Dulce sempre teve saúde frágil e chegou a dormir 30 anos em uma cadeira
Por Jorge Gauthier (jorge.souza@redebahia.com.br)
Fevereiro de 1992. Hospital Santo Antônio. O sol de meio-dia queimava forte do lado de fora do Largo de Roma. Irmã Dulce treme de frio e dor em seu leito de UTI.
‘Tire o aparelho que eu quero morrer’, clamou Irmã Dulce em um momento de fortes dores para a auxiliar de enfermagem Marina da Conceição Andrade Silva.
‘Irmã eu não posso tirar porque senão a senhora vai morrer’, disse Marina, aos prantos, em resposta ao pedido da freira.
‘Eu assino. Me dê uma caneta e um papel que eu assino. Eu quero morrer. Não aguento mais’, desesperava-se em meio às lágrimas Irmã Dulce um mês antes da sua morte.
‘Não, Irmã. Eu não posso’, chorava em recusa Marina ao único desejo de Dulce que não pôde atender.
Tire o aparelho que eu quero morrer. Me dê uma caneta e um papel que eu assino. Eu quero morrer. Não aguento mais
Depois disso, Dulce cerrou os olhos e ‘fechou a cara’. Fez gesto com a mão de que havia ficado chateada e que não queria mais conta com Marina, que acabara de presenciar um raro momento de desespero de Dulce diante da dor. O desejo de Irmã Dulce descrito acima aconteceu poucos dias antes de sua morte, em 13 de março de 1992.
“Sempre ficavam duas pessoas por vez, mas nesse dia eu fiquei sozinha com ela no quarto, que funcionava com uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Quando três pessoas saíram ela me fez o pedido para eu desligar os aparelhos porque ela não aguentava mais de dor. Eu nunca pensei em ouvir aquilo vindo dela (...) Ela não queria mais ficar viva porque era muito sofrimento”, relembra Marina que atualmente tem 68 anos e segue trabalhando nas Obras Sociais Irmã Dulce (Osid).
Dulce já estava com sua capacidade respiratória bastante reduzida, especialmente pelos efeitos da promessa que fez pela saúde de sua irmã, Dulcinha. Por ela, dormiu por 30 anos em uma cadeira de madeira. Só conseguia respirar por aparelhos, sentia dores intensas. No quarto de 12 metros quadrados, onde passou seus últimos dias, Dulce rezava diariamente o terço com Marina.
Às 16h45 do dia 13 de março de 1992, o desejo de Dulce acabou sendo atendido sem a intervenção de Marina.
Seu corpo não aguentou a dor e a freira encerrou sua jornada na terra. Marina estava no quarto no momento. “Foi uma emoção muito grande. Nosso Senhor tirou ela do sofrimento e levou ela. Eu não queria, mas o sofrimento dela era muito grande com os aparelhos para respirar. Quando Nosso Senhor levou ela para perto dele, eu respirei aliviada porque sabia que ela não ia mais sofrer. Todo mundo sofria junto com ela”, relembra Marina contando que a despedida de Dulce foi silenciosa e serena.
Marina foi escolhida pessoalmente pela freira para compor a equipe que lhe ajudou nos últimos momentos de vida. “Quando ela entrou na fase crítica, precisava de gente para ficar o tempo todo com ela e eu fui escolhida, mas eu não queria porque eu não queria ver ela sofrer. Eu chorei muito dizendo que não queria, mas a irmã me chamava. Eu não pude dizer não. No primeiro dia que eu entrei no quarto, ela sorriu e agarrou na minha roupa como se dissesse que dali eu não ia sair mais. Pedi muita força a Deus para poder ver ela sofrendo e me manter forte”, conta Marina lembrando que todos os dias rezava o terço com Dulce.
A auxiliar de enfermagem se recorda que quando estava lúcida, mas já adoentada na UTI, Dulce mantinha o bom humor. “Eu gostava muito dos dias de domingo que ela arrumava os escapulários (adornos para as cabeças usados por noviças). Eu pedia para ela ajudar e ela dizia que eu não sabia fazer porque só ela que era freira conseguia fazer”, conta Marina que está nas Osid há 36 anos e foi ajudada diversas vezes pela freira, inclusive, financeiramente - com o auxílio de Dulce conseguiu uma bolsa de estudos para sua filha.
Pedi muita força a Deus para me manter forte. Nosso Senhor tirou ela do sofrimento. Eu não queria, mas o sofrimento dela era muito grande.
