, inclusive, os programas de estímulo à internacionalização das universidades. Mas o professor Jairnilson, de alguma forma, foge à toda regra. 

“Tudo que fiz foi na Ufba a partir da Ufba. Eu não fiz nenhum curso no exterior. Não falo isso por soberba; falo para expressar minha gratidão à Ufba. Tudo que eu sou e fiz foi pela Ufba”. 

(Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)

Em sua entonação, muito mais uma constatação do que qualquer outra coisa. Se sua vida tivesse sido alvo de uma investigação científica, no meio do caminho, os autores de estudo certamente se deparariam com os seguintes números: 163 artigos completos publicados em periódicos, 14 livros publicados, 33 mestres orientados (inclusive o ex-reitor da instituição Naomar de Almeida Filho) e 15 doutores formados. 

Comunidade

O professor entende que, para quem está distante da vida na universidade, esses números representam outro universo – ou podem nem representar nada. Acredita que muita gente não conhece o trabalho que é feito por pesquisadores. Alguns até usufruem do que é produzido pelos estudos, mas não sabem que aquilo ali começou com cientistas.

Por isso, em junho do ano passado, foi um dos responsáveis por uma aula pública na reitoria da Ufba. Ele e outros colegas tiveram a iniciativa de criar a aula, que teve como tema ‘A universidade e o direito à saúde’. Queriam defender a instituição e, ainda, mostrar à sociedade o que, de fato, se produz ali. O momento era crítico: em maio, o Ministério da Educação (MEC) tinha anunciado o bloqueio de mais de R$ 55 milhões do orçamento de custeio da Ufba – ou seja, mais de 30% da verba destinada a despesas como água, luz, limpeza e segurança.

Em junho de 2019, o professor Jairnilson ministrou uma aula pública com a participação de outros docentes, como o reitor João Salles
(Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO)

“Tem uma palavra em inglês que é ‘accountability’ (prestação de contas). Significa que você tem uma responsabilização pelo que está fazendo. Ao mesmo tempo que você dedicou sua vida à pesquisa, também é importante divulgar o que estamos fazendo”, disse. 

O exemplo para compreender como o trabalho dos pesquisadores chega à população não poderia ser mais claro, em seu caso. Em seu perfil na Plataforma Lattes, o professor Jairnilson resume seus interesses de pesquisa em política de saúde, planejamento em saúde, reforma sanitária brasileira e SUS. 

O SUS, sobre o qual tanto se debruçou, só existe graças a professores como ele. O sistema único que oferece desde vacinas e o programa de Saúde da Família até tratamentos contra o câncer não veio do estado. Não começou por uma iniciativa de governo, nem por projetos de partidos políticos. 

“A universidade fundamentou o direito à saúde pelos estudos, pela revisão da experiência prévia em outros países, pela discussão que os alunos faziam com professores nas semanas comunitárias de saúde, pelo fato de os professores e estudantes irem a comunidades na Zona Leste de São Paulo; em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro; em Plataforma e no Nordeste de Amaralina, em Salvador”. 

Agora, diante da pandemia, o sistema tem sido colocado à prova mais uma vez. Uma das perspectivas de estudo do projeto elaborado sobre covid-19 é justamente tentar identificar quantas vidas foram salvas por sistemas universais de saúde, como o SUS, e sistemas privados, chamados por ele de pró-mercado. 

“Apesar de o SUS ter sido reduzido e desestruturado nos últimos cinco anos, diferentes setores da sociedade e do estado reconhecem a sua efetiva contribuição para o enfrentamento da pandemia no Brasil. Já o sistema de saúde norte-americano, segmento majoritariamente privado, acumula até o momento mais de 113 mil mortes”, disse, referindo-se aos números na ocasião em que falou com a reportagem, na segunda semana do mês de junho.  Hoje, as mortes por covid-19 nos Estados Unidos já passam de 126 mil. 

Interesse pela pesquisa

No segundo ano do curso de Medicina, no fim da década de 1960, o então estudante Jairnilson participava de seu primeiro grupo de estudos. Ainda não era na universidade; o grupo era vinculado ao Hospital Aristides Maltez. Na Ufba, a pesquisa veio lá pelo quinto ano da graduação, quando foi convidado a participar de uma pesquisa sobre Doença de Chagas. 

“Em um verão baiano, enquanto todo mundo estava indo para praia, eu estava fazendo pesquisa com camundongos, ratinhos e as culturas de Trypanosoma cruzi (o agente etiológico da Doença de Chagas)”, lembrou, aos risos. 

Nessa época, a Ufba já contava com um departamento de Medicina Preventiva. Por ali, continuou se aproximando das pesquisas. Tornou-se monitor e, quase todo fim de semana, viajava para a zona rural de cidades como Sapeaçu e Cruz das Almas. Lá, faziam exames com as fezes das crianças para a pesquisa de campo. Depois, participou de um projeto em um centro de saúde no Nordeste de Amaralina. 

Foi na monitoria que percebeu que queria ser professor universitário. Era algo que, até então, nunca tinha sido cogitado. Daí, emendou a graduação no mestrado. Ainda no sexto ano da faculdade, sabia que faria mestrado em Medicina e Saúde. Foi ali que teve o primeiro contato com um tema que viria a acompanhá-lo durante toda a vida: os indicadores de saúde no Brasil. 

