Com apoio de neurologistas baianos, ativistas de associação estão prestes a conseguir uma liminar na Justiça para plantar maconha, produzir óleo da cannabis e transformar a vida de epiléticos, portadores de Parkinson, microcefalia e outras doenças
Para Laurinha, 2 anos, a esperança chegou pelos Correios. Tinha a forma de um frasquinho de menos de cinco centímetros. Dentro, 30 ml de um líquido denso, viscoso e negro. Na composição, quase 100% de canabidiol ou, simplesmente, óleo de maconha. Em menos de três semanas, Laurinha, vítima de microcefalia causada pela zika, diminuiu muito as convulsões que enfrentava desde o primeiro dia de vida, aumentou o apetite e finalmente teve avanços cognitivos.
“A gente ficou impressionado. A melhora aconteceu logo nas primeiras semanas. As convulsões diminuíram muito e a parte cognitiva dela se desenvolveu bastante”, afirma a vendedora Suzana Bertolussi, mãe da menina. O “milagre” vivenciado de perto pelos pais de Laurinha é o mesmo que outros 149 pacientes baianos esperam ver em breve. Eles fazem parte de um cadastro criado pela Associação Para Pesquisa e Desenvolvimento da Cannabis Medicinal (Cannab), criada em Salvador no mês passado.
A maioria dos pacientes é portadora de epilepsia refratária de difícil controle, mas também há pacientes com Parkinson, autismo, esclerose múltipla e a própria microcefalia. Todos, a maioria de baixa renda, estão na fila da cannabis para se tratar com o CBD ou até com o chamado THC (Tetraidrocanabidiol), que, a depender da planta, também compõe o óleo e pode ajudar no tratamento de doenças como o câncer, por exemplo.
Com um pedido de liminar que será impetrado na Justiça, a associação espera obter a liberação para o plantio, o cultivo e a extração do óleo medicinal de CBD a um custo baixíssimo. Pelos cinco potinhos do medicamento que importaram de um laboratório dos EUA, os pais de Laurinha desembolsaram nada menos que R$ 2,5 mil. Os frascos devem durar pouco mais de dois meses. “Estamos nos desfazendo de tudo. Já vendemos até o carro”.
Com a produção do óleo indoor (em um ambiente fechado e controlado pela associação), os custos do CBD reduziriam em mais de 800%. “Como não temos fins lucrativos, a produção pela associação vai reduzir muito os custos. Se a média para importar um frasco é de R$1 mil, quando produzirmos aqui o mesmo frasco vai sair por R$150 a R$180”, afirma o presidente da Cannab, Leandro Stelitano, 42 anos. Hoje, cerca de 80 pacientes estão cadastrados. Portanto, ainda há vagas para pacientes interessados
O plantio, pesquisa e extração do óleo canabidiol, que se pretende realizar em breve, será feita em parceria com a Fundação de Neurologia e Neurocirurgia Instituto do Cérebro, cujo mentor é o professor Antônio Andrade Filho. “Numa sala dessa aqui, se você tiver todas as especificações e iluminação adequadas, você produz óleo para 200 pessoas em 90 dias. Basta colocar lâmpadas específicas para vegetação e outras para evitar fungos”, explica Andrade.
Já como um dos membros da Associação Cannab, o neurologista ressalta que o canabidiol e até o THC são, comprovadamente, importantes componentes no controle de diversas doenças, especialmente da epilepsia refratária, foco da associação. Há casos de pacientes que, no decorrer do tratamento, vêm reduzir em 90% as dezenas de crises convulsivas que têm em um dia.
“As crises convulsivas são descargas anômalas em que há uma excitação dos neurônios. Os receptores da maconha estabilizam a atividade cerebral. Tem pacientes com mais de 30, 40 crises convulsivas por dia que simplesmente deixam de ter esses eventos ao longo do tratamento”, revela o neurologista, que também é chefe do Serviço de Neurologia da Ufba e um dos neurologistas baianos autorizados a prescrever o canabidiol.
Hoje, somente na Associação Cannab, oito médicos têm a autorização do Conselho Federal de Medicina. É o médico que determina qual a dosagem de CBD ou THC que cada paciente deve tomar. “Tem um associado nosso com Parkinsson que não conseguia colocar o cinto da calça ou amarrar o cadarço do tênis. Com quatro ou cinco dias usando o óleo, ele já fazia tudo. Não treme mais, hoje faz tudo. São resultados extraordinários”.
O próprio médico neurologista tem uma irmã portadora do mesmo mal. Ao indicar o medicamento a base de maconha, viu ela relutar para tomar o óleo que veio do Uruguai. “Primeiro me chamou de louco. Depois mandou buscar no Uruguai e levou três meses com o negócio guardado em casa. Tinha problemas para andar. Ficava toda dura. Eu ordenei: ‘toma logo isso’. Ela tomou e melhorou muito”, relata o médico. “Eu disse: ‘tá vendo’?”.
