No início, houve quem dissesse que as crianças não percebiam a pandemia da covid-19. Alguns achavam que elas passariam por tudo isso sem entender a gravidade ou mesmo que estariam alheias a todas as mudanças que começaram a acontecer a sua volta. Mas não é por aí.
Na verdade, as crianças não apenas têm uma boa percepção do que tem acontecido como têm sido profundamente afetadas por todo esse contexto. De repente, palavras como ‘quarentena’, ‘isolamento’ e ‘grupo de risco’ passaram a fazer parte do vocabulário de quem mal tinha começado a construir o próprio repertório.
Mas uma coisa é certa: essa será uma geração diferente, ainda que não se saiba, ao certo, em quais e quantos aspectos. É por isso que pesquisadores de diferentes áreas ouvidos pelo CORREIO já reforçam, desde já, a necessidade de estudos futuros para acompanhar o crescimento dessas crianças.
“Eu não tenho dúvidas de que a pandemia deixa marcas desde em um bebê recém-nascido até em uma criança de 11 anos. Nenhuma criança e nenhum adulto, nenhum de nós vai sair ileso de tudo isso”, diz a psicóloga Ana Clara Bastos, doutora em Psicologia, especialista em desenvolvimento infantil e professora da Universidade Católica do Salvador (Ucsal).
Apesar disso, nem todos vão viver a pandemia da mesma forma. Há crianças estudando em casa, mas há aquelas que não tiveram nem sequer uma aula online. Outras vivem apenas com a mãe ou com o pai, enquanto algumas têm uma rede de apoio familiar. Há crianças indígenas, crianças com deficiência e outras tantas realidades diferentes.
“São situações muito peculiares. Você tem violência doméstica em qualquer classe social, por exemplo. Tem o impacto financeiro que a criança sente também. Muitas famílias faliram, algumas perderam emprego. Como esses pais estão fazendo para dar conta em casa? Tem pais que estão preocupados se o filho vai perder de ano, mas eu sinceramente me preocupo mais com a saúde mental. A parte de alfabetização, depois a criança recupera com facilidade”, diz a psicóloga.
Para entender o futuro, muitas vezes, é preciso olhar o passado. Em outras épocas, já houve situações que deixaram marcas na humanidade. Assim como a gripe espanhola influenciou toda uma geração, no começo do século 20, a covid-19 deve marcar as crianças de agora, na opinião da antropóloga Flavia Ferreira Pires, professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e líder do grupo de pesquisa Criança: Cultura e Sociedade (Crias).
“É uma quantidade de mortes e um medo que paira no ar sem precedentes de algo assim. Acho que quando nossas crianças de hoje forem adultas, vão contar que tinham 11, 10 ou 5 anos e que a mãe teve coronavírus, que o avô morreu, que a avó ficou internada, que teve medo de morrer, que não podia ir à escola ou ao cinema, que tinha que andar de máscara”, explica a professora Flávia Ferreira.
Em casa
Foi por isso que a mãe da pequena Ereli Teixeira, a professora Ana Claudia Texeira, 49 anos, entendeu logo que não podia camuflar a realidade em casa. Ereli tem 8 anos e mora com a família em Feira de Santana. Era preciso abrir o jogo. Assim, desde o começo, Ana Cláudia tentava ter conversas sobre como a covid-19 causava danos à saúde, mas sempre buscando uma forma que a filha compreendesse dentro da idade que tem. Ela conta que explicou sobre a importância de estudar para encontrar vacinas e medicamentos e também que todas as pessoas são mortais.
“Essa clareza também é importante para que a gente não fique maquiando. Nós já temos uma rotina muito caseira aqui, mas a coisa que modificou bastante foi a interação com as outras pessoas, essa troca presencial. Todos nós sentimos bastante”, conta.
Ela viu que era preciso ter sensibilidade para perceber como as mudanças vinham afetando a filha. Logo, Ana Cláudia viu que o momento de fazer atividades escolares se tornou algo mais incômodo ou uma hora mais delicada do dia.
“A rotina fica mais monótona. Ela não fala, mas a gente percebe a falta que faz a mediação pedagógica da professora. Eu sou professora, mas em casa eu sou mãe”.