“Nós vivíamos, na época, numa ditadura, em que essas relações entre saúde e sociedade não era bem discutidas. Nós vivíamos um paradoxo: era um momento em que o PIB crescia 10% ao ano, em média, e as condições de saúde da população estavam piorando”. 

Em 1975, ano que defendeu a dissertação, se tornou professor – passou em uma seleção pública para ser professor auxiliar. Naquele mesmo ano, abriu um concurso para professor assistente, em que os candidatos precisariam ter uma tese, que equivaleria à tese de doutorado hoje. Assim, naquele mesmo ano, o professor Jairnilson defendeu uma dissertação e escreveu uma tese. Passou por cada degrau da carreira acadêmica até alcançar o mais alto – o de professor titular – em 2000. 

Só a versão impressa do livro vendeu 15 mil exemplares e, de acordo com a Editora Fiocruz, é um dos carros-chefe. É possível conferir o texto na íntegra no e-book interativo de acesso aberto e gratuito clicando aqui. A versão digital tem mais de dois mil acessos por mês (Foto: Divulgação/Editora Fiocruz)

Produtividade

A relação com o CNPq veio de forma concomitante. Desde 1978, é bolsista do órgão. Se tornou 1A, pela primeira vez, em algum momento entre 1980 e 1990. Não sabe ao certo. Só que a produtividade é constantemente avaliada. Em algum ano, passou a ser 1B e depois, há uns cinco ou seis, voltou a ser 1A. 

“Você poderia imaginar ‘ah, ficou mais burrinho’, mas não é bem assim. É que se tiver outros tantos disputando vagas, você termina, às vezes, deslocando algum para 1B. Se eu publiquei 10 trabalhos e alguém chegou e publicou 30, pode ser que ele pegue minha vaga, porque é uma situação muito competitiva”. 

De 2013 até o ano passado, tocou um de seus maiores projetos. Venceu um edital do CNPq com o Ministério da Saúde para criar uma rede de pesquisadores em política de saúde com uma ferramenta chamada Observatório de Análise de Políticas e Saúde e um centro de Documentação Virtual alimentado pelas próprias pesquisas. 

O projeto do Observatório de Análise Política em Saúde foi coordenado pelo professor por cinco anos
(Foto: Reprodução)

Esse projeto tinha 12 eixos de pesquisa, além de reunir profissionais da Bahia, e de instituições como a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal do Ceará (UFC). Juntos, estudaram temas como a judicialização da saúde, o próprio SUS, a saúde na infância e a relação da mídia com a saúde. No início do ano passado, apresentaram o relatório. 

“Uma das coisas que mais chamou atenção foi ver um país em que a saúde sempre foi subfinanciada enfrentar, a partir de 2015 e 2016, um conjunto de políticas de austeridade. A política de austeridade é um remédio para a crise, mas o remédio pode ser pior do que a doença”, ponderou. 

O alerta vem acompanhado de uma lista. Cita exemplos concretos que documentaram de lá para cá: o crescimento da mortalidade infantil, o reaparecimento do sarampo, ameaças ao avanço do controle do HIV/AIDS. 

Sem férias

Para os alunos, tem uma orientação frequente: o pesquisador não deve negar o senso comum, mas superar. Não basta ler um artigo. Tem que olhar a metodologia para ver se é compatível com o objetivo e as conclusões. Se não for, os resultados, por consequência, serão questionáveis.

Pesquisador 1A do CNPq, dedicou a vida a estudar o SUS e as políticas de saúde
(Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)

“A atenção básica diminuiu as internações hospitalares. Antes, a maioria das hospitalizações era por diarreia e, depois do SUS, praticamente ninguém com diarreia se hospitaliza. Ou seja, é porque está resolvendo na atenção básica”, dizia. 

A Ufba tinha anunciado funcionamento parcial no início do segundo semestre de 2019; a medida foi justamente para reduzir os gastos após os cortes de recursos repassados pelo MEC. Muitos professores aproveitaram o período para tirar férias, inclusive porque o acesso à universidade estava restrito. Mas não o professor Jairnilson. 

“Eu já estava de férias”, riu, referindo-se à aposentadoria. Em seguida, explicou: mesmo com ele aposentado, o grupo de pesquisa continuava trabalhando, com reuniões transferidas para o turno da manhã. Antes da entrevista, marcada para 10h, tinha feito duas sessões de orientações. 

Nas aulas, tenta fazer relações com a arte. Durante toda a conversa com o CORREIO, fez citações e analogias. Citou Karl Marx duas vezes; numa delas, a célebre frase de que ‘se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária’. Em outro momento, lembra a Estação Primeira de Mangueira. 

“Infelizmente, só vi o desfile pela televisão. A Mangueira é uma favela, um morro, que produziu coisas incríveis. Cartola era da Mangueira. Mas eu quero chegar em Paulinho da Viola”, explicou, retornando ao assunto inicial: como, nas aulas, citava a música de Paulinho da Viola para a Mangueira para mostrar a relação entre ciência e a arte. 

“A vida não é só isso que se vê. É um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber”, completou, parafraseando Sei Lá, Mangueira, música de Paulinho da Viola e Hermíno Bello de Carvalho. Ou seja, continua, existem outras formas de entender a vida. William Shakepeare fez isso, Nelson Rodrigues também. 

