‘Ela sofreu muito’, diz sobrinha sobre período que freiras abandonaram o Anjo Bom da Bahia
Por Jorge Gauthier (jorge.souza@redebahia.com.br)
1964. O relógio marca 4h. Antes mesmo do sol nascer, Irmã Dulce já estava ajoelhada rezando o terço. Depois de algumas colheradas de mingau de aveia, circulava por todos os leitos do Albergue Santo Antônio olhando nos olhos de cada um. Um golinho de café preto. Ao seu lado, mais nove freiras da Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus se dividiam no cuidado dos doentes junto com voluntários e poucos funcionários. Às 7h, ela já estava na rua pedindo esmolas. Voltava, comia quiabada e seguia na sua interminável rotina do cuidado. Não parava. As outras freiras também não. Se enchia de dívidas para investir no espaço que funcionava como hospital. Não tinha dinheiro para pagar e não estava nem aí.
Mas, Dulce ficou só. Antes mesmo que o ano acabasse, a Igreja deu as costas para a religiosa. Recém-instalado na Arquidiocese de Salvador, dom Eugênio Sales decidiu afastar a freira baiana da Congregação, mas permitiu que ela continuasse a usar suas vestes de freira. A congregação temia também que as dívidas contraídas por Dulce na época - não há informações sobre o montante - pudessem ser reclamadas pelos credores à entidade. O Vaticano, para o processo de canonização, fechou os olhos para a recusa da religiosa em seguir os votos de obediência professados em 1933 quando virou noviça.
As irmãs deixaram o convento que funcionava no albergue e Dulce permaneceu na sua jornada sem o apoio oficial das missionárias até 1974. Poucas vezes Dulce falou sobre o assunto. Não gostava de confrontar a Igreja, mas reconhecia que sua missão era maior do que aquilo que era posto pelos representantes eclesiásticos.
“Quando eu virei freira a minha cabeça estava mais mirada em ajudar os pobres. E, naquela época, todo mundo estranhava porque eu vivia o dia todo na rua. O povo falava que não era certo para uma religiosa viver o dia todo na rua. Mas eu tinha licença, por escrito, da madre geral para me dedicar a essa vida. Interiormente, eu sabia que era isso que Deus queria que eu fizesse, um apostolado direto com o povo”, disse a freira em 1989 em entrevista para o documentário Mãos Carinhosas, produzido pela TV Canção Nova.
Naquele tempo, as regras eram muito rígidas. “A Igreja exigia demais dos religiosos. Tinha que se seguir tudo ao pé da letra. Então, as irmãs não poderiam fazer o que Dulce fazia. As irmãs da congregação explicavam que ela não poderia sair tão tarde, encher o albergue/hospital de doentes, mas ela não queria nem saber. A missão dela era ajudar os pobres. Quando chegaram umas irmãs da Alemanha, que haviam ajudado em missões da Segunda Guerra Mundial, acharam o hospital sem luva e em condições precárias. Nesse período, além dos doentes do hospital ficavam aqui muitas crianças do orfanato. Os meninos ficavam entrando nas enfermarias, brincando. Foi aí que a Congregação falou que Irmã Dulce tinha que se ‘enquadrar’ e melhorar a forma de trabalho, mas ela não se aquietou. Foi aí que as freiras saíram das obras naquele momento”, explica Irmã Olívia, freira da congregação que atualmente mora no Convento Santo Antônio e trabalhou por mais de 25 anos ao lado de Dulce.
Quando eu virei freira a minha cabeça estava mais mirada em ajudar os pobres. E, naquela época, todo mundo estranhava. O povo falava que não era certo para uma religiosa viver o dia todo na rua. Mas eu tinha licença, por escrito, da madre geral para me dedicar a essa vida.
Sobrinha da freira, Maria Rita Lopes Pontes rememora que esse período foi de muito sofrimento para Dulce. “Foi um período de pouco mais de dez anos que ela sofreu muito. Foi um período de muita dor onde ela estava sozinha. Mas ela tinha sempre muita fé e muita resiliência de que tudo isso ia passar um dia. Ela continuou vivendo a mesma vida dentro do hospital. Ela sentia muita saudade das irmãs, continuava escrevendo para as religiosas da congregação. Ela nunca perdeu totalmente o contato. Ela teve o apoio de vários cardeais e arcebispos que apoiaram ela em todo período que ela esteve atuando. Foi um período difícil, mas acho que agora com esse reconhecimento [dela se tornar santa], ela com certeza está feliz por saber que todo passado foi resolvido”.
Irmã Olívia lembra que a própria Dulce reconhecia que o trabalho era pesado. Eram quase mil pessoas para serem atendidas em pouco mais de 150 leitos formais. Até o necrotério era ocupado para abrigar doentes. No período em que as freiras deixaram o convento esses números dobraram e Dulce deu início à profissionalização mais intensa da gestão de suas Obras, que atualmente compõe a maior rede gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil com média de 3,5 milhões de atendimentos mensais.
“Ela tinha uma força misteriosa. Ela sabia que o trabalho dela era árduo, mas ela se preocupava com a saúde física e cuidados religiosos das irmãs. Uma vez por mês ela chamava os sacerdotes para fazer retiro espiritual. Uma vez por semana ela obrigava as irmãs a irem para o Convento Dom Amando, na Estrada Velha do Aeroporto”, argumenta Olívia.
Ao contrário do que fazia com as irmãs, Dulce não descansava. Só ia para o convento quando seu pai reclamava ou quando seu médico Taciano Campos a obrigava. “Mesmo quando ela estava super doente ela não queria descansar. Ela dizia que a gente não vivia para nós. A gente vive para servir. Quando as irmãs voltaram para o lado dela, ela já estava doente. Uma freira dormia todos os dias ao lado dela segurando o oxigênio. Mas quando chegava de manhã, ela já pulava da cama para ir visitar os doentes”.