Além de epilepsia e Parkinson, só para ficar na área neurológica, há comprovações da eficiência da cannabis medicinal no tratamento da esclerose múltipla, autismo e Alzheimer. “Imagine você ver uma criança que vivia isolada, com autismo, de repente dar o primeiro beijo em uma mãe. Isso não tem preço”, diz doutor Andrade.
Além de tudo, o óleo da cannabis não causa dependência, diferente dos medicamentos tradicionais. “Sem falar que os medicamentos afetam a parte cognitiva do paciente. A cannabis medicinal, ao contrário, desenvolve”, afirma Leandro, que se tornou ativista da causa porque filhos de amigos que sofrem de crises convulsivas necessitam do óleo.
E o preconceito? “Bom, o preconceito existe. Tanto de médicos como de pacientes. Mas, para quem resolve usar e prescrever, o preconceito some com os resultados”, diz Leandro. “Todos levam um susto quando indico o medicamento. Muitos colegas também têm receio de receitar”, confirma Andrade.
Até mesmo quem trabalha pela redução de danos causados por drogas acredita nos resultados positivos do uso do CBD e THC. “O que já temos certeza hoje é que a cannabis é muito boa para tratar convulsões graves. Não estamos falando de qualquer convulsãozinha, não. Estamos falando de problemas neurológicos gravíssimos, em que os medicamentos tradicionais não dão resultado. O canabidiol atua de forma mais eficaz nessas condições”, afirma o psiquiatra Antônio Nery, do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad).
Para ter acesso a detalhes sobre dosagens e os melhores tipos de maconha a serem cultivados, a associação buscou a consultoria de um dos maiores pesquisadores mundiais em maconha medicinal. O uruguaio Marco Algorta, agora também membro da Associação Cannab de Salvador. Do seu país, Algorta abastece de informações o médico Antônio Andrade e ajuda os neurologistas a determinar a dosagem para cada tipo de paciente. “Isso porque não temos ainda uma padronização das miligramagens do uso da maconha para doenças do sistema nervoso. Esse é um desafio”, afirma Andrade.
No país em que a maconha é liberada em todas as suas formas, Marco Algorta tem uma empresa que estuda as sementes de cannabis. Cada uma delas, diz ele, tem uma especificidade diferente e pode servir para determinado tipo de doença. Tudo vai depender do teor de CBD e THC que cada uma delas tem. “A primeira coisa que eu preciso saber é que tipo de óleo eu tô precisando. Que genética eu preciso plantar para ter o efeito que eu preciso?”, explica Algorta. “Mas o fato é que as evidências dos benefícios são inquestionáveis. É uma desconstrução cultural”.
Por essas e outras, a maconha medicinal é a maior esperança de Luciano Freire Guimarães, 26 anos. Epiléptico desde os 12 por conta de uma lesão no cérebro, enfrenta crises graves. Já chegou a ter 40, 50 convulsões por dia. “Até hoje não houve um tratamento eficaz. Utilizo quatro tipos de remédios”, afirma Luciano, que, entre ansiolíticos, antiepilépticos e analgésicos gasta quase R$1 mil por mês com medicamentos.
“Isso porque um dos remédios, de quase R$300, eu recebo de graça do grupo do doutor Andrade”. Com a associação, Luciano está ansioso para se tornar um dos 150 pacientes. Nunca usou o CBD porque, com tantos gastos, não tem condição de comprar. “Pelo que pesquisei, quem toma a cannabis tem uma melhora entre 90% e 100%. Veio para revolucionar. Por isso, quando me chamaram, topei na hora”.
Câncer, Aids e diabetes
Mas, o uso do extrato da maconha vai além da epilepsia e das doenças neurológicas. Até mesmo em casos de câncer o medicamento é utilizado com eficácia, principalmente para amenizar os efeitos da rádio e da quimioterapia. “No combate da dor, a cannabis tem uma ação analgésica importantíssima”, afirma Marco Algorta. Também há comprovações da eficácia da maconha no combate à Aids e Diabetes. “É impressionante a capacidade da cannabis no controle da diabetes, por exemplo”.
O pesquisador explica que os canabinoides ativam o chamado sistema endocanabinoide do corpo humano. “É esse sistema que regula o sistema nervoso. Por isso, a cannabis é eficaz no tratamento de dores crônicas persistentes, nem muito fortes e nem muito leves. Também combate a depressão, ansiedade, insônia. Além de diversas doenças de desregulação do sistema nervoso como epilepsia e esclerose múltipla”. O canabidiol, diz Marco, também ajuda nos efeitos paliativos no tratamento de náuseas e problemas de estômago.
No combate da dor, a cannabis tem uma ação analgésica importantíssima. É eficaz no tratamento de dores crônicas persistentes, nem muito fortes e nem muito leves.Também combate a depressão, ansiedade, insônia. Além de diversas doenças de desregulação do sistema nervoso
Lei
Hoje, a lei brasileira proíbe o plantio, o cultivo e a extração do óleo da maconha. Também considera crime o porte, o consumo e a venda de drogas e prevê penas específicas. Mesmo assim, em Salvador, já há pessoas produzindo o óleo da cannabis de forma clandestina. “Muita gente que não tem poder aquisitivo está produzindo o óleo de forma artesanal. Ninguém quer esperar mais pela liberação”, revela Leandro. “O problema aí é que você não sabe qual a qualidade do óleo que está usando. Até porque existem tipos específicos de maconha, além de dosagens específicas, para cada tipo de doença e paciente. A nossa pesquisa busca justamente essas especificações”, explica Leandro.