Para o professor Jairnilson Paim, a sociedade tem obrigação de fazer ciência, mas não deve se deslumbrar com ela.

“A gente tem que entender que tem outras formas de saber que também são válidas para entender a vida, a realidade, o mundo”, enumerou.

O professor Jairnilson já formou 15 doutores e mais de 30 mestres
Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)

Biografias

É por isso que não lê só o que é produzido na sua área. Gosta de literatura, política, filosofia. É apaixonado por biografias. Na ocasião da entrevista, citou a leitura de Sobre Lutas e Lágrimas: Uma Biografia de 2018, lançado no ano passado pelo jornalista Mário Magalhães. 

Diz que demora de aprender coisas novas. Não tem e não usa celular. “Quem lhe disse isso, menina?”, perguntou, entre uma gargalhada e a explicação para evitar o aparelho. Além de se considerar ‘jurássico’, acha o celular muito invasivo. 

Escuta João Gilberto e, antes da pandemia, só não ia mais ao cinema porque os horários não lhe são muito atraentes. Ama a praia, especialmente o Porto da Barra e Guarajuba, em Camaçari. Também antes de ficar confinado, saía todos os dias para caminhar pelo Centro da cidade. Caminhando, explica, costuma ter ideias para projetos de pesquisa. De uma ‘andada’, no mínimo, vem a inspiração para um parágrafo ou um artigo. 

Pai de dois filhos (uma publicitária que fez doutorado em Saúde Coletiva e hoje é professora do ISC; e um advogado que integra o Conselho Estadual de Saúde), tem dois netos: um de 15 anos, outro de cinco. O mais velho diz que vai cursar Biologia; o mais novo ainda “está muito pirralhinho”. 

Se alguém, em algum momento, tentou desestimulá-lo na pesquisa, não funcionou. Vez ou outra, escuta uma brincadeira de algum amigo: os colegas médicos estão bem, financeiramente, e têm até fazendas; ele, por outro lado, ‘tem muito lattes’. 

“Eu nunca tive muito ânimo para ser rico, para ganhar dinheiro. Meus interesses são outros. Eu defendo o público. Fui, a vida toda, um servidor público. Na verdade, eu sou um servidor do público. Mesmo que o estado me pague, meu compromisso é com a população. Isso que me deu satisfação na vida”, justificou o professor Jairnilson, explicando, de forma indireta, o motivo de não gostar de falar na primeira pessoa do singular. 

Formação acadêmica, segundo o Lattes:

  • 2006 – 2007
    Doutorado em Saúde Coletiva – Ufba
  • 1973 – 1975
    Mestrado em Medicina e Saúde – Ufba
  • 1967 – 1972
    Graduação em Medicina – Ufba

Produtividade em números

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Maurício Barreto: o epidemiologista que está na linha de frente dos estudos sobre covid-19 https://especiais.correio24horas.com.br/ocerebrodaufba/mauriciobarreto/ https://especiais.correio24horas.com.br/ocerebrodaufba/mauriciobarreto/#comments Thu, 25 Jun 2020 04:18:18 +0000 https://especiais.correio24horas.com.br/ocerebrodaufba/?p=3062 Trabalhos do professor correram o mundo: da Universidade de Londres à OMS; hoje, ele também assessora os estados do Nordeste Em pouco tempo, o professor e […]

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Trabalhos do professor correram o mundo: da Universidade de Londres à OMS; hoje, ele também assessora os estados do Nordeste

Em pouco tempo, o professor e epidemiologista Maurício Barreto percebeu que o cenário era diferente. Desde o início de 2020, a produção científica tinha atingido níveis altíssimos devido à pandemia da covid-19. A cada dia, centenas de novas publicações continuam a ser divulgadas, em todo o mundo. Em algumas plataformas que reúnem artigos científicos, como Pubmed, há mais de 25 mil estudos disponíveis. 

O movimento não é injustificado: pouco se sabia sobre o novo coronavírus. Mesmo hoje, ainda há muitas perguntas sem resposta. Muito do que se conhece vem de experiências anteriores, como a gripe espanhola, em 1918. Por isso, tantos cientistas começaram a se debruçar sobre a doença. 

Mas não adianta que a produção seja tão grande e difusa se não houver quem consiga analisar e, a partir disso, divulgar para a sociedade – até porque muitas investigações sequer tiveram tempo de passar por revisão de pares. Foi nesse contexto que o professor Maurício decidiu criar a Rede Covida – um projeto de produção, seleção e divulgação científica sobre a covid-19. 

“Esse conhecimento precisa ser digerido para ser transformado em dado para a sociedade. O processo de produção é muito controverso. Tem dúvidas em várias áreas e saem controvérsias; um diz uma coisa, outro diz outra”, explica ele, que é professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde coordena o Centro de Integração de Dados para Saúde (Cidacs). 

A Ufba e o Cidacs são justamente as duas instituições que coordenam a Rede Covida, formada, hoje, por cerca de 150 pesquisadores e comunicadores voluntários. A maior partes está ligada a pelo menos uma delas, mas há gente de todo o Brasil e mesmo de outros países. 

