A DOR DO LEITE
Por Edvan Lessa
Nos raros dias em que a torneira jorra água, Anil, 35 anos, se refestela; enche a enorme caixa de isopor e as garrafas da geladeira. Ela poderia dormir ouvindo o barulho dos jatos d’água direto na lavanderia como quando a chuva do telhado mira o barranco no quintal. Amanhã, estará despreocupada ao dar banho nos três filhos pequenos e no preparo da janta do marido que chegará do trabalho, novamente, sem uma razão para as agressões contra ela, traições flagrantes e pedidos para que Anil abortasse na maioria das gravidezes.
“Eu não me vejo até o fim da vida com ele”, ela ressalta. “Mesmo o amor existindo, um relacionamento acaba. Vai acontecer isso comigo e ele”, prevê. Por enquanto, a autônoma, que já interrompeu três gravidezes e sofreu quatro abortos espontâneos entre 2001 e 2014, está atada às obrigações do lar e anseia mudar-se para um lugar onde não lhe falte paz – e água. Já cogitou retornar à cidade natal, no interior baiano, mas ainda não enxergou uma oportunidade boa o suficiente para isso.
Em 2004, ano em que Anil viveu uma série de experiências sofridas,Anil morava em Salvador, mas foi em sua cidade natal, que fez o seu primeiro aborto. A descoberta da gravidez veio logo após a casa dela ter sido invadida e diversos objetos terem sido levados. “Eu fiquei com medo de perder [abortar] aqui [em Salvador] sozinha, fui para lá e mandei minha irmã Violeta comprar o Cytotec [misoprostol]”, relembra.
Uma outra irmã, cuja identidade também será preservada, narra que Anil chegou a pedir para que ela introduzisse os comprimidos de Cytotec utilizando um aplicador ginecológico, mas se recusou. Isso não impediu que Anil fosse adiante com a decisão encorajada pelo parceiro. “Meia-noite mais ou menos ela começou a gritar de dor e pediu para a levarmos no hospital, aí começou a hemorragia”, detalha a irmã.
De acordo com Débora Diniz, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, a partir dos relatos acompanhados, seja em pesquisas, seja em campanhas promovidas por ela, histórias como a de Anil são de solidão e silêncio. “No entanto, quando as experiências são divididas dentro das famílias, percebemos que as redes formadas geralmente são compostas pelas mulheres: são irmãs, primas, mães, tias e avós quem, majoritariamente, acolhem e cuidam de outras mulheres da família quando elas precisam interromper uma gestação”, descortina Diniz.
Própria consciência
Mesmo sob risco de ser responsabilizada diante da prática do aborto inseguro em condições não permitidas pelo artigo 128 do Código Penal, a família estava disposta a agir para livrar Anil do infortúnio, uma vez que ela já estava sob efeito do misoprostol. “Naquele tempo, a viatura prestava socorro. Ligamos para o 190 e nada. Aquele dia foi uma perseguição, como se Deus tivesse pesado a mão porque não achávamos nenhuma carona”, acrescenta a irmã de Anil, contra a interrupção da gravidez.
Em tom religioso, o discurso dela reprisa o sentimento de culpa muitas vezes fortalecido pela crença cristã das próprias mulheres que abortam e daqueles que as condenam. Anil professa a fé católica, assim como a maioria das mulheres que abortam no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), divulgada em 2016. Já a irmã que a socorreu, frequenta uma igreja evangélica.
Para Camila Mantovani, da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, o papel da igreja tem que ser de acolhimento. “Mulheres que passaram por essa experiência geralmente viveram isso sozinhas, carregam muita culpa e estão vulneráveis perante a lei. Precisamos ser o abrigo, o abraço, a voz que acalma e que diz: ‘Eu tampouco te condeno’! Como Jesus diria”, conclama.
Para a socióloga Maria José Rosado, do movimento Católicas pelo Direito de Decidir, há distorções na doutrina católica utilizadas para afirmar que as mulheres não têm o direito de decidir sobre a sua sexualidade e a capacidade reprodutiva. “Nós trabalhamos com alguns argumentos que vêm da própria tradição católica. Um deles, fundamental, é o recurso à própria consciência; a liberdade de decidir segundo a sua consciência informada, de alguém que sabe que naquele momento essa é a melhor decisão que ela pode tomar”, explica.
