Dulce, a eterna pedinte que tinha o apoio de vários políticos, mas nunca subiu em um palanque
Por Jorge Gauthier (jorge.souza@redebahia.com.br)
O avião cargueiro com bandeira dos Estados Unidos foi um dos maiores que pousaram no Aeroporto de Salvador no ano de 1962. Com mais de 20 toneladas de mantimentos e remédios foi descarregado por uma dezena de militares americanos, voluntários e por uma freira franzina de hábito azul, preto e branco – era Irmã Dulce.
O governo dos Estados Unidos temia o avanço do comunismo no Brasil quando João Goulart assumiu o poder no país. Dulce pouco se importou com a origem da ajuda: os cerca de 150 leitos do recém-inaugurado Albergue Santo Antônio - que deu origem ao atual Hospital Santo Antônio - viviam lotados de doentes. A porta da entidade amanhecia todos os dias apinhada de gente em busca de alimentos e remédios.
“Ela ficou muito contente quando soube que os americanos tinham mandado remédios e comida que daria para alimentar e cuidar de muita gente. Na época, questionaram porque ela estava aceitando isso dos Estados Unidos. Lembro que ela foi enfática ao dizer que não queria saber de onde vinha a ajuda, porque o que era importante era receber a ajuda. Irmã Dulce não tinha partido, nunca subiu em palanque e não queria ter suas obras associadas”, relembra Ângelo Calmon de Sá, empresário e dono do extinto Banco Econômico que foi um dos grandes apoiadores de Irmã Dulce e atualmente é integrante do Conselho de Administração das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), fundadas em 1959.
Ela ficou muito contente quando soube que os americanos tinham mandado remédios e comida que daria para alimentar e cuidar de muita gente
Um ano antes da chegada dos donativos, em 1961, os americanos haviam enviado médicos voluntários para trabalhar nas Obras Sociais através do Catholic Relief Service. “O médico Frank Raila chegou ao Hospital Santo Antônio e rapidamente se tornou um dos mais preciosos auxiliares de Irmã Dulce. Foi o primeiro médico a atuar em regime de dedicação exclusiva com a freira”, relata o jornalista Graciliano Rocha em seu livro Irmã Dulce, a Santa dos Pobres (2019/Editora Planeta). Rocha pesquisou por oito anos a história da freira nos Estados Unidos, Itália e Brasil.
Para Dulce, segundo relembra Calmon de Sá, o dinheiro não tinha cor. Ela costumava dizer que não se envolvia com política e que seu partido era ‘Deus’. Ela fez valer essa frase como mantra. Do dinheiro dos americanos passando por presidentes militares e eleitos pelo voto ou não, governadores, prefeitos, comerciantes e qualquer pessoa que pudesse ajudar, Irmã Dulce era uma ‘pedinte profissional’.
A habilidade de pedir e criar estratégias para conseguir recursos foram forjadas no período em que Dulce atuou no Círculo Operário da Bahia (COB), entidade criada por ela em parceria com a Igreja Católica e operários para levar serviços de assistência para a população.
No aspecto financeiro, segundo registram atas do COB, Dulce demonstrou uma exímia habilidade administrativa das ‘miudezas’ às ‘grandes realizações’. Os documentos inéditos aos quais o CORREIO teve acesso registram todas as ações de Dulce no COB entre os anos de 1942 e 1962. Foram conferidos pelo CORREIO 28 livros de atas dos cerca de 50 volumes que atualmente estão guardados na sede das Osid, no Largo de Roma.
Dulce não tinha limites para pedir. Da busca por um alto-falante para que as pessoas pudessem saber das missas, pedido em ata registrada no dia 30 de julho de 1942, à habilidade de conseguir parcerias e convênios com ministros, governadores e presidentes; a exemplo do que foi registrado em ata do COB do dia 18 de agosto de 1961.
Na ocasião, Irmã Dulce acabara de chegar de viagem de Brasília e do Rio de Janeiro com recursos garantidos para uma nova sede do COB na Liberdade, convênio para supletivo e ainda a promessa de voltar novamente em dois dias para pedir mais. Os olhos que cederam à súplica de Dulce foram de Jânio Quadros, que vivia naquele momento sob tensão política.