Inicialmente, o objetivo não era fazer pesquisa. O principal foco do grupo, hoje coordenado por 11 pessoas, inclusive o professor Maurício, era organizar e sistematizar o conhecimento que vem sendo produzido. Divididos em áreas temáticas, fazem revisão de literatura, esclarecem dúvidas, produzem documentos e notas técnicas para a sociedade. 

Na mais recente, divulgada em junho, a Rede Covida desaconselhou o uso de ivermectina no tratamento da covid-19, devido à falta de provas científicas de que seja efetiva. 

“Se a gente começasse cada um com seu problema de pesquisa, o conhecimento continuaria muito disperso. Porém, mais recentemente, isso vem gerando questões de pesquisa. Como todo mundo é pesquisador, foi um desdobramento natural”, diz o professor Maurício, que está diretamente envolvido com um projeto que investiga os possíveis efeitos do bacilo de Calmette-Guérin (BCG) no coronavírus.

Pelo mundo

Por muitos anos, ele desenvolveu trabalhos sobre BCG na Ufba, mesma instituição onde formou-se médico e, posteriormente, virou mestre. Lá, com uma longa trajetória, se tornou um dos pesquisadores com produtividade 1A do CNPq, o mais alto grau de progressão na carreira científica do órgão federal, na instituição. 

Seus projetos, na verdade, foram além dos muros da Ufba. Os trabalhos sobre epidemiologia e saúde coletiva correram o mundo: da Universidade de Londres à Fiocruz Bahia; do Ministério da Saúde à Organização Mundial da Saúde (OMS). 

Em março deste ano, após uma atualização do CNPq, sua bolsa passou a ser ligada à Fiocruz, onde também atua há seis anos. Desde 2014, após ter se aposentado da Ufba no ano anterior, ele trabalha como pesquisador-especialista na fundação. Mas o vínculo com a Ufba continua tanto como professor emérito quanto professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. 

É por isso que, enquanto um dos grandes nomes da pesquisa em epidemiologia e doenças infecciosas, não consegue deixar de se preocupar com recentes tendências no Brasil e do mundo – a exemplo do movimento antivacina, considerado pela OMS uma das dez ameaças à saúde em 2019. 

Até poucos anos, esse comportamento era impensável, segundo o professor. Isso porque o programa de imunização brasileiro é considerado por especialistas uma conquista importante. 

“Tem muita pesquisa no Brasil, um movimento de tecnologia e a importância de mostrar os efeitos da vacina. Isso era impensável, mas acho que, com todo um movimento de descrédito da ciência surgindo nos últimos anos, é como se a ciência fosse uma coisa meio diabólica e o que ela contribuiu não fosse suficiente ou verdadeiro”, criticou.

Para o professor Maurício, a tendência anticiência é uma das mais estranhas, porque, por muito tempo, acreditava-se que a ciência estava consolidada. Ainda que seja sujeita a críticas e questionamentos, havia uma compreensão generalizada da sua importância. 

“Mas a epidemia (da covid-19) trouxe uma coisa: como a doença é muito nova, o único método de conhecer algo novo é através do método científico. Mais do que nunca, todo mundo viu que era necessário ter o método científico. E quem domina isso são os pesquisadores”, reflete. 

Nesse momento, a ciência tem conseguido orientar governantes – no Brasil, pelo menos governadores e prefeitos. Foi com o objetivo de fazer recomendações para políticas de saúde dos nove estados nordestinos que foi criado o comitê científico do Consórcio Nordeste, do qual o professor Maurício é um dos membros. 

No comitê, coordenado pelo neurocientista Miguel Nicolelis e pelo ex-ministro da Ciência e Tecnologia Sergio Rezende, ele é responsável pelo subcomitê de epidemiologia. 

“Cada estado tem sua autonomia, mas o comitê foi criado para dar assessoria. O papel é de interpretar o conhecimento científico e fazer recomendações. Tendo em vista que é algo que ninguém conhece bem, esse é o papel que a gente entende para a ciência”, diz o professor. 

Todo o trabalho tem sido feito de casa, de forma virtual. “Tenho 66 anos. Sou grupo de risco, então tenho me mantido em casa, mas é uma mudança na rotina de vida. Tudo por Zoom e outros aplicativos. Nós já tínhamos o hábito de fazer reuniões com grupos de fora no Cidacs, mas agora se intensificou”, conta.

Educação

Aos oito anos de idade, o pequeno Maurício Barreto viu seus pais tomarem uma decisão que mudou o destino da família: para dar uma educação melhor aos sete filhos, saíram de Itapicuru, no Nordeste baiano, com destino a Salvador. 

Foi o primeiro passo para que sua trajetória cruzasse os caminhos da ciência, anos mais tarde. Vieram os anos da adolescência; percebeu que gostava de Ecologia e quase acabou tornando-se biólogo. Mas, depois de conversas com a família e os amigos, foi aprovado no vestibular de Medicina da Ufba aos 17 anos – o único que prestara, em 1972.

“Eu já me interessava em fazer (o curso) na Ufba. Não fiz em outras universidades não só por questões econômicas, mas porque sabia que, na Ufba, existiam coisas diferentes”, lembrou. 

Seus principais interesses de pesquisa são doenças infecciosas e epidemiologia
(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Mesmo sem ter muita clareza do que significava ser um pesquisador, o Maurício da época do vestibular já sabia que queria trabalhar com questões do conhecimento. Queria estar ligado à ciência. Assim, logo no segundo ano do curso de Medicina, já tinha se aproximado dos professores que desenvolviam pesquisa. 

