Por Daniela Leone

Impossível apagar da memória

Dor. Sangue. Choro. Desespero. Sofrimento. Luta por sobrevivência. Adeus. Dez anos se passaram, mas o cenário de horror do dia 25 de novembro de 2007 segue guardado na memória até mesmo de quem é treinado para esquecer as mazelas do cotidiano. “Deletar aquelas informações? Não tem como. Mesmo que passem os anos, vão ficar em algum bloco da memória”, afirma a cabo Cássia Santos, 43 anos, 14 deles servidos ao Corpo de Bombeiros. “Essa foi a pior ocorrência de que eu já participei. A mais forte de todas”, revela ao lembrar de uma das maiores tragédias do futebol brasileiro. O piso de parte da arquibancada da antiga Fonte Nova cedeu e sete torcedores do Bahia perderam a vida em decorrência da queda.

Após 15 metros, o que se via estendido no chão chocava até os olhares mais calejados. “A cena era muito feia. Eu tive que desligar alguma coisa dentro de mim, porque senão não conseguiria raciocinar. Foi um horror tão grande, um absurdo. Era feio. Já vi coisas feias, mas acho que foi a quantidade de corpos, do jeito que foi... Tive dificuldades de dormir. Foi impressionante aquilo ali”, relembra a médica Eda Vinhaes Dantas, 53 anos, 25 deles dedicados à medicina. Na ocasião, ela trabalhava no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Estava de plantão dentro do estádio, à beira do campo, durante o jogo Bahia 0x0 Vila Nova-GO, pelo octogonal da Série C do Campeonato Brasileiro.

Cássia e Eda fazem parte de um time convocado em caráter de emergência com o objetivo de amenizar a dor e o caos instalado no entorno da Fonte Nova naquele 25 de novembro de 2007. Apesar dos esforços, o chamado já não permitia tantos atos de heroísmo. Sete pessoas perderam a vida, seis logo após a queda e uma a caminho do hospital: Márcia Santos Cruz, 27 anos; Jadson Celestino Araújo Silva, 25 anos; Milena Vasques Palmeira, 27 anos; Djalma Lima Santos, 31 anos; Anísio Marques Neto, 27 anos; Midiã Andrade Santos, 24 anos, e Joselito Lima Júnior, 26 anos, saíram de suas casas para ver o time do coração jogar e nunca retornaram.

A cabo Cássia foi uma das primeiras socorristas a chegar ao local do acidente. “As pessoas estavam estendidas pelo chão, várias delas ainda com pedaços de concreto em cima dos corpos, todas com a camisa do Bahia, do time do coração. Muitas não dava nem para reconhecer o rosto”, descreve. “A gente só não chorou porque não cabia, porque tínhamos que socorrer quem ainda estava com vida e a gente buscou vida”.

Encontraram. Quatro tricolores sobreviveram: Jader Landerson Santos Azevedo, Denys Henrique Santos de Jesus, Germano Andrade e Patrícia Vasques Palmeiras resistiram à queda. “Era muito mais que um chamado de emergência. Só estando no momento e na hora para entender”, completa a cabo.

Eda não soube de imediato o que havia ocorrido fora da Fonte Nova. A médica estava ocupada com quem tinha se ferido dentro do estádio. Eufóricos com a conquista do acesso à Série B, torcedores do Bahia invadiram o campo após o jogo e deram a ela muito trabalho. “Eu nunca vi aquilo, as pessoas caíam da arquibancada para o campo, comiam grama, roubavam rede do gol. Começaram a vir os traumas, pisoteados, fraturas de braço, de ombro, traumatismos cranianos. As pessoas passaram umas por cima das outras. Aquilo foi uma barbárie”, recorda.