Aos poucos, ela acredita que a família tem conseguido atravessar o turbilhão da quarentena. Agora, é o momento de se reinventar. “A gente prepara nossos filhos para aprender que nada está posto. Nossas certezas são baseadas em nossos projetos, mas eles podem ser modificados e não temos controle sobre isso”, afirma Ana Cláudia.
Já a autônoma Daniela Cerqueira, 32, mãe de Cecília Vitória, viu a pandemia prejudicar a qualidade de vida da menina. Aos 9 anos, Cecília convive com deficiências por ter sido prematura extrema. Por isso, a rotina de atividades como fisioterapia, hidroterapia e a própria escola eram intensas.
“Foi complicado para todo mundo, mas ela estava muito ansiosa. Ficava perguntando quando ia voltar para a escola, quando ia voltar para os atendimentos. E é uma coisa que a gente não tem resposta. É incerto”, explica.
A covid-19 ainda veio com novas mudanças para elas duas. Logo no início, elas saíram de Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador, onde moravam, para ficar com a família de Daniela em Feira de Santana.
“A gente mudou por conta da pandemia. Fomos para uma área de chácara e agora estamos tentando voltar. Estou procurando uma casa ainda para alugar, para ficarmos só nós duas”, conta.
Identidades
Se para muitos adultos, o distanciamento social já é difícil, para as crianças pode ser ainda mais desafiador. Os efeitos do isolamento afetam a construção da identidade dos pequenos e a própria socialização, como destaca o sociólogo Antônio Mateus Soares, doutor em Ciências Sociais e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
“A criança está numa fase que o contato com outras crianças possibilita a formação social através de brincadeiras, de práticas esportivas, lúdicas. A pandemia fragilizou esses laços”, pontua o professor Antônio Mateus Soares.
Mas o problema é que não para aí. A vida juvenil e adulta dessas crianças pode ter reflexos desse contexto atual. Para o professor Antônio Mateus, isso acontece porque a pandemia tem sido traumática para todos.
“A vida das crianças foi tomada de assalto. Elas estão em um momento em que o dinamismo das relações e do brincar, a própria relação com outras crianças faz parte do amadurecimento. No momento em que isso é suspenso, tem uma geração de traumas sociais”, explica.
É difícil afirmar que essas crianças vão formar uma geração de adultos com uma ou outra característica específica. Mas é possível imaginar que pelo menos quem teve algum contato mais direto ou próximo com a covid-19 pode ter que encarar outras batalhas no futuro.
“Aqueles que tiveram a doença em casa, entre amigos e familiares, aqueles que vivenciaram a morte e o cortejo de agonias, horrores e lutos certamente levarão na memória, na pele e talvez nas condições de existência marcas indeléveis. Talvez carreguem por um logo período sintomas psíquicos severos”, diz o filósofo Ricardo Henrique Andrade, doutor em Filosofia da Educação e professor da UFRB.
Por outro lado, é possível que as crianças de hoje sejam as responsáveis por fixar os novos hábitos trazidos pela pandemia. Ou seja, é bem provável que elas continuem com esses novos costumes como lavar as mãos de forma mais frequente ou de sempre carregar um potinho de álcool em gel.
Ao longo das entrevistas com as crianças que fazem parte deste especial, algumas já foram categóricas em afirmar que pretendem continuar até usando máscara mesmo depois que a pandemia acabar. Mais do que os adultos atuais, são elas quem podem transmitir esses comportamentos adiante.
Para o filósofo, as crianças provavelmente terão mais facilidade em se adaptar aos novos limites e às novas condições de vida, mesmo que instituições como as famílias e as escolas ainda estejam enfrentando percalços para sobreviver a esse novo momento.
“As escolas estão engessadas pela indefinição do Estado e as famílias também carecem de apoio, estrutura e orientação adequada para que tenham um papel construtivo na educação sob essas novas condições. Mais uma vez, as diferenças econômicas ampliam o prejuízo para as populações mais vulneráveis”, completa o professor Ricardo Henrique, da UFRB.