Com um grupo de colegas, acompanhou um professor que estudava os tecidos do corpo humano. Em seguida, deparou-se com a Epidemiologia – aquela que viria a ser sua companheira pelos anos seguintes. Na época de internato, no quinto ano, quando estava no Hospital Couto Maia, aplicou para uma bolsa de iniciação científica do CNPq.

“Naquela época, as bolsas eram muito raras. Hoje, é comum, mas, antes, tinha todo um processo de aplicação e consegui”. 

Enquanto cursava a graduação, percebia uma coisa: seu principal interesse era por questões gerais, que fossem além do paciente. Assim, a Epidemiologia apareceu como uma das possibilidades para entender as causas de saúde e de doença com relação às populações, da sociedade e do ambiente. 

Fez o mestrado em Saúde Coletiva e, a partir dali, decidiu que queria amadurecer como pesquisador. Começou a buscar, imediatamente, uma bolsa para fazer doutorado fora do Brasil. Foi assim que, em 1983, deu início ao doutoramento em Epidemiologia na Universidade de Londres, na Inglaterra. 

A adaptação foi difícil: era a primeira vez que viajava para fora do Brasil, justamente em um ano em que Londres passava por um inverno rigoroso.

“Eu tinha alguma fluência em inglês, mas até me acostumar com a língua, foi um pouco difícil. Mas, no final, foi uma experiência positiva, principalmente para conhecer o ambiente diferente das nossas universidades”, admitiu. 

Professor

Na Ufba, já era professor colaborador antes mesmo do doutorado – desde 1980.

Aposentado desde 2013, ele continua na pós-graduação fazendo pesquisas
(Foto: Marina Silva/CORREIO)

“Não fiz a opção de estar na universidade só por ensinar, mas para fazer pesquisa. Mas sempre gostei de ensinar e acho importante ter relação com os estudantes. É sempre uma coisa enriquecedora, porque não entendo o pesquisador como algo isolado do mundo”. 

Mas, uma hora, é preciso parar. A vida de professor é dura. Por isso que se aposentou em 2013, mas decidiu continuar na pós-graduação, desenvolvendo suas pesquisas.  

Nos últimos anos, essa pesquisa foi direcionada ao estudo de impactos de grandes intervenções sobre a saúde da população. Primeiro, desenvolveu um teste para saber se a revacinação com BCG tinha efeito na saúde. Depois, o professor Maurício e seu grupo avaliaram o Bahia Azul, programa de saneamento ambiental dos anos 1990, na saúde. Por fim, vieram estudos sobre os efeitos de programas sociais como Bolsa Família nos indicadores de saúde. 

Desde 2016, ele coordena o Cidacs – um centro ligado à Fiocruz-Bahia por meio de um convênio com a Ufba, que utiliza grandes bases nacionais para fazer estudos epidemiológicos sobre impactos nas populações. Só no centro, lidera um grupo grande de jovens pesquisadores, a exemplo de 14 pós-doutores. 

“Nós tivemos a sorte de ainda não ter sofrido um impacto grande no cotidiano porque a gente conseguiu alguns financiamentos antes dessa crise e tem conseguido manter o centro. Mas a situação é extremamente preocupante e estamos ficando no nosso limite. Se agravar mais, pode se catastrófico”, alertou.

Em 2016, o professor Maurício Barreto deu um depoimento especial para as comemorações dos 70 anos da Ufba. “Minha história toda é na Ufba”, afirmou

Reconhecimento

A classificação para 1A veio há mais de 20 anos, em 1998. Já era pesquisador do CNPq há pelo menos 11 anos. Para ele, é um reconhecimento da comunidade científica. Algo que indica que, entre seus pares, é aceito como alguém que contribuiu para sua área. Mas, além disso, é membro de entidades como a World Academy Science – associações que, para participar, é preciso ser escolhido por outros pesquisadores. 

Esse prestígio, na avaliação dele, é importante para a Ufba. Ao contrário de intelectuais e escritores, por exemplo, que escrevem para si, o pesquisador tem um vínculo institucional. 

“O prestígio está dividido com esse vínculo. Acho que a universidade é muito baseada em pessoas. Claro que tem a estrutura, mas uma das coisas mais importantes e centrais é a contribuição que as pessoas dão”, disse. 

Ele nunca teve meta de produção. Mesmo assim, tem índices altos – 482 artigos publicados em periódicos, por exemplo. A diferença, ressalta, é que sua área é uma das que os pesquisadores mais trabalham de forma integrada. 

Ou seja: todos trabalham como um grande time. Ainda que existam experiências e lideranças, a maioria das áreas da ciência não tem mais o pesquisador que trabalha individualmente.

“Temos a idealização do vencedor do Prêmio Nobel (como alguém que é destaque individual), mas isso está se diluindo cada vez mais, principalmente quando envolve trabalhos empíricos”.

Hoje, o professor Maurício coordena um centro de dados em parceria com a Fiocruz, o Cidacs
(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Em casa

Na família do professor Maurício, alguns dos irmãos – filhos de um coletor (o antigo auditor fiscal) e de uma costureira – tornaram-se professores da Ufba. O professor Maurício casou com uma professora: a também médica Estela Aquino, referência nos estudos de Gênero e Saúde. 

