50 anos de paz e amor – Arembepe tenta reinventar movimento que atraiu o mundo inteiro

Alexandre Lyrio – alexandre.lyrio@redebahia.com.br

Prestes a completar 80 anos, o aposentado Álvaro Machado acorda todas as manhãs às 6h e caminha uns 200 metros em direção ao Rio Capivara. Tira a roupa e, completamente nu, coloca-se em posição de lótus. “Ali sou só eu mesmo e os raios solares”, descreve. Mais do que o exercício de uma vida saudável, para Álvaro, essa é uma forma de resistência. Na verdade, a própria existência desse homem de cabelos, pés e mãos encrustados é, em si, um ato revolucionário.

Em cada passo que dá, a cada reflexão filosófica que faz, em cada capítulo que conta da sua trajetória, Álvaro respira o Movimento Hippie dos anos 70. Mesmo sem ter vivido de perto algumas das histórias que envolvem o imaginário da aldeia que, 50 anos atrás, começou a atrair o mundo. Álvaro consegue ser um pouco de cada um dos milhares de loucos que viveram, à beira-mar, aqueles tempos telúricos de desbunde.

Na figura de Álvaro, na memória dos moradores e nos cenários que guardam a aura de paz e amor, o hippismo vive em Arembepe. Desde Mick Jagger, no Verão de 1968. Álvaro, pode-se dizer, é o astro dos Rollings Stones tocando violão na varanda da Casa do Sol Nascente. Como ninguém sabe quando exatamente se iniciou o Movimento Hippie na localidade, o registro se tornou marco.

Cinco décadas depois da foto, a comunidade tenta reiventar aquele mundo e fazer com que Arembepe volte a ser um centro de peregrinação. “Nunca deixou de ser. Recebemos muitos visitantes do mundo inteiro”, aposta Cláudia Giudice, que faz parte da associação de comerciantes local e é dona da pousada A Capela. Cláudia luta pela criação de um museu a céu aberto que possa recontar a trajetória do movimento. “A alma hippie vive”.

Como Jagger, Janis Joplin também desfrutou de seu coqueiral e fez topless, o que foi devidamente registrado em foto. Alguns Verões depois, vieram de uma só vez Roman Polanski e os atores Jack Nicholson, Jessel Buss e Denis Hopper. Uma pena que um personagem conhecido como Cândido, ainda vivo, não esteja mais em Arembepe.

Só ele poderia narrar com detalhes o dia em que Polanski, Nicholson, Buss e Hopper conheceram o “cinema” psicodélico, que batizou de Universo Paralelo. “Uns dizem que Polanski adorou a projeção. Outros contam que, ao final, não perdoou: ‘terrible’ (terrível)”, dá as duas versões Luiz Afonso, convidado pelo CORREIO a revisitar a aldeia, junto com o pesquisador Nelson Cadena e o performático Joildo Góes, três ex-hippies. Cadena, Joildo, Lula e o próprio Cândido deixaram Arembepe. Mas Missival Dourado, hoje com 71 anos, continua firme por lá.

Há mais de 40 anos à frente da Pousada da Fazenda, Missival diz que já perdeu metade dos neurônios com o LSD que consumiu, mas não consegue deixar de reproduzir os “meus chapas” “bichos” e “grilos” de quatro décadas atrás. “Bicho, parei com tudo. Até com a maconha. Mas tô pensando em voltar. Sem grilo!”, diz Missival, que não hospedou em sua pousada, mas cozinhou para Polanski e Nicholson. “Meu chapa, eles almoçaram aqui”.

Em um dos seus quartos, recebeu Richard Gere, com quem deu de cara no corredor no meio da noite. Nu, Gere matava muriçocas com um travesseiro. “Um dia, vi Sônia Braga nua na aldeia. Também hospedei Raul Seixas por uns 15 dias”, lembra Missival, que calcula ter tomado uns 60 LSDs naqueles anos de luz. “Tudo era colorido”.

Refúgio
Toda essa loucura seria ainda mais impressionante por um motivo. Eram tempos de repressão militar. Especialmente em Salvador. Por ser mais distante e de difícil acesso, Arembepe era o refúgio para muita gente que queria despistar a polícia. Os Novos Baianos se ligaram na parada. Moraes Moreira, Paulinho Boca, Galvão e o resto da trupe se picaram para Arembepe para tomar seus alucinógenos tranquilos.

E assim Arembepe se tornou um dos paraísos da contracultura no mundo. “Isso aqui, inicialmente, era uma aldeia indígena. Depois, virou uma comunidade. Então era o lugar perfeito, cheio de natureza e pessoas malucas”, confirma Luiz Afonso. Para Cláudia Giudice, Arembepe agora revisita a história de forma natural. “A sustentabilidade, a alimentação saudável, um novo modo de vida já era proposto lá atrás”.

Com esse espírito, a vila tenta se reerguer e se tornar, além de local de peregrinação, centro de artesanato e gastronomia. Bons restaurantes não faltam. Dois dos mochileiros viajantes que ficaram por lá, aliás, hoje são donos de um deles. “Viajei para tantos lugares neste mundo. Aqui resolvi ficar”, diz o belga Thierry Micodème, um dos sócios do tradicional Mar Aberto.

Da mesma forma, Álvaro, que completa 80 anos no dia 4 de março, segue praticando ioga, nu, na beira do Capivara. Ex-bancário em Salvador, resolveu conhecer o mundo. Rodou a Europa e, em seguida, desceu para Machu Picchu, no Peru e Buenos Aires, na Argentina. Na volta, passou em Arembepe. Ficou para sempre. “Percebeu que minha casa não tem cerca e nem portão? Em 2018, isso é um prêmio, né não?”.