Nesse período, chamado de exclaustração, Dulce continuava como freira, mas não devia obediência às regras da congregação. Sobrinha de Dulce, a médica Marta Lopes Pontes se recorda a mudança no funcionamento do hospital nesse período. “Eu interpretava aquele momento como uma vitória de Irmã Dulce. Eu dizia que as freiras quiseram colocar ela para fora, mas foi ela que venceu e as freiras que saíram. Eu achava ela forte e vitoriosa. A Igreja naquele momento abandonou Irmã Dulce, mas foi a melhor coisa que pôde acontecer para ela. Quando ela ficou sozinha foi uma alegria para a família, apesar do sofrimento que ela passou, porque nós podíamos vir mais visitá-la e com menos regras”, relembra Marta.
Aos 92 anos, a Irmã Joana Barros, que atualmente vive na Comunidade Clara no Hospital São José, foi uma das fiéis companheiras de Dulce nesse período em que a igreja institucionalmente se distanciou. Algumas freiras também subverteram as ordens oficiais e iam visitar Dulce em alguns momentos para ajudá-la. “Eu admirava muito seus trabalhos com a pobreza”, diz a religiosa que há dias não falava por conta da saúde debilitada. No entanto, ao encontrar a reportagem do CORREIO, assim que dissemos que era pra falar sobre Dulce completou: ‘Ela me disse que vocês viriam aqui’.
Santos missionários como Madre Tereza de Calcutá e Irmã Dulce tiveram nas suas vivências terrenas que se confrontar com as normas vigentes do seu período. O arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, dom Murilo Krierger, acredita que esses santos mais contemporâneos têm uma subversão natural aliada à falta de compreensão pelo tempo que viviam.
“Os santos sempre foram subversivos. Eles sempre destacaram valores que a gente não percebia, mas acima de tudo sempre no sistema da caridade. Eles não buscavam fama nem reconhecimento. Eles buscavam a melhor forma de atender ao necessitado. E, às vezes, a autoridade religiosa da época não tem a mesma visão. Os santos têm a capacidade de serem a voz de Deus na terra. Eles vão chamar a atenção da sociedade de valores que não são comuns. No começo, estremece porque os santos são subversivos, mas eles abrem novos horizontes”, argumenta Krieger.
A visão de Irmã Dulce era muito humana com as pessoas. Ela não podia ver um pobre jogado na rua que já queria ajudar mesmo se isso contrariasse as regras religiosas e sanitárias. “Mesmo que não tivesse uma cama para colocar o enfermo ela botava em um colchão no chão. O amor, a medicação e o alimento não faltavam. Mas não tinha muito material de trabalho. Chegava gente mordida de rato, de bichos e ela botava a pessoa num balde de creolina. Todo muito saía de perto, por causa do fedor, e ela ficava lá vendo os bichos saírem. Ela não tinha nojo e nunca pegou uma doença de pele. Era igual a São Francisco que beijou o leproso”, afirmou Irmã Olívia que atualmente segue no convento com outras duas freiras.
Igreja por perto
Apesar de ter sido negligenciada por mais de uma década por segmentos da Igreja, Irmã Dulce fez questão de manter a sua obra associada à princípios religiosos franciscanos. Não necessariamente com a Igreja em si - apesar de que, desde os seus primeiros passos nos projetos sociais do Círculo Operário da Bahia (COB) até hoje, a entidade tem participação no conselho administrativo das Obras Sociais Irmã Dulce.
A fé sempre foi a aliada inabalável de Dulce no fomento à evangelização. Documentos obtidos pelo CORREIO que mostram a atuação de Dulce no COB revelam que em praticamente todas as participações nas reuniões, a freira fazia questão de enfatizar a necessidade das orações. Certa vez, por exemplo, os circulistas se preparavam para presenteá-la. Ela recusou o presente. “Quero que todos rezem o terço e vão para a missa”, sentenciou.
A atual superintendente das Osid reforça que a religiosidade tem papel fundamental na condução dos trabalhos das obras deixadas por Dulce. “A grande preocupação dela é que a obra seguisse tendo o espírito de amar e servir franciscano. Ela nunca quis que o hospital fosse um lugar onde as pessoas fossem números. O que ela sempre quis foi que não deixássemos a obra distante de Deus”, argumenta Maria Rita que integra o conselho administrativo da obra onde a igreja tem quatro das 13 cadeiras. Uma delas, inclusive, ocupada por dom Murilo.
“Irmã Dulce não fez uma obra para os homens. Ela fez a obra para Deus e por isso temos que seguir firmes na condução exata do que Deus quer e que ela fez muito bem”, completa o arcebispo.
A própria Irmã Dulce gostava de enfatizar que Deus era seu grande pilar nos trabalhos, independente da personificação da autoridade religiosa. "Obra de Deus não se interrompe, porque Ele não permite. Se foi Deus quem construiu o hospital, por que haveria de sofrer interrupção? Eu nada fiz, porque nada sou. Quem faz tudo é Deus, nunca se esqueça disso (...) Se fosse preciso, começaria tudo outra vez do mesmo jeito, andando pelo mesmo caminho de dificuldades, pois a fé, que nunca me abandona, me daria forças para ir sempre em frente (...) Foi o nosso povo, com a sua fé, sob inspiração de Deus, que construiu toda essa obra", costumava falar Dulce recorrentemente.
O projeto Pelos Olhos de Dulce tem oferecimento do CORREIO e patrocínio da HapVida
Irmã Dulce não fez uma obra para os homens. Ela fez a obra para Deus e por isso temos que seguir firmes na condução exata do que Deus quer e que ela fez muito bem