Dos três filhos que teve, apenas um não seguiu a carreira de pesquisador – formou-se cirurgião. A outra fez Direito e, atualmente, cursa o doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A terceira filha, historiadora, já fez mestrado e trabalha no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Nas horas em que não está pesquisando, continua lendo. Mas procura outros interesses; já esteve muito interessado em filosofia, por exemplo. Acompanha periódicos porque sente que precisa estar constantemente atualizado com o que acontece no mundo.

Parte da família do professor Maurício é de pesquisadores: assim como ele, a esposa e duas filhas são cientistas
(Foto: Marina Silva/CORREIO)

“Não sou um solitário, mas gosto da solidão. Gosto de ficar sozinho, às vezes, para pensar. Eu tento me conectar com outras coisas que vão além do limite da ciência que eu faço”, explicou.

Formação acadêmica, segundo o Lattes:

  • 1983 – 1987
    Doutorado em Epidemiologia – University of London, UL, Inglaterra
  • 1979 – 1982
    Mestrado em Saúde Coletiva -Universidade Federal da Bahia
  • 1977 – 1977
    Especialização em Saúde Pública – Fundação Oswaldo Cruz, Fiocruz
  • 1972 – 1977
    Graduação em Medicina – Universidade Federal da Bahia

Produtividade em números

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Ele desenvolve pesquisas sobre doenças como leishmaniose e infecções tropicais

Edgar Marcelino de Carvalho Filho acabara de se tornar especialista em reumatologia e imunologia. Tinha chegado ao fim de uma pós-graduação na Universidade da Virginia, nos Estados Unidos, quando recebeu um convite de um de seus mentores no curso.

“Estou sendo convidado para ser o chefe do setor de reumatologia e imunologia na Universidade do Sul da Califórnia. Gostaria de levar dois fellows daqui. Um deles é você”, disse o mestre, naquele ano de 1979. Quando o hoje professor Edgar conta o episódio, mantém o termo em inglês que se refere aos pesquisadores.

Na época, já tinha feito mestrado em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Concluíra o curso em 1977, mesmo ano em que aportou nos Estados Unidos. Talvez por isso nem tenha pensado muito sobre a resposta.

“Eu disse: minha decisão já está tomada. Quero voltar para a Bahia, para a Ufba”, lembra, em entrevista ao CORREIO.

Hoje, ele é um dos pesquisadores com produtividade 1A pelo CNPq na Ufba. Ou seja, ele está no nível mais alto da pesquisa científica no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Quando decidiu retornar, porém, esse não era sequer um cenário que costumasse imaginar. “Mas voltar sempre foi o meu pensamento”, diz ele, hoje com 70 anos.

(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Na verdade, o professor Edgar queria mais do que voltar à Ufba. Tinha planos maiores. Queria criar um setor de imunologia que funcionasse dentro do Hospital das Clínicas – como é comumente chamado o Hospital Universitário Professor Edgar Santos (Hupes). Acreditava que era o lugar mais apropriado para isso.

“Não existia imunologia na Bahia e esse sempre foi o meu desejo. Também sempre fui ligado a doenças infecciosas, porque as doenças tropicais eram endêmicas aqui na Bahia, mas não se fazia imunologia aqui”, explica.

Foi assim que chegou à Universidade da Virgínia. Queria trazer uma nova área de estudo e atendimento para o estado natal. De fato, era uma área nova. Mesmo em países desenvolvidos, ainda não eram comuns cursos específicos sobre o sistema de defesa do organismo. Muitos, como o que ele cursou, eram especializações em conjunto com a reumatologia.

(Foto: Marina Silva/CORREIO)

De lá para cá, a imunologia e os estudos sobre imunidade se desenvolveram tanto que permitiram que o professor Edgar vivesse uma situação diferente da maioria dos pesquisadores, diante da pandemia da covid-19. Ele foi diagnosticado com a doença em 24 de março, quando a Bahia não tinha sequer óbitos registrados e a maioria dos casos era importado.

As pesquisas sobre imunidade ao novo coronavírus ainda não são totalmente conclusivas, mas alguns estudos indicam que ela pode existir. A maior incógnita é de quanto tempo essa imunidade pode durar. No caso dele, depois de 12 dias de sintomas leves, estava completamente recuperado.

“Não precisei ir para o hospital e praticamente não tive manifestações respiratórias. Mas senti muito cansaço, dor, perda de apetite e do olfato”, lembra. Isso, explica ele,  fez com que se sentisse seguro para continuar trabalhando após o período de isolamento, tanto com os atendimentos, quanto com a pesquisa.

Ainda que não trabalhe diretamente com a covid-19, assim como tantos outros médicos e profissionais de saúde que adoeceram e voltaram a trabalhar, ele retornou ao campo de batalha. “Não parei. Continuo trabalhando igual”, garante. 

Estrutura

Trazer a imunologia para a Bahia não era uma tarefa fácil. Edgar queria desenvolver o projeto na Ufba, mas não tinha nenhum vínculo empregatício com a universidade. A sorte, porém, foi que teve um apoio importante: o professor Heonir Rocha, que tinha sido seu orientador no mestrado. Rocha, inclusive, se tornaria reitor da universidade anos depois, entre 1998 e 2002.