Saúde milagrosa
Tecnicamente, Irmã Dulce vivia uma ‘vida desregrada’. Acordava diariamente às 5h e não tinha horário para dormir. Comia mal e tinha efisema pulmonar, doença crônica que provoca destruição gradual dos tecidos. Os sinais de fragilidade da saúde de Dulce apareceram, segundo seu biógrafo Gaetano Passarelli destaca no livro Irmã Dulce: o Anjo Bom da Bahia (2010/Paulinas), nos idos de 1933, quando ela iniciou sua vida como noviça no Convento do Carmo, em São Cristóvão no interior de Sergipe.
Ela começou a desenvolver uma rouquidão - agravada quando voltou para Salvador e foi dar aulas de catequese e passou a ensinar no Curso Infantil e além de Geografia e História no Colégio Santa Bernardete, no Largo da Madragoa, pertencente à Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, a qual Dulce fazia parte.
Em junho de 1934 obrigada pela madre superiora do convento, fez uma cirurgia na garganta para melhorar sua condição respiratória. Como sequela, sua voz ficou reduzida a quase um sussurro até o fim da sua vida. Mesmo doente, ela não parava. Em 1936, segundo relata Passarelli, Dulce estava com forte atuação na comunidade de Alagados, na Cidade Baixa, quando sentiu forte dores. Era uma crise de apendicite que ‘tirou Dulce’ do trabalho das ruas por alguns meses. O “tirou” vem entre aspas mesmo porque ela não parava. Quando se sentia melhor, chegava a sair escondida mesmo proibida pelos médicos.
Nos anos 1960, Dulce passou a sentir fortes dores de cabeça e teve episódios de desmaio que levaram os médicos dela no período a achar que ela não conseguiria continuar nas ruas. Sua sobrinha, Maria Rita Lopes Pontes conta que Dulce chegou a viver quase um mês se alimentando basicamente de colheradas de Coca-cola. Dulce passou grande parte da sua vida pesando cerca de 45 kg e apresentava um quadro de desnutrição.
Médicos que acompanhavam Dulce especulavam que a fragilidade da saúde foi provocada pelo contato com muitos doentes sem proteção. O médico Taciano Campos, que faleceu em 2015, cuidou da saúde de Dulce por mais de três décadas. “Como médico, afirmo que o primeiro milagre de Irmã Dulce, o mais evidente, foi ela conseguir viver do jeito que viveu, com a saúde que tinha. O enfisema pulmonar dela impediria qualquer um de viver com tamanha disposição. Uma vez ela teve uma forte crise que achei que seria impossível ela sobreviver. Ela estava no quarto com falta de ar e febre. Fiz o que pude e dei uma passadinha no consultório. Cansado, sem perceber, caí num cochilo. Acordei assustado e voltei correndo para vê-la. Tomei outro susto. Ela não estava mais na cama. Achei que havia morrido e já tinham levado o corpo. Que nada! Em poucas horas, tinha se recuperado e estava trabalhando. Ninguém se recupera daquela forma”, relembrou Campos, ex-diretor médico do hospital em entrevista ao CORREIO, em maio de 2011.
Taciano tinha uma tática especial para convencer Dulce a cuidar da saúde: a chantagem. “Ela trabalhava sete dias da semana todos os dias. Não queria descansar. Mesmo quando estava muito doente, ela queria se levantar e ajudar as pessoas. O Dr. Taciano era o único que conseguia mandar nela. Ele dizia que ela precisava ir para o Convento Dom Amando [Jardim Nova Esperança, em Salvador], onde as freiras normalmente descansavam, pelo menos uma vez por semana. Ele só convencia ela quando dizia que, se não fosse, iria morrer e que os doentes e pobres dela ficariam sem ajuda”, conta Irmã Olívia, freira da congregação de Dulce.
Irmã Olívia não tinha o mesmo poder de persuasão do médico. Nos anos 1990, ela revezava com outras freiras do Convento Santo Antônio [instalado no Hospital Santo Antônio] na missão de ajudar Dulce a dormir. “Ela não conseguia dormir se não tivesse a ajuda do oxigênio. As irmãs do convento se revezavam para segurar a máscara para ela porque ela não tinha forças de deixar a máscara firme no rosto sozinha. Ela passava a noite péssima, tossindo e dormia pouco. Quando o sol raiava ela, pedia para tirar a máscara para ir visitar os leitos do hospital. Não dava para impedir. Ela levantava como se tivesse dormido a noite inteira. De noite, tudo recomeçava”, recorda a religiosa.
Até o papa João Paulo II puxou a orelha de Dulce para que ela cuidasse mais da sua saúde. Em 7 de julho de 1980, quando visitou o Brasil pela primeira vez, ao se despedir de Dulce, o pontífice recomendou: “Continue, Irmã! Mas cuide da sua saúde. É necessário que a senhora se poupe um pouco mais”. Obviamente, que ela não parou.