O catecismo da Igreja Católica prevê que tal juízo será a referência definitiva para estabelecer a moralidade do comportamento perante Deus – a passagem sobre isso está expressa em Romanos 2, 15-16 e Vaticano 11 – Gaudium et Spes. Outro princípio é o do probabilismo, pelo qual não se pode impor uma regra moral quando existe dúvida. Onde há dúvida, há liberdade; ou no latim: “ubi dubium, ibi libertas”.
Enquanto o movimento Católicas pelo Direito de Decidir atua contra o fundamentalismo religioso que se constrói em diversas organizações, o Conselho Municipal de Saúde da cidade onde Anil vive se diz contrário à legalidade do aborto. Para o atual presidente do colegiado, esse posicionamento refletiria a opinião de todos os membros acerca da pauta, segundo ele, pouco debatida no órgão.
Violência
No dia em que interrompeu a primeira gravidez, Anil andou cerca de 1,2 km com uma toalha de rosto ensopada de sangue entre as pernas, até a maternidade do município, na companhia da irmã e de um cunhado, por não haver conseguido carona. Lá, viveu uma experiência duplamente dolorosa. “As enfermeiras ficaram me maltratando, me pirraçando porque elas sabiam que eu tinha abortado. Disseram que eu tinha que esperar. Eu gemia e gritava de dor”, reconta.
Com base na caracterização feita pelo Ministério da Saúde, Anil foi vítima de violência obstétrica. Esse tipo de agressão pode acontecer no momento da gestação, parto, nascimento e ou pós-parto, inclusive no atendimento ao abortamento. A prática se manifesta física, psicológica, verbal, simbólica e ou sexualmente, mas também por meio de negligência, discriminação e ou condutas excessivas ou desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas, impedindo as mulheres de exercerem seu protagonismo.
No dia 3 de maio deste ano, o Ministério da Saúde se posicionou sobre o assunto por meio de um despacho. No documento, o órgão afirma que a expressão “violência obstétrica” tem “conotação inadequada”, “não agrega valor” e que tem havido estratégias para abolir o uso do termo.
“As mulheres que vão para a maternidade finalizar o aborto estão também submetidas à violência, de forma mais potente, porque estão em um processo de ilegalidade e estigma”, aponta a pesquisadora Emanuelle Góes, fundadora do Odara – Instituto da Mulher Negra. Góes é autora de uma tese, defendida em janeiro do ano passado, no Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (Ufba), cuja abordagem envolve mulheres como Anil, Violeta – e as demais irmãs, personagens dessa série, ambas mulheres negras.
EMANUELLE GÓES, ODARA
Instituto da Mulher Negra
Sob o título “Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional”, o trabalho acadêmico demonstra que as mulheres negras estão mais expostas à violência obstétrica. “O racismo institucional vai fazer as hierarquias de cuidado dentro do serviço de saúde, colocando as mulheres negras em situação de maior vulnerabilidade no atendimento e de maior precariedade”, assinala Góes.
A tese de Góes, autora do blog População Negra e Saúde, revela ainda que as mulheres negras, 31,1%, são as que mais declaram aborto provocado, seguida das pardas, 24,2%, e das brancas 21%. No estudo, a autora identifica que as mulheres negras foram as que mais informaram a gravidez como não pretendida; mais assumiram que não queriam engravidar, estavam em uso de contraceptivos, mais pensaram em fazer um aborto e o declararam como provocado na gravidez atual e em anteriores.
Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2013, são as mulheres negras que mais declaram os abortos, tanto espontâneo quanto provocado, em relação às brancas. “O serviço de saúde deixa as mulheres negras sempre em última instância de cuidado quando comparadas às mulheres brancas”, acrescenta Emanuelle Góes. As mulheres que abortam, ela prossegue, também ficam em última instância em relação às que vão parir.