O ex-orientador abriu portas, até no sentido literal. Ofereceu o próprio laboratório para que Edgar começasse a desenvolver as pesquisas. Conseguiu, ainda, uma sala para que o laboratório de imunologia começasse a ser implantado. O espaço não devia ter mais do que 20 m², no quinto andar do hospital.

“Naquela ocasião, minhas pesquisas eram voltadas para estudar população de linfócitos e isso era feito através de um microscópio de imunofluorescência que eu não tinha”, diz o professor Edgar.

O setor da patologia, porém, tinha o equipamento. Assim, se acostumou a descer escadas constantemente: preparava o material no 5º andar; descia para analisá-lo no terceiro subsolo em seguida. Quando fazia avaliações de proliferação linfocitária, outra peregrinação: o único equipamento capaz disso, em todo o estado, ficava na Maternidade Climério de Oliveira, também da Ufba.

A distância entre as duas unidades de saúde é de pouco mais de cinco quilômetros – enquanto o Hupes fica no Canela, a maternidade está localizada em Nazaré.

O laboratório de imunologia só recebeu os próprios equipamentos em 1980. Na ocasião, já professor da universidade, Edgar foi convidado por um professor da Cornell University a participar de um grande projeto de pesquisa apoiado pelo National Institute of Health. Desse projeto, vieram os recursos.

(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Mas foi só dez anos mais tarde que o serviço se organizou como sonhava. Na época, um programa da Organização Mundial da Saúde, do governo federal e do governo da Bahia forneceu os recursos para o Serviço de Imunologia. 

“Esse é um serviço grande, que ocupa uma área de cerca de 600 m² no quinto andar do Hospital Universitário, onde temos cinco laboratórios. Isso fez com que vários pesquisadores se agregassem ao serviço e esse trabalho em conjunto fez com que a imunologia na Bahia crescesse nacionalmente e internacionalmente”, orgulha-se.

Leishmaniose

Desde o início, o professor Edgar tentou desenvolver diferentes pesquisas simultâneas. Atribui essa característica à juventude. Os principais focos foram as leishmanioses – visceral e tegumentar (cutânea). Essa doença é provocada por um parasita que se multiplica justamente no sistema imunológico. Se o diagnóstico for tardio, pode mais facilmente levar à morte.

Basicamente, queria entender como o corpo humano se defende dos agentes infecciosos e parasitários ao mesmo tempo em que investigava se esses mesmos agentes provocavam doenças nas pessoas. Um dos pontos norteadores da pesquisa, ao longo desses anos, foi o fato de que a resposta do hospedeiro tem relação direta com o desenvolvimento da doença.

Aos poucos, chegaram a conclusões como a de que alguns infectados pela leishmaniose não podem ser identificados como doentes. Pelo contrário: são protegidos da doença. “Esse é um dado importante porque esses indivíduos nos ensinam como podemos nos defender contra esses agentes infecciosos. Eles contribuem, por exemplo, para o desenvolvimento de vacinas”.

Foi também o grupo do professor Edgar que identificou uma mudança no tratamento da leishmaniose, que é estudado há mais de 60 anos. Eles mostraram que, em pacientes com a leishmaniose mucosa, a associação do tratamento que já é usado, com a pentamidina, com outra droga – a pentoxifilina – aumentava a eficácia, as chances e o tempo de cura. Ainda foram os primeiros a documentar a eficácia de uma droga por via oral na leishmaniose – a miltefosina, que foi liberada pelo Ministério da Saúde em 2018.

(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Consultas

No Serviço de Imunologia, funciona, ainda, um ambulatório de HTLV. Descoberto em 1981, o vírus HTLV1 é muito frequente na Bahia. Salvador fica em primeiro lugar, entre as capitais brasileiras com maior índice de infectados. O percentual varia, segundo os estudos, de 1,5% a 3% da população.

Em 2001, duas décadas após a descrição do vírus, o professor Edgar criou o ambulatório. Ao longo dos anos, descreveram várias manifestações clínicas até então desconhecidas do vírus. Sem tratamento, o vírus causa problemas urinários. A pessoa passa a não conseguir controlar a urina.

Uma vez, enquanto atendia no ambulatório, ficou comovido com uma paciente – uma senhora idosa que lhe disse que não conseguia mais usar calcinha. Que não tinha como controlar, quando precisava urinar. Ela sentava apenas na parte de trás do ônibus porque, quando o coletivo abria a porta, ela saía correndo. Precisava urinar.

“Fizemos um trabalho com o serviço de fisioterapia do hospital e temos tratado esses pacientes com eletrofisioterapia. Assim, eles têm melhorado esse quadro associado ao HTLV”, diz.

(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Por pesquisas assim, foi natural ser financiado pelo CNPq, ainda na década de 1990. Ele não sabe, ao certo, quando se tornou 1A – provavelmente em 1995, antes dos anos 2000. É natural, claro, que daí saiam outras oportunidades. O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Medicina Tropical, que coordena desde 2009 com 25 pesquisadores, é uma delas.

Foi com as pesquisas de medicina tropical, inclusive, que o professor Edgar coordenou a descrição e a caracterização de um surto de esquistossomose aguda. Esses bichos, diz, em tom leve, são muito inteligentes.