Ela sabia pedir, mas também sabia investir suas conquistas. Engana-se quem pensa que Dulce era mão aberta o tempo todo. Em ata do dia 3 de setembro de 1942, por exemplo, ela afirma que as aulas de corte e costura haviam sido canceladas porque a situação financeira do COB estava ruim. Apesar do desapego para doar e oferecer esmolas, para manter as contas em dias, ela chegou a demitir uma professora que queria aumento. Na época, cancela a estreia do time de vôlei do COB por falta de dinheiro.
Se fosse nos dias de hoje, certamente, o nome de Dulce estaria na lista de devedores cadastrados no SPC (Serviço de Proteção ao Crédito). Mas ela não estava nem aí. Não há registros do montante de débitos e empréstimos para construir suas obras. Em 1981, por exemplo, ela precisava de 5 milhões de cruzeiros mensais para manter o hospital, mas só arrecadara 1, 5 milhão.
A situação financeira no vermelho segue até os dias de hoje. Em 2018, as Osid fecharam o ano com um déficit nas contas de R$ 11,2 milhões, segundo Milton Pinto, atual gestor administrativo e financeiro das Osid.
Irmã Dulce contou com o auxílio de seu pai, professor e dentista Augusto Lopes Pontes, para fazer articulações financeiras e de influências na sociedade baiana. O próprio Augusto, que morreu em 1976, usou recursos pessoais no COB com aportes milionários. Cabia a ele, inclusive, estancar boatos de que Dulce e a Igreja desviavam dinheiro do COB. “Soube que alguns associados disseram que assistentes eclesiásticos do COB recebiam mensalmente dinheiro, o que tratava-se de uma calúnia (...) Muitos sócios não reconhecem, rasgam até as carteiras e jogam nos pés da nossa Irmã Dulce, disseram que até bomba iam soltar na nossa entidade ”, registra as falas do pai de Dulce em ata da diretoria do COB do dia 15 de abril de 1956.
Calmon de Sá, que foi conselheiro de Dulce, destaca que o pai dela teve papel fundamental na função administrativa que a freira se incumbiu. Ela aprendeu na prática a gerenciar os negócios.
Dinheiro santo
Muito dinheiro circulava nas mãos de Dulce, mas segundo relatos de quem conviveu com ela, a religiosa não usava os recursos em seu benefício. Nos anos 1960, quando a fama de benfeitora da freira baiana se espalhou pela cidade longas filas se formaram na porta do Hospital Santo Antônio em busca de ajuda. Quando os americanos fizeram doações houve um período de grande fluxo financeiro nas obras. Não se pode dizer que havia sobra, mas foi um período mais confortável.
“Ela não tocava no dinheiro para benefício próprio ou de pessoas da família. Quando a obra recebeu uma grande quantia dos Estados Unidos, ela mandou uma carta para a madre-geral do convento pedindo autorização para pegar um pouco de dinheiro e comprar tecido para fazer um hábito novo, porque o dela estava rasgando”, conta Maria Rita Lopes Pontes, sobrinha de Dulce e atual superintendente das Osid.
Já quando o destino eram outras pessoas, ela não se fazia de rogada. “Ela sempre usou o dinheiro como instrumento para fazer o bem e não para buscar poder ou algo em benefício próprio. O que ela sempre dizia é que a obra dela não era política”, diz a sobrinha que assumiu a gestão das Osid após a morte de Dulce, em 1992.
Durante o período em que esteve viva, Dulce tentou transferir a gestão das obras para Madre Tereza de Calcutá e também para Ângelo Calmon de Sá. Ambos recusaram. Dulce temia não conseguir gerenciar os negócios e demandas administrativas. “Ela dizia que o que ela sabia fazer era pedir esmolas para os pobres e não ficar cuidando de papéis”, conta Calmon de Sá. Nos anos 1980, Dulce recebeu uma proposta dos Camilianos - grupo criado por frades na Itália que desenvolvia trabalhos de gestão de hospitais do Sudeste do Brasil - para que eles gerenciassem as Osid.
Ela não tocava no dinheiro para benefício próprio ou de pessoas da família
Ela dizia que o que ela sabia fazer era pedir esmolas para os pobres e não ficar cuidando de papéis