Questão de saúde
O aborto é a quarta causa de morte materna por razões obstétricas diretas no país e, por esse motivo, deve ser tratado como um tema ligado à saúde. “É uma questão de saúde pública pela magnitude. É um evento muito comum na vida das mulheres, causa doença e morte quando feito em condições clandestinas e inseguras”, esclarece Greice Menezes, pesquisadora do MUSA, grupo de pesquisa sobre gênero e saúde do ISC da Ufba.
“Apesar de ser responsável por um pequeno percentual de complicações obstétricas, quando presente, ele [o aborto] evolui de forma grave para um quadro que a gente chama de near miss”, explica. Near miss é o mesmo que “quase óbito”. Ainda segundo Menezes, o aborto seguro, geralmente feito por mulheres que têm condições de pagar pelo procedimento em clínicas particulares, apresenta menos riscos do que o parto normal quando feito cedo.
“O aborto causa complicações que são absolutamente evitáveis”, salienta Greice Menezes, assentindo à nota técnica do Ministério da Saúde sobre o assunto.
“O que torna o aborto um risco, que pode acarretar complicações e até mesmo morte da mulher, é a sua realização de maneira insegura”, esclarece a nota. Fatores como pobreza, falta de informação e educação sexual; falta de condições para o planejamento familiar e a violência frequente das relações entre homens e mulheres fazem do aborto um risco.
Pesquisadores vinculados a um estudo do Instituto Guttmacher e da Organização Mundial da Saúde (OMS) concluíram que mesmo se todas as mulheres e casais que desejam evitar a gravidez tivessem acesso à contracepção, a gravidez indesejada e os abortos continuariam a ocorrer. O acesso ao aborto seguro se torna, então, segundo a pesquisa, essencial para que a mulher não tenha de recorrer a procedimentos perigosos.
Segundo a OMS, as taxas de aborto caíram significativamente na maior parte das regiões mais desenvolvidas do mundo entre 1990 e 2014, onde o aborto é legal. Estima-se que nesses lugares, nos quais as leis de aborto tendem a ser mais restritas, cerca de 6,9 milhões de mulheres foram tratadas por complicações ligadas a abortos inseguros em 2012, a uma taxa de 6,9% para cada 1 mil mulheres com idade entre 15 e 44 anos.
Magnitude
Do total das 1.613.903 hospitalizações por interrupção voluntária da gestação estimadas entre 2008 e 2017 no Sistema Único de Saúde (SUS), foram encontrados 40.348 casos de mulheres com pelo menos uma complicação grave. Segundo cálculos do Ministério da Saúde, em 2018, o custo com hospitalizações por interrupção da gestação no SUS, em 2017, foi de mais de R$ 50 milhões.
Os dados constam na nota técnica do Ministério da Saúde, emitida sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que discutiu no Supremo Tribunal Federal (STF) a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
O debate ocorreu nos dias 3 e 6 de agosto de 2018 e mais de 40 representantes especialistas, instituições e organizações nacionais e internacionais foram selecionados para contribuir com a discussão do tema.
Procurado para uma conceder entrevista e fornecer dados acerca do atendimento prestado às mulheres em situação de abortamento, incluindo os casos de violência obstétrica, o secretário municipal de Saúde – da cidade natal de Anil – recomendou que fosse entrevistada a superintendente da maternidade do município.
“Infelizmente não monitoramos esses dados [na maternidade]”, ela respondeu. Depois, foi ainda mais lacônica. “Esses dados são monitorados pelo município. E as orientações são dadas pela atenção básica”, escreveu.
Já a assessoria de comunicação da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) admitiu que nenhum profissional responderia as questões direcionadas à pasta. De maneira concisa, o setor de comunicação emitiu uma nota afirmando que não há tratamento diferenciado entre pacientes que abortaram e aquelas que vão dar à luz, nas unidades da rede própria da Sesab.
“Quando elas [as mulheres] dão entrada, o atendimento é feito de acordo com os protocolos médicos, independente (sic) do tipo de aborto”, informou. Em tese, as mulheres não seriam vítimas de violência obstétrica. Mas tanto pesquisas, quanto o senso comum mostram o contrário.
Outras experiências
Anil interrompeu, conscientemente, três gravidezes, mas sofreu ao menos cinco abortos espontâneos. “Depois que eu decidi querer, acho que foi até castigo de Deus, engravidava e perdia”, entristece-se.
