Primeiro, ela teve um nome mais indígena. Há duas hipóteses: Kirimurê ou Paraguassu. Ambas, na linguagem tupi, têm um só significado - grande mar. Depois, avistada pelos invasores portugueses, no dia 1º de novembro de 1501, virou a Baía de Todos-os-Santos (BTS), aquela que faz de todos nós baianos.
O tupi foi substituído. Os portugueses que chegavam tinham o costume de nomear acidentes geográficos de acordo com o santo do dia. E era dia de Todos os Santos. Mesmo antes da colonização, os indígenas que habitavam suas bordas já faziam uso da Baía, pescando e navegando. Ela se tornou referencial histórico, social, econômico e ambiental para os habitantes de Salvador e seu Recôncavo.
Quem vive nos arredores acompanha as mudanças sem saber dar nome a cada uma e aprende a matemática do mar sem dominar os números.
Hoje, é um ambiente marinho mais salino, com espécies invasoras que se disseminam, regiões de recifes de corais próximos de mudarem de configuração, com contaminação química em pontos específicos, ao mesmo tempo em que abriga o ambiente costeiro mais biodiverso de peixes do Atlântico Sul e alimenta milhares de famílias.
Com uma superfície de 1.233 km², a Baía tem uma área que equivale à do Rio de Janeiro, segunda maior metrópole do Brasil, e é a segunda maior do Brasil, atrás da de São Marcos, no Maranhão. Ela é um acidente geográfico rodeado por 56 ilhas, outras duas Baías - Iguape e Aratu - e 16 municípios.
A Baía logo virou rota estratégica para o transporte de produtos e pessoas escravizadas, depois da invasão portuguesa. “O desenvolvimento do Brasil começa na Bahia. Toda parte do contato da Bahia com outros lugares era feita pela Baía”, lembra Jailson Andrade, doutor em Química e uma das referências nos estudos sobre a BTS. Se o desenvolvimento começou aqui, o impacto ambiental veio a galope.
A vocação da Baía como rota obrigatória resistiu depois da colônia. Nos arredores dela, a indústria petrolífera começou quando, em 1939, no bairro do Lobato, no Subúrbio Ferroviário de Salvador, foram descobertos poços de petróleo. Na virada para a década de 50, a Refinaria Landulpho Alves (RLAM), primeira refinaria nacional de petróleo, foi instalada em São Francisco do Conde, impulsionada pela descoberta de novos poços. As cidades e bairros banhados pela BTS ganharam indústrias como vizinhos
BAÍA, DOS ANOS 20 À PONTE SALVADOR-ITAPARICA
Entre a primeira metade do século 19 e 20, era pela Baía que se escoavam produtos de Salvador ou que iam para o sertão. Em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, os comerciantes pernoitavam. Quando a terra substituiu a água, as coisas mudaram. No centro-norte da Bahia, Feira de Santana se tornou o principal entroncamento do estado, explica Fernando Pedrão, doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Nunca houve consenso sobre quais são os municípios de fato influenciados por esse sistema de águas que ultrapassa o mar e mobiliza social, cultura e economicamente os habitantes dos entornos. “A região da BTS, que era uma só, passou a se falar como se fossem coisas diferentes. Há um problema de geografia em curso. Há muito trabalho que ficou na gaveta”, avalia Pedrão. “Não adianta visão romântica”. Mas a Baía ganhou outro patamar econômico com o petróleo e o novo conglomerado industrial.
Em 2020, entre os portos Aratu-Candeias e de Salvador, que se estendem pelas bordas da BTS, trafegaram 1.191 navios de carga. O Sistema Portuário da Baía de Todos-os-Santos comporta os portos de Salvador e Aratu-Candeias, dois terminais de uso privado da Petrobras, Ford, Dow Química, Moinho Dias Branco e Gerdau. Todos operam em áreas sob a jurisdição da Companhia das Docas do Estado da Bahia (Codeba). A Codeba afirma que possui um sistema de gestão ambiental para evitar qualquer dano ambiental, como vazamentos de produtos, explosões e outros acidentes ambientais provocados.