A médica ficaria ainda mais chocada ao saber da tragédia desenhada do lado de fora do estádio. “Já tinha um volume absurdo de gente machucada e aí um policial diz ‘doutora, caiu a arquibancada e tem mais de 20 pessoas feridas lá fora’. E como é que sai com tanta gente? A sirene ligada e a gente não conseguia passar. O policial desceu e começou a empurrar as pessoas”. Foram mais de 20 minutos até sair do estádio e chegar ao local do acidente, onde equipes da Vitalmed já tinham iniciado o atendimento. “Quando eu cheguei existiam duas ambulâncias atendendo duas pessoas vivas e a gente ajudou essas duas unidades”, pontua a médica.

Torcedor do Bahia, o cabo Jailton Ferreira, 44 anos, já estava no local. Ele só não foi para a Fonte Nova naquele dia incentivar o clube do coração porque estava em serviço. Não imaginava ser chamado para uma ocorrência justamente no estádio. “Disseram pra gente que parecia ter caído um muro lá. Foi um momento triste. Aquele lugar era um dos que eu ficava na época que ia para a Fonte Nova com meu pai. Eu poderia estar lá e ser uma vítima”, enfatiza o bombeiro. Também tricolor, o sargento Paulo Cézar Vieira, 45 anos, pensou o mesmo ao chegar ao local para prestar socorro. “Caiu justamente onde ficava a torcida Bamor, e tinha dias que eu ia para lá. Fiquei imaginando que poderia ser comigo. No jogo anterior eu estava naquele local”.

Sensibilizados com a tragédia, os bombeiros fizeram mais do que isolar a área e ajudar no atendimento às vítimas. Deram afago. “Os familiares estavam em tanto desespero que não pensavam em nada, só em gritar e chorar. Eles vinham para abraçar a gente e a gente teve que abraçar eles. A gente atendia as vítimas e ao mesmo tempo abraçava os familiares, porque eles também estavam precisando de amparo”, relata a cabo Cássia.


Bombeiro e torcedor, major estava de folga no estádio

A cada reconhecimento, sofrimento ou alívio. O major Ramon Dieggo Pimentel estava na Fonte Nova assistindo ao jogo e, ao sair do estádio, foi ao local do acidente verificar o que havia acontecido. A folga acabou naquele momento e um desafio começou: montar uma malha de respostas. “Como muitas pessoas foram para o estádio e não retornaram, começou a ter procura por essas pessoas e ninguém sabia de fato quem tinha sido vitimado, só os parentes que estavam próximos ao local e foram verificar. Houve um clamor para saber quem eram as vítimas. Todo mundo perguntava quem são, quantos são, para onde foram. Além do resgate, tentamos organizar as informações”, conta o major, 42 anos, 17 deles como bombeiro.

Acostumados a salvar vidas, Cássia, Eda, Jailton, Vieira, Ramon Dieggo e Fábio ajudaram dezenas de feridos, mas se viram de mãos atadas diante de sete mortes naquele 25 de novembro de 2007. Passados os anos, restaram lembranças amargas e a sensação de que elas poderiam ter sido evitadas. “As pessoas estavam ali para se divertir com seus familiares e aquilo poderia não ter acontecido se houvesse uma medida preventiva. Era notório que o estádio precisava de uma reforma, uma manutenção. Quando observamos as ferragens, vimos que estavam bem deterioradas. O sentimento é de que poderia não ter acontecido ali”, lamenta o subtenente do Corpo de Bombeiros, Fábio Nascimento, 41 anos.

“Me dá uma sensação de tristeza, de impotência completa, de incredulidade. Você não espera começar um dia de plantão e encontrar aquilo. Dá uma tristeza saber o que o indivíduo pode criar para o outro. Me dá a sensação de que a coisa poderia ter sido resolvida antes. Na verdade, todos os acidentes acontecem por conta de uma sucessão de erros que se juntam. Um acidente daquele, no meu entender, poderia ser prevenido ou afastado”, afirma Eda. “Foi uma cena muito forte para um ser humano normal, que ainda tem sentimento, que, mesmo trabalhando com atendimento de vítimas, ainda sente alguma coisa”, reforça Cássia. Impossível não sentir. Impossível deletar.