Desde 2014, porém, a Anvisa começou a emitir autorizações especiais para a importação do medicamento. Mais recentemente, o órgão retirou o CBD da lista de substâncias com importação proibida – hoje ela é considerada “de uso controlado”, como os antidepressivos. Segundo o órgão, “a planta Cannabis sativa consta, no momento, da lista de plantas proscritas no país. Há, no entanto, a permissão para a importação excepcional de produtos à base dessa planta”.
Assim, pacientes como Laurinha, 2 anos, passaram a importar o produto. Além dos custos altíssimos, o que inviabiliza as importações na maioria dos casos, a obtenção da autorização é considerada burocrática.
Como Laurinha, segundo a Anvisa, até o momento foram emitidas 3.487 autorizações para importação da cannabis no país. Dessas, 92 para pacientes da Bahia.
“A liberação da Anvisa parece algo muito simples. É um papel que você preenche com o pedido do médico e manda toda a documentação. Mas daí para você conseguir a autorização são outros quinhentos. No nosso caso, por exemplo, eles erraram o nome dela e da empresa no cadastro. Teve que recomeçar tudo de novo duas vezes. Conheço uma mãe que ficou três anos para conseguir”, diz o pai de Laurinha, o analista de logística Luciano Bertolussi.
“Eu prescrevo CBD há três anos, mas os trâmites são muito complicados. Tem uma avó aqui que vai três vezes por ano aos EUA trazer CBD para o neto.
Ele parou de ter convulsão. Mas, se ela for parada no aeroporto e descobrirem, ela vai presa”, acredita o neurologista Antônio Andrade.
Para o médico, há uma pressão dos laboratórios de medicamentos contra o avanço do óleo. “Porque no dia que a maconha for vendida em comprimidos, não vai dar dependência a ninguém, vai todo mundo ficar numa boa e no final vai desaparecer rivotril, lexotan, alcadil, tudo. A briga vai ser feia. E, na verdade, eles deveriam se preparar para entrar nessa briga”.No dia que a maconha for vendida em comprimidos, não vai dar dependência a ninguém, vai todo mundo ficar numa boa e no final vai desaparecer rivotril, lexotan, alcadil, tudo. A briga vai ser boa
Grupo de trabalho da Anvisa
A Associação Cannab observa que já há uma sinalização da Anvisa para que, em dezembro, seja elaborada uma regulamentação do plantio e extração do óleo no Brasil. “É o que nos garante fontes lá de dentro que são mais abertas a essa mudança”, afirma Leandro Stelitano. Mas, a associação quer se antecipar a essa decisão com o pedido de liminar. “A gente espera que as formas de regulamentação sejam aplicadas a partir de janeiro. Mas, os pacientes estão eufóricos. Querem iniciar tratamento logo. Eles não podem esperar”.
Se conseguir a liminar, a Cannab seria a segunda associação no país a conseguir liberação para o plantio e extração do óleo da maconha. A primeira funciona em João Pessoa (PB) e atualmente trata 600 pacientes. Recentemente, a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) conseguiu na Justiça o direito de produzir de forma definitiva o óleo da maconha. “Existe jurisprudência e até um parecer do Ministério Público Federal autorizando essa modalidade de associação”, observa Leandro. Hoje, há apenas associações de grupos de pais ou grupos universitários de pesquisa, mas que não fazem o plantio e extração do óleo para tratamento. “Eles ou importam ou produzem de forma clandestina”.
Já a Anvisa informou que realiza discussões preliminares internas sobre o tema em um grupo de trabalho, com vistas a uma proposta de regulamentação. “Essa discussão ainda envolverá a criação de um grupo de trabalho com outros órgãos, antes que uma proposta de iniciativa de regulamentação seja apresentada pela agência”, observou o órgão, em nota. Enquanto isso, o presidente da Cannabi insiste que tanto a liminar quanto a regulamentação diz respeito apenas à maconha medicinal e não à recreativa.
“Essa parte medicinal tem o respaldo da Anvisa. Na parte recreativa, a qual não temos ligação, ainda depende de avanços políticos”. O fato é que a quantidade de gente que pode se beneficiar com a maconha medicinal é impressionante. “Só no banco de dados do Instituto do Cérebro são 10 mil pacientes na Bahia com epilepsia”, ressalta Leandro.
“O Brasil inteiro espera uma droga nova. Uma droga sem efeitos colaterais e com o acesso da nossa população. Ninguém está fazendo apologia. Estamos falando de maconha, um remédio milenar que está sendo redescoberto”, afirma doutor Antônio Andrade. “Daqui a dez anos não vamos acreditar que tivemos que lutar pela liberação da cannabis”, encerra Jeffrey Sidi, um dos membros da associação.