A construção da ponte que ligará Salvador e Itaparica já está no radar dos pesquisadores. A ponte é tida por seus defensores como um ponto na retomada da interligação econômica da sua maior ilha - Itaparica - e o Recôncavo. Uma reatualização do passado. Em outubro deste ano, o Governo da Bahia ordenou a desapropriação de terras para a obra, que ainda não tem data para ocorrer. “Economicamente e socialmente, pode ter um benefício grande. Por outro lado, é bom para as águas? Os pilares da ponte podem virar recifes pesqueiros, mas podem prejudicar a locomoção de cardumes, por exemplo”, pondera Tânia Tavares, doutora em Química pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Ufba.
Durante a construção da ponte, quando serão cravadas estacas e instaladas as pistas, há uma preocupação com a deterioração da qualidade de água, o aumento do ruído e a interferência nas rotas de cardumes de peixes migratórios. Mas o principal temor é com o futuro. A população nas cidades do entorno da BTS deu um salto de quase dois milhões entre 1970 e 2010, sem haver o devido planejamento urbano.
Das 16 cidades banhadas pela BTS, seis ainda não tem esgotamento sanitário - como o município de Vera Cruz. “A própria ilha terminará como um novo bairro de Salvador, com aumento exponencial da população, crescimento desordenado e pressão antrópica”, pondera Tavares. A expectativa é de que haja circulação de 28 mil veículos por dia na ponte. Em Itaparica, a especulação imobiliária já chegou, impulsionada por ela.
Área da BTS equivale à cidade do Rio de Janeiro
Ilhas fazem parte da BTS
Municípios são banhados diretamente pela BTS ou seus estuários
A CONTAMINAÇÃO QUE PERSISTE
Em 1983, a professora e pesquisadora Tânia Tavares já havia identificado e quantificado, com o epidemiologista Fernando Carvalho, a presença de contaminantes químicos na BTS - como cádmio e chumbo -, na área de influência da foz do Rio Subaé, ao norte da Baía e na Enseada dos Tainheiros.
Os contaminantes eram provenientes de uma metalúrgica em Santo Amaro e, na Enseada, devido à atividade de uma planta de cloro-soda, explica Tavares. As pesquisas para detectar contaminantes são feitas a partir de coleta de sedimentos nas superfícies e no fundo da BTS, moluscos comestíveis e ar.
Desde então, o conglomerado industrial no entorno da BTS cresceu e a pesquisadora levantou a presença de Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos (HPA) e metais como o mercúrio, chumbo, cádmio, níquel, cromo, manganês, arsênio e cobre. As maiores fontes de HPAs estão ligadas a ações como a exploração de petróleo e vazamentos e derramamentos de petróleo.
Nos sedimentos, as maiores fontes de HPAS são a exploração de petróleo e vazamentos e derramamentos de petróleo. No ar, a queima de combustível industrial e veicular. A longo prazo, podem causar doenças como o câncer, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca). No mar, desregulam o ambiente.
De 1992 a 2018, a reportagem identificou, com ajuda de nativos de cidades banhadas pela Baía e pesquisadores que investigaram o assunto, como Sérgio Nogueira Reis, 16 vazamentos de óleo na região ao redor da BTS.
SEM PLANOS PARA A BAÍA
Só em 1995, a BTS passou a ser considerada Área de Proteção Ambiental. Mais de 20 anos depois, no entanto, não há qualquer plano de manejo desse ambiente marinho dessa baía. O plano de manejo serve para compreender ações para a gestão e uso sustentável de uma área protegida. O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), responsável pela gestão da APA, não respondeu o porquê da inexistência do documento.
O Ministério Público do Estado da Bahia (MP) afirmou que já emitiu recomendações para que o Inema elabore o plano e que tem conhecimento sobre a contaminação nas águas da BTS. O Inema não cumpriu as recomendações, segundo o MP. Procurado pela reportagem nos últimos dois meses, o órgão também não retornou.
Os estudos sobre a contaminação química na BTS se multiplicaram ao longo dos anos. A doutora em Oceanografia Química pela Universidade de Sidney e professora da Ufba Vanessa Hatje acompanha há 18 anos o problema. Em três estudos publicados pelo grupo de pesquisa de Vanessa Hatje, na Ufba, entre 2020 e 2021, mostraram que o problema da contaminação permanece.