Só arrefeceu em 1991 quando, até morrer em março de 1992, agravou sua condição respiratória e ficou na UTI do Hospital Santo Antônio - inaugurado por ela em 1983. Foi paciente do seu próprio hospital. Sua sobrinha, Maria Rita Lopes Pontes, morava no Rio de Janeiro e foi chamada à época para assumir as obras interinamente (hoje, ela é a superintendente das Osid). Nesse leito, o papa - que hoje também é santo reconhecido pela Igreja Católica, visitou Dulce cinco meses antes de sua morte quando ela pouco falava e se comunicava basicamente com olhares e sinais.
Em 1941, Dulce se formou no curso de oficial de Farmácia. Passou a vida toda lidando com remédios. Conquistou uma mania que levou até quase o fim da vida. Usou a experiência ao seu favor em uma das suas poucas exigências na vida. Para receber qualquer medicação, queria ler a bula primeiro.
Humor e respiração
Irmã Dulce fazia graça até com suas próprias dores. Nos anos 1990, ela apelidava seus braços, pernas e pulmão, que não atendiam com o mesmo vigor da juventude. “As pernas ela chamava de Mariazinha e Chiquinha. O braço, que uma vez ela fraturou, ela chamava de Jamelengo. O pulmão esquerdo, que só tinha 25% da capacidade respiratória ela chamava de Joãozinho. Ela dava um jeito de deixar as dores mais leves”, acredita Ana Maria Lopes Pontes, de 79 anos, que é irmã caçula de Dulce. Quando Dulce ficou acamada, coube a Ana Maria a missão de ir para reuniões com políticos e autoridades.
Entre 1987 e 1992, últimos seis anos da vida de Irmã Dulce, a auxiliar de enfermagem Valquíria Cardoso integrou a equipe de cuidados da religiosa. “Eu trabalhava no hospital e pediram para eu tomar conta dela. Três pessoas foram selecionadas: eu, Ivone e Lurdes. Eu fui e ela escolheu a mim. Fui abençoada para tomar conta dela; uma grande dádiva. Era a única negra, e as outras duas candidatas eram brancas. Perguntei por que ela me escolheu e ela disse que o santo dela foi com o meu, e que a gente era do mesmo signo. Ela fazia aniversário 26 de maio e eu 3 de junho. Somos de gêmeos”, contou Valquíria em depoimento ao livro Irmã Dulce: os Milagres pela Fé (2015/Autografia).
Mesmo debilitada, Irmã Dulce não se separava da fé. “Ela rezava dois terços todos os dias. O primeiro às 6h da manhã e o outro às 15h da tarde. Quando cheguei para tomar conta dela, Irmã Dulce tinha caído e quebrado o braço. Depois piorou. Teve um problema respiratório muito grave, ficou muito debilitada e foi levada para o Hospital Português. Em seguida, foi para o Hospital Aliança, ambos em Salvador. Mas ela reclamava e dizia que queria voltar para casa, para o hospital dela”, recordou Valquíria ao livro.
A mania de apelidar partes do corpo se estendeu até Valquíria que, na época, pesava cerca de 110 quilos. De Irmã Dulce, ela recebeu o apelido de “Esqueleto”. Hoje, quase 60 kg mais magra, Valquíria é chamada da mesma forma por todos que trabalharam com ela nas Osid.
Valquíria guarda, com orgulho, a lembrança de ser a única técnica de enfermagem que conseguia colocar o acesso de medicamentos nas veias de Dulce. “Ela era muito magrinha e quase não dava para ver as veias. As outras não conseguiam. Eu usava os instrumentos de criança para poder pegar as veias e colocar a medicação nela. Quando ela ficava sem dormir eu aproveitava e botava um soro com vitamina D. Eu dizia que ela tinha que melhorar para cuidar dos doentes dela”, conta a profissional que após a morte de Dulce só ‘aguentou’ trabalhar por mais 15 dias no hospital.
Outro orgulho de Valquíria foi ter ‘engordado’ Dulce. “Quando eu comecei a trabalhar cuidando dela, ela pesava 32kg. Antes dela morrer ela já estava com 45kg. Ela tinha fome e eu botava ela para comer”, conta Valquíria. A profissional de Enfermagem tinha métodos pouco ortodoxos para deixar Dulce mais forte. “Ela me pedia ajuda para fugir para comer. Ela tinha fome de comer comidas que não eram aquelas que os médicos deixavam prescritas. Quando chegava de manhã nos dias que ela estava mais fortinha, nós pegávamos o carro e iamos para minha casa. Eu fazia feijão, arroz doce e quiabada para ela comer. Ela comia pouquinho mas comia para matar a vontade”, explica Valquíria.
Ela me pedia ajuda para fugir para comer. Ela tinha fome de comer comidas que não eram aquelas que os médicos deixavam prescritas