Remanescentes

Álvaro Machado
Além da paisagem ainda deslumbrante, o que Arembepe tem de mais precioso são as pessoas. Algumas delas, sim, remanescentes dos tempos áureos dos Anos 70. Álvaro Machado, por exemplo, é quase um monumento vivo. Sua casa, e outras da Aldeia Hippie, mantêm o formato e a estrutura com paredes de barro e telhados de madeira. “Olha, no princípio mesmo todas eram de palha. Depois foram surgindo as casas de paredes de barro. Hoje tem até luz e água”, conta Álvaro.

Quase octogenário e praticante de ioga, costuma passar os dias filosofando. Especialmente depois que fuma um baseado. Para ele, o hippismo não nasceu nos anos 60, nos EUA. Sua origem seria a Bahia. “Rapaz, costumo dizer que o hippie teve seu modelo no tipo de vida do baiano. Esse nosso jeito, sabe? Tenho certeza que um baiano, um nordestino como a gente, levou isso para o americano. Então, essa coisa de deixar para amanhã, sabe? Por que fazer hoje se eu posso fazer amanhã?”, reflete Álvaro, hoje o mais velho hippie de Arembepe.

Missival Dourado
Ele chegou em Arembepe em 1972, em uma noite de lua cheia, e nunca mais conseguiu ir embora. “Quando cheguei, tinha mais de 5 mil hippies aqui”. Natural de Irecê, Missival se criou em São Paulo e veio para Arembepe “esquecer uns problemas”. “Se eu saí daqui três vezes foi muito.

A lua me pirou. Agora só consigo morar aqui”. Missival tinha a casa mais doida do vilarejo nos anos 70, decorada com discos voadores. Logo, logo, em meios aos coqueirais, a casa se tornou pousada e hospedou muita gente. Muitos deles famosos como Richard Gere e Raul Seixas. Ele conta também que viu Sônia Braga nua na Aldeia Hippie.
Era Bethânia, Gal, Gil, Bety Farias, Cláudio Marzo. Mais de 5 mil hippies. Vi Richard Gere nu, no meio da noite, matando muriçocas Missival

Passagens antológicas no paraíso

Astros do cinema
Em um Verão típico dos anos 70, passeiam nas dunas da Aldeia Hippie Jack Nicholson, Roman Polanski e Dennis Hopper (da direita para a esquerda), acompanhados de Jessel Buss (à frente). Entre outras experiências, eles teriam entrado em uma fila para assistir às projeções psicodélicas da casa de Cândido, que morava em uma cabana na localidade. Cândido manipulava com espelhos a luz do sol que entrava, em determinado horário do dia, por sua janela. Moradores de Arembepe hoje se dividem quanto às impressões de Polanski e o resto da turma. Uns dizem que ele gostou tanto que iria utilizar a ideia no próximo filme. Outros contam que ele disse apenas uma palavra: ‘terrible’ (terrível).

Mick Jagger
No Verão de 1968, o rockeiro Mick Jagger só queria saber de paz e amor. Amor ele tinha de sobra com a namorada Mariane Faithfull. Mas, para encontrar a paz, o astro dos Stones precisou buscar um refúgio bem distante. O lugar escolhido? Arembepe, no Litoral Norte da Bahia. O registro fotográfico do astro dos Stones tocando violão na varanda de uma casa junto com sua namorada, o filho Nicholas no colo e alguns nativos é mais do que uma imagem rara. Virou um marco das comemorações dos 50 anos do movimento hippie na aldeia.

Segundo o livro Anos 70 Bahia, Mick Jagger veio a Arembepe pouco depois do tumultuado megashow de Altamont, na Califórnia, ‘o oposto baixo-astral do Woodstock’. A casa do sol, um dos símbolos da aldeia nos anos 70, ficava em uma duna e foi comprada por Jagger e o amigo Keith Richards, ‘que fizeram um Réveillon fantástico por lá’. O entrosamento com os nativos não teria sido dos melhores. De acordo com a publicação, chegavam e saíam de jipe acelerando na duna e ‘tirando onda de porretas’. Nunca apareceram na Aldeia. Também foram ignorados não só pelos nativos como pelos cabeludos e mulheres peladas, ‘que souberam manter sua dignidade passando para a praia sem nem olhar para lá’.

Novos Baianos
Os mesmos tempos de contracultura, liberdade e nudez eram vividos em plena ditadura militar. A repressão chegava mais pesada em Salvador e os Novos Baianos, que já haviam gravado Ferro na Boneca em 1970, sofreram diversas vezes essa repressão na pele. Em uma delas, Arembepe acabou sendo o refúgio do grupo. Com medo de serem presos por um delegado que os perseguia, Moraes, Paulinho Boca, Baby, Pepeu, Galvão e companhia foram se esconder em Arembepe. Deitaram no chão de uma kombi para não serem descobertos em uma possível blitz. “Bicho, fomos protegidos pelos pescadores da época. Arembepe era um paraíso da utopia”, lembra Paulinho Boca.

Janis Joplin
Em março de 1970, uma das maiores cantoras americanas da história já havia passado pelo Rio. Fez topless em Ipanema e foi expulsa do Copacabana Palace por nadar nua na piscina. Depois de escrachar na capital carioca, queria ficar longe daquilo tudo. Recebeu a indicação de um surfista para vir para Salvador encontrar um amigo chamado Luís Martins. Depois de passar uns dias na casa de Lula, no Rio Vermelho, e badalar pela noite soteropolitana, Janis seguiu para Arembepe e ficou na mesma Casa do Sol que os Stones se hospedaram. Hoje há poucos relatos de sua estada no vilarejo. Mas ficou o registro do seu topless.

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