Saúde
Além de problemas sociais, a pandemia trouxe outros desdobramentos para a saúde das crianças. Nos últimos meses, a pediatra Aline Galy logo começou a perceber as diferenças com as crianças que chegavam para ser atendidas.
Uma das consequências é a desnutrição, que, em muitos casos, está ligada aos impactos econômicos. A renda de muitas famílias caiu, enquanto os preços dos alimentos têm subido. Em outubro, o IBGE divulgou os dados mensais da inflação na Região Metropolitana de Salvador (RMS) e os alimentos tiveram a maior alta. Em comparação a setembro, houve um crescimento médio de 1,8% nos preços de comidas e bebidas.
Embora o recorte seja apenas das cidades que fazem parte da RMS, o levantamento ajuda a entender a situação no estado de forma geral. Só para dar uma ideia, o arroz teve um aumento de quase 15% de um mês para o outro. De setembro para outubro, as carnes também ficaram 6,28% mais caras, enquanto os preços do óleo de soja e do tomate cresceram 15,82% no mesmo período.
“Isso vai refletir sem sombra de dúvidas e pode gerar uma anemia, um déficit cognitivo”, explica Aline, que é professora do curso de Medicina da UniFTC e pediatra da clínica-escola da instituição.
Com as crianças passando muito tempo dentro de casa, a médica viu que eram cada vez mais frequentes, nas consultas, casos de alta exposição a telas e um gasto calórico menor. Ou seja: sem ter como brincar de uma forma que exercite o corpo, elas acabavam gastando horas no computador, no tablet ou no celular.
“Isso acaba levando ao ganho de peso. Hoje mesmo estava na clínica e atendi uma criança de 11 anos que ganhou 10 quilos por conta do isolamento. É muito para uma criança. Então, temos um cenário de desnutrição, obesidade, anemia”, exemplifica.
Além disso, algumas chegavam para atendimento com o que parecia ser uma crise respiratória ou de asma. Até que, ao fim do exame clínico, a conclusão era de que não havia nada de anormal. Na maior parte das vezes, era uma crise de ansiedade.
Isso sem contar aquelas que têm chegado aos médicos já em estado grave por outras doenças. Muitos pais estavam com medo de ir a uma emergência devido à pandemia. Acabavam evitando hospitais ou consultórios médicos. Só que, no final, quadros que poderiam ser resolvidos com a prescrição de algum remédio acabavam evoluindo para situações com necessidade de internação.
“De fato, essa vai ser uma geração diferente porque a gente não sabe o que a pandemia vai provocar para elas. Nesse momento, em outubro de 2020, o que vejo é obesidade, sobrepeso, desnutrição”, avalia a pediatra Aline Galy, da UniFTC.
Só que, se essas condições forem mantidas, é possível que essas crianças se tornem adultos com hipertensão arterial sistêmica, diabetes, síndrome metabólica, aumento dos níveis de colesterol e até danos cognitivos considerados irreversíveis.
Bebês mais perto
Quando pensamos na relação das crianças com a pandemia, é quase natural que venham à mente primeiro os impactos negativos. Ainda que eles sejam os mais dramáticos e mais fáceis de imaginar, porém, não são os únicos.
De acordo com a pediatra Aline Galy, esse momento também acabou aproximando mães que tiveram bebês nesse período de seus filhos. Muitas têm tido a oportunidade de ficar mais tempo com as crianças, seja porque são grupo de risco, seja porque estão trabalhando de casa.
“É um ganho muito grande, porque algumas mães puderam ficar mais tempo com seu bebê em aleitamento materno exclusivo. Isso traz um vínculo maior para a família”, analisa.
O caso dos bebês é bem particular porque eles estão no momento que os especialistas consideram que é a fase da descoberta do mundo. É quando começa a acontecer o desenvolvimento da linguagem, físico e motor.
Daí a importância de estar em contato com a natureza ou ao ar livre, como explica a pedagoga Marlene Oliveira dos Santos, doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Só que ao contrário das crianças maiores, que conseguem expressar algum incômodo verbalmente, os bebês privados disso provavelmente vão demonstrar com choro, irritação ou alterações no sono.