A depender de como o aborto foi feito, pode haver implicações em futuras gestações, segundo Rosires Andrade, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). “Sem os devidos cuidados, pode resultar em infecções e ou aderências dentro do útero no caso de curetagens”, denota. A curetagem é feita para limpeza do útero.
Baseado numa série de publicações científicas, a exemplo do relatório da OMS, divulgado em 2016, Rosires expressa que os riscos são mínimos em países onde o aborto foi legalizado e se feito nos moldes recomendados pela Organização. Para Rosa Domingues, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma das razões é o aconselhamento prestado no atendimento e a oferta de métodos contraceptivos, algo que não ocorre na clandestinidade.
Domingues realizou uma revisão sistemática de artigos científicos sobre aborto ilegal e legal no Brasil publicados no período 2010 a 2017. “Na discussão dos resultados, incluímos estudos qualitativos que descreveram itinerários das mulheres em busca do aborto, e os relatos são bem semelhantes aos da Anil das irmãs dela”, revela, quando indagada sobre evidências que situem a história de Anil, Violeta e das suas irmãs com histórico de aborto em um contexto ampliado sobre o assunto.
Trauma
Um ano depois da primeira interrupção voluntária, aos 21 anos, Anil reviveu os riscos da clandestinidade. Descobriu uma nova gravidez, ficou feliz pelo acontecimento, mas optou pelo aborto após não ter a aprovação do parceiro. “Eu tinha mandado ele comprar o Cytotec, mas eu não esperava que ele fizesse isso. Se fosse outro, não compraria, né? Diria: ‘O filho é meu, vou assumir’. É assim que se faz”, ressente-se.
Depois de esmagar os comprimidos e aplicá-los, tendo também os ingerido, chamou uma vizinha para monitorá-la quando começou a sentir as contrações provocadas pelo Cytotec e de sentir “um bolo” sair por entre as pernas. “Nem falo muito disso com as pessoas, mas foi o único feto que eu cheguei a ver. Quando o meu esposo chegou do trabalho, de noite, eu disse: ‘você não queria isso? Está lá no banheiro, vá ver”, perfaz.
O arrependimento do pai, que escolheu o campo de futebol para enterrar o feto guardado numa vasilha plástica, veio tardiamente. Conforme o relato de Anil, ao ver o resultado da interrupção, ele desabou em lágrimas.
A situação mais difícil para ela, no entanto, foi perceber que seus seios haviam enchido de leite. “Quando meu peito começou a encher de leite, eu pensei: meu filho poderia estar aqui agora mamando e ele [o companheiro] me impediu disso”, lamenta.
Por anos Anil tentou convencer o esposo a fazer a vasectomia e ele, recentemente, cedeu. Mas como é ela quem irá cuidar da burocracia, e o acesso aos serviços de saúde requerem certo dispêndio, não há previsão para a realização do procedimento.
O médico suspendeu o comprimido e a injeção contraceptiva, por conta do risco de trombose no último parto, ela diz. Com isso, Anil voltou ao ponto de partida porque, enquanto o esposo não é operado, ele se recusa a utilizar a camisinha.
A experiência de Anil com a maternidade, até o nascimento do seu segundo filho mais novo, de três anos, envolveu nova desaprovação do companheiro. Ele não apenas voltou a comprar o Cytotec, como também agiu de maneira hostil durante essa gravidez que Anil levou adiante.
No total, ela tem uma filha de 18 anos, do primeiro relacionamento; um filho de seis, outro de três e o quarto de um ano, do parceiro atual. A filha, Pérola, lembra de ter dito que fosse “esquecida como filha”, se a mãe abortasse na gestação do segundo irmão.
Hoje as duas confidenciam intimidades e a filha mais velha até protegeu a mãe de agressões do padrasto. Da última vez em que isso aconteceu, no ano passado, Pérola chegou a ir embora de casa, mas retornou, grávida, com o namorado. Em novembro, uma dor já conhecida por Anil transpassou a filha, que sofreu um aborto espontâneo, depois de ter planejado a maternidade.