“Especialmente na região da RLAM e do estuário do Rio Subaé, áreas conhecidas na BTS como 'hotspots' de contaminação, devido às as atividades de refino de petróleo, e atividades industriais diversas”, explica.
A Petrobras, que administra a RLAM, afirmou que suas operações acontecem "de acordo com os mais rigorosos padrões internacionais de segurança, saúde, respeito ao meio-ambiente" e respeitam as legislações vigentes. A empresa ainda informou que mantém "relacionamento e comunicação constante com as comunidades do entorno".
A administração da RLAM está, no entanto, em fase de transição. A futura proprietária da refinaria é a Acelen. A reportagem perguntou quem seria responsável por um possível passivo ambiental (resíduos produzidos pela refinaria) deixado pela empresa. A Petrobras respondeu que "não procedem as informações sobre 'passivos ambientais'”.
DESDE OS ANOS 50, PARQUES INDUSTRIAIS SE DESENVOLVERAM NOS ARREDORES DA BAÍA DE TODOS-OS-SANTOS
ÀS MARGENS DA BAÍA, COMUNIDADES PRECISARAM APRENDER A CONVIVER COM INDÚSTRIAS E MOVIMENTAÇÃO PORTUÁRIA NA VIZINHANÇA
MAIS SALINA, BAÍA PASSA POR MUDANÇAS
Um dos primeiros naturalistas a observar a riqueza ambiental da BTS foi Charles Darwin, o pai da teoria da evolução das espécies. Em 29 de fevereiro de 1832, Darwin esteve em Salvador, onde certamente levantou informações sobre os recifes. A incerteza se dá pelo fato de Darwin não ter citado a BTS no seu livro A Viagem do Beagle, mas "a costa dos estados da Bahia e Pernambuco".
Darwin comentou com o canadense Charles Hartt, outro naturalista, sobre a existência de depósitos de conchas. Ele não chegaria a encontrar esses bancos, mas a viagem ao Brasil rendeu o primeiro levantamento faunísticos dos recifes brasileiros - entre eles os da BTS. Os recifes de corais reúnem 25% da biodiversidade marinha no seu arredor.
Embora não pareça tanto, você precisa considerar que os recifes ocupam 0,2% do oceano. É algo diminuto, enquanto a biomassa desses sistemas é grande
Economicamente, os recifes de corais também são importantes, pois atraem mergulhadores, sustentam a atividade pesqueira, são um banco de novas substâncias para a medicina e diversidade. Em 2007, surgiu a desconfiança de que alguns recifes de corais desta baía não eram mais os mesmos. A hipótese foi confirmada em seguida.
Em abril de 2019, um novo alerta foi aceso. Os corais degradados que ele tinha visitado em 2007 estavam também branqueados e os zoantídeos, organismos que habitam recifes, tinham sofrido com a onda de calor.
Há dois possíveis desfechos para o futuro, indica Igor Cruz: a recuperação desses corais ou uma mudança para uma terceira identidade “que não fazemos nem ideia”.
Os ecossistemas têm estabilidades e variações ao longo dos anos. Ele nunca vai ser exatamente igual ao que foi ontem, mas sempre deverá manter características que tornem possível identificações como: “Estamos em um recife de coral da costa da Baía”. Se essa identificação não for possível, é provável que tenha se tornado outro. Essa estabilidade tem dois atributos: a resistência, capacidade de resistir às intempéries, e a resiliência, capacidade de se recuperar caso não resista.
Quando há quebra de resistência, o sistema perde a identidade. Isso já foi observado em ambientes marinhos como o do Havaí, Caribe Jamaica.
A mudança não está só em parte dos corais, como na água da BTS em si. A cada ano, ela fica mais salina. A implantação da Usina Hidrelétrica de Pedra do Cavalo, em 1985, conteve boa parte do volume de água do Rio Paraguaçu. Há consequências que se pode esperar do aumento de salinização, explica Guilherme Lessa, doutor em Oceanografia Marinha pela Universidade de Sidney e o professor da Ufba.