“A resposta imune é uma coisa que a gente luta muito, mas, quando a resposta é exagerada, ela que causa o problema. E esses bichos escapam do mecanismo de defesa e continuam no organismo”, explica.

Os INCTs, como são mais conhecidos, só podem ser coordenados por pesquisadores classificados como 1A ou 1B.

“Eu sempre tive essa atenção voltada para poder melhorar, em alguma coisa, essas doenças que eu estudo. Esse é o foco principal do pesquisador. Ser 1A é uma consequência natural das coisas”.

Sala de aula

Edgar sempre quis ser professor. Quando entrou no curso de Medicina da Ufba, em 1968, se aproximou de professores e já acompanhava as atividades científicas que eles desenvolviam. Logo viu que queria ser um deles.

Filho de um clínico geral e de uma professora também dona de escola infantil, tinha crescido em um ambiente em que as duas profissões conversavam – literalmente. O pai também era professor; dava aulas na escola primária da família. Fundada em 1934, a Escola Antônio Calmon funcionou até cinco anos atrás. 

Quando regressou à Bahia, vindo da Virginia, um colega, professor da Ufba, perguntou: entraria na medicina privada? Respondeu que não. A criação do serviço de imunologia no estado estava diretamente ligada ao seu objetivo de vida: ser professor da Ufba. “Não vai passar de um Fusca”, ouviu, do colega. 

Além da Ufba, também foi professor titular da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública de 1986 a 2016. Mesmo com a agenda apertada, foi chamado a dar aulas duas vezes por semana. Aceitou por um motivo: ampliar o ensino da imunologia.

“Não vamos discutir se o homem interfere no meio ou se o meio interfere no homem. O fato é que minha decisão de fazer Medicina e de gostar de ensinar começou realmente na adolescência”, conta.

De 1980 a 2014, quando se aposentou, nunca deixou de ensinar na graduação. Ministrava as disciplinas de Clínica Médica e Imunologia Clínica – foi na primeira, uma obrigatória, que tornou-se professor titular. De 2002 a 2014, também, foi chefe de uma das enfermarias do Hupes. Lá, era responsável por 16 doentes que ficavam internados, além dos três ambulatórios (dois de imunologia e um de HTLV).

Hoje, só dá aulas na pós-graduação, mas não deixou de atender. Às quartas-feiras, por exemplo, pode sempre ser encontrado no ambulatório de HTLV. A cada quinze dias, passa as quintas e sextas-feiras no posto de saúde de Porto de Pedra, um distrito de Presidente Tancredo Neves, município no Sul da Bahia.

Em 1986, identificaram que a região era endêmica para leishmaniose no estado. De lá para cá, instituíram o espaço como um centro de referência para o diagnóstico e tratamento das leishmanioses.

“O ensino sempre foi minha meta maior e, enquanto eu puder transmitir coisas relevantes para os alunos, vou fazer isso. A pesquisa foi uma consequência. Mas também nunca pensei em parar essa rotina de contato com os pacientes”, garante.

Em 2016, o professor Edgar gravou um depoimento especial para as comemorações dos 70 anos da Ufba

Além disso, duas tardes por semana, atende consultas particulares em seu consultório, em Salvador, e ainda vai diariamente à Fundação Oswaldo Cruz, onde também é pesquisador. Depois de ter se infectado e se curado da covid-19, o professor Edgar continua indo e atendendo presencialmente em todos esses espaços. 

Porém, conseguiu notar uma redução no número de pacientes que busca os serviços – seja devido às restrições de transporte público, seja porque muitos têm evitado ir a hospitais. “Mas as atividades continuaram. Sei que não é o que aconteceu com todo mundo, porque eu tive a doença e fiquei imune, e não podia parar pelo fato de lidar com pacientes”. 

Família

De fato, não dá para dizer quem influencia – o homem ou o meio. O que se sabe é que, após ter unido a carreira dos pais, o professor Edgar viu dois dos três filhos se tornarem médicos pesquisadores. O mais velho, Lucas Pedreira de Carvalho, também é professor de Imunologia da Ufba e pesquisador nível 2 do CNPq. O mais novo, Augusto, faz pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia, também na área de imunologia. O filho do meio, por sua vez, é publicitário.

A esposa também é médica – pneumologista; o neto de 21 anos estuda Medicina. Mas, pelo visto, não deve seguir a área de imunologia.

“Ele é muito interessado pela parte clínica e acho que a pessoa deve ser assim mesmo”, disse.

Das 7h da manhã até o início da noite, ele está focado nos trabalhos de pesquisa, ensino e no dia a dia ambulatorial. Depois, é como se desligasse a tomada. A vida é outra. Antes do período de confinamento, era o momento de ler, jogar tênis, fazer caminhadas, ir ao teatro.

“A vida de pesquisa não atrapalha, de maneira nenhuma, a vida social”, garante.

Formação acadêmica, segundo o Lattes:

  • 1985 – 1986
    Doutorado em Medicina – Ufba
  • 1977 – 1979
    Especialização em Reumatologia e Imunologia – University of Virginia (Estados Unidos)
  • 1974 – 1977
    Mestrado em Medicina e Saúde – Ufba
  • 1968 – 1973
    Graduação em Medicina – Ufba

Produtividade em números

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