“Claro que o bebê não vai saber o que é a pandemia, mas vai se sentir trancado em casa só com o pai e a mãe, sem a convivência com outras crianças. Talvez seja mais fácil, para a sociedade, identificar esses impactos pela oralidade. Mas não quer dizer que só as crianças maiores sejam impactadas”, diz a professora Marlene, da Ufba.
As ausências
No geral, há muitas faltas. A de interagir, de brincar, da escola. Contudo, algumas crianças podem ter vivido a pandemia com ainda mais ausências, como reforça a professora Marlene.
“É fato que as crianças negras, as crianças pobres economicamente, as moradoras das grandes periferias e as que têm algum tipo de deficiência têm sofrido muito mais. Elas acabam ficando muito mais expostas à violência simbólica”, diz a professora, que é líder do grupo de pesquisa em Educação Infantil, Crianças e Infâncias (Gepeici).
Mesmo assim, direitos básicos, como o direito à educação, não podem deixar de ser garantidos. Cuidar da saúde delas – seja física ou psíquica – também é uma obrigação. Por isso, escutar as crianças talvez nunca tenha sido tão necessário. Essa escuta deve ser sensível o suficiente para entender que, às vezes, esse diálogo pode acontecer de outras formas além das palavras.
“Historicamente, as crianças eram consideradas como aquelas que não tinham voz. Mas elas sempre tiveram voz, sempre falaram, ainda que em alguns momentos essa voz não tenha sido escutada. A gente precisa agora, cada vez mais, escutar as crianças, os professores e as famílias para compreender o que cada um viveu”, afirma.
De fato, é preciso olhar para as famílias, de forma geral. Entre a parcela da população que quer que as aulas presenciais voltem imediatamente, há desde aqueles pais que já voltaram ao trabalho fora de casa e têm se desdobrado para cuidar dos filhos até aqueles que têm um trabalho emocional maior – a chamada carga mental – por lidar com crianças confinadas 24 horas por dia em casa, além dos afazeres domésticos e outros tipos de trabalho.
Isso tudo aconteceu porque famílias que antes se viam poucas horas por dia passaram a conviver ininterruptamente, sem ajuda externa ou uma rede de apoio, como lembra a antropóloga Flavia Ferreira Pires, pesquisadora da UFPB. “A família está um caos. Coitada da família”, diz.
Hoje, há relatos de mães e pais que perderam empregos e tiveram quadros de depressão agravada, além de famílias que enfrentam problemas financeiros.
“A situação das famílias é realmente muito preocupante. Ter crianças confinadas no apartamento é caminho para o adoecimento mental, tanto delas quanto do adulto”, explica Flavia.
Nesse contexto, as mães podem acabar sofrendo mais. Em famílias chefiadas por mulheres, a carga de trabalho pode ser ainda mais exaustiva. Se há sinais de adoecimento – especialmente da saúde mental -, seja na criança ou no adulto, porém, o melhor caminho é buscar ajuda profissional, segundo a psicóloga Ana Clara Bastos.
Isso vale também para a forma como a covid-19 deve ser abordada. É fácil fazer com que uma criança fique extremamente assustada com tudo que tem acontecido. Ao mesmo tempo, a criança precisa conhecer para saber como se cuidar.
Para Ana Clara, é impossível evitar totalmente os impactos. “O que a gente pode fazer é minimizar. E, para isso, tem estratégias de aproximação, de estar junto, disponível e dar espaço para o diálogo para que a criança diga que está com medo, que está sofrendo, que está com saudade. Temos que ver o que é possível fazer para flexibilizar o distanciamento e o impacto”, completa.
E, para isso, as famílias podem se unir. Crianças e adultos podem se ajudar mutuamente. Elas podem, inclusive, inspirá-los. Ajudar a enxergar esse momento de outra forma. Os adultos podem, sim, tirar lições de aprendizado de tudo isso, segundo a antropóloga Flávia Ferreira Pires.
“Espero que a lição seja a necessidade que a gente tem de rever o nosso modo de viver, de estar no mundo, de lidar com o meio ambiente. O vírus é um reflexo da nossa sociedade que está doente. O que a gente faz afeta todas as espécies”, enfatiza.