O aumento de salinidade impacta todo um ambiente, inclusive a diversidade daqueles peixes. A maior diversidade é encontrada em águas mais salobras, em regiões de mistura da água marinha com a água fluvial. Esta região de mistura está deixando de ocorrer na baía durante os verões
Nos últimos 60 anos, houve diminuição da água doce transportada pelos rios e pela chuva para a Baía. A dissertação de mestrado de Rafael Mariani na Ufba, concluída em 2019, analisou dados meteorológicos e de vazão e mostrou que, nesse período, os rios Paraguaçu, Jaguaripe e Subaé apresentaram redução das suas vazões médias anuais de 62%, 72% e 24%, respectivamente.
O fato de chegar menos água doce também resulta em menos nutrientes e "potencial redução do estoque pesqueiro”, afirma Lessa, que orientou Mariani no mestrado. A diminuição dos nutrientes afeta a base da cadeia alimentar, daí o possível impacto, que ainda não foi estudado.
A CHEGADA DAS ESPÉCIES INVASORAS
O casco do siri do Paraguai é mais duro que o nativo e, para quebrar a superfície que guarda a carne branca, a faca é martelada com mais força. “A gente não gosta muito de pegar, mas tá dando muito", diz a marisqueira Lucia Marina Silva, 60, que não se lembra exatamente quando foi que o novo siri apareceu. Lá, em Ilha de Maré, os moradores chamam de siri do Paraguai, mas estão falando do siri-bidu, como é mais conhecido.
Vivem na BTS pelo menos 10 espécies exóticas invasoras, segundo a EcoBioGeo - entre elas, o siri-bidu e dois peixes ósseos. Quando uma espécie exótica aparece, é hora de acender o alerta, segundo Francisco Barros, doutor em Ecologia Marinha pela Universidade de Sidney e professor da Ufba. “Qual é o efeito dessa espécie? Algumas pesquisas estão em andamento. Mas, falta muito estudo experimental. Ainda temos uma carência muito grande de pesquisa ecológica séria e bem planejada na BTS”.
Se uma espécie exótica começa a ter efeito social, econômico ou cultural, afirma Barros, ela passa a ser considerada uma invasora. O siri-bidu, por exemplo, não tem o mesmo valor econômico que o siri azul nativo. E a competição ou substituição das populações nativas por invasoras pode prejudicar "diretamente as populações pesqueiras tradicionais, sempre o elo mais fraco em uma disputa na área ambiental”, diz Barros.
A discussão sobre espécies invasoras na BTS ganhou força em agosto de 2008. Era noite de um sábado quando Claudio Sampaio, doutor em Zoologia pela Ufba e professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), recebeu uma ligação do mergulhador e amigo Marcos de Paula. "Ele mergulho num navio grego naufragado em 80, o Cavo Artemidi, e me ligou para avisar: 'Acho que o coral-sol chegou aqui em Salvador".
Àquela época, a espécie invasora já tinha sido documentada no Rio de Janeiro. “Quando eu entrei no mar, que peguei a lanterna, foi uma coisa assustadora”. Pelo menos 80% do navio estava tomado. Hoje, o coral-sol é encontrado em todo o entorno da BTS, fundeado a até mais de 30 metros de profundidade, segundo a EcoBioGeo.
A hipótese mais provável é que o coral-sol tenha sido trazido por sondas que operaram no Caribe. O coral-sol disputa espaço com espécies locais. Por isso, pode reduzir a cobertura de outras espécies nativas. Esse coral também come pequenas larvas de crustáceos e moluscos, "muitos deles de interesse econômico", frisa Ruy Kikuchi, doutor em Geologia pela Ufba e professor na mesma universidade.
Mais de dez anos depois, o coral-sol não é o único coral invasor. Há também o azul e o marrom. Não é por acaso que essa bioinvasão acontece. Em locais poluídos e com degradação ambiental, ela ocorre mais facilmente, "pois as espécies nativas estão enfraquecidas", diz Kikuchi. Os vetores mais comuns são embarcações pequenas ou grandes, onde os invasores podem ficar incrustados nos casco, e água de lastro, aquela que é recolhida do mar pelos navios para que eles mantenham a estabilidade.
O maior problema das espécies invasoras, aponta o pesquisador, é o fato de que elas comprometem o ambiente nativo. E, no fim, impactam também as populações que dependem da BTS para viver.
PUBLICADO EM 30 DE OUTUBRO DE 2021