Irmã Dulce dormiu por três décadas em uma cadeira para cumprir promessa
Por Jorge Gauthier (jorge.souza@redebahia.com.br)
Quinze meses antes da freira baiana nascer, sua mãe, Dulce Maria, deu à luz a sua irmã Dulce Maria de Souza Brito Lopes Pontes, a dona Dulcinha (1915- 2006). As duas foram muito próximas. Só dona Dulcinha conseguia arrancar o sorriso mais generoso da freira. “Ela e Dulcinha eram unha e carne. Quando Irmã Dulce estava doente, Dulcinha se vestia de maluca e invadia o hospital fazendo graça. Ali, Irmã Dulce dava seus mais animados sorrisos”, relembra Ana Maria Lopes Pontes, irmã caçula de ambas. Por Dulcinha, Irmã Dulce passou de 1956 até 5 de dezembro de 1985 em uma cadeira de madeira de pouco mais de 1,70 m com os pés apoiados em um banquinho, também de madeira.
A penitência a qual Dulce se impôs teve como objetivo clamar pela salvação de sua irmã preferida e confidente por duas ocasiões. Dois anos antes do início da promessa, em 1954, Dulcinha havia perdido um bebê no oitavo mês de gestação. Sofreu com fortes hemorragias. Irmã Dulce prometeu que se a irmã sobrevivesse dormiria o resto da vida em uma cadeira. Assim o fez. Dois anos depois, quando Dulcinha já havia dado à luz Maria Rita Lopes Pontes [atual superintendente das Osid], teve uma nova gravidez de risco. Graças à promessa, também ganhou muitas camas para o hospital. As pessoas viam que ela dormia na cadeira e doavam camas, sem saber da promessa.
“Foi aí que Irmã Dulce aumentou a promessa. Antes, na cadeira tinha umas almofadas fininhas. Ela prometeu tirar as almofadas e dormir na madeira da cadeira para sempre. Deus atendeu as preces dela. Dulcinha sobreviveu. Infelizmente, o bebê não. Mas graças às orações e penitências de Irmã Dulce nossa irmã Dulcinha sobreviveu”, relembra Ana Maria, que é assistente social aposentada.
Todos, inclusive, dona Dulcinha ficavam preocupados com a saúde da freira por dormir na cadeira. “A condição respiratória dela era muito ruim. Ela acordava muito cedo e ia se recolher muito tarde. O corpo dela não descansava direito, dormindo numa cadeira e tendo um trabalho tão extenuante”, acredita Maria Rita.
A condição respiratória dela era muito ruim. Ela acordava muito cedo e ia se recolher muito tarde. O corpo dela não descansava direito dormindo numa cadeira e tendo um trabalho tão extenuante
A promessa foi cessada a contragosto de Dulce. Na cadeira, que ficava ao lado da cama sempre vazia, o tempo de sono não passava de quatro horas diárias. “Em nenhuma noite, ela se arrependeu ou quis deitar na cama. “Ela dizia que, embora convencida pelo médico Alberto Serravalle a desistir da promessa para conseguir viver mais e ajudar os pobres, ficou muito triste de decepcionar Deus”, relembra Irmã Olívia, freira que conviveu com Dulce de 1976 até 1992 no convento localizado no Hospital Santo Antônio.
Ana Maria se recorda que a alimentação de Dulce também era precária, o que agravou sua situação de saúde no período em que dormiu na cadeira. “Dona Iracy Lordelo [voluntária mais antiga das Osid e fiel escudeira de Dulce] fazia umas torradas para ela no café da manhã. Eram tão fininhas que pareciam umas hóstias. Ela comia isso de manhã com café e, às vezes, passava o dia sem comer mais nada só trabalhando no hospital. Quando almoçava, ela comia em um pires. Dulcinha brigava, mas ela enrolava e não comia”, recorda-se a caçula dos Lopes Pontes.
A relação entre Dulcinha e Irmã Dulce era muito forte. No início da década de 1950 Dulcinha casou-se com seu primo Augusto Lopes Pontes, que tinha o nome do seu pai. Com ele, foi morar no Rio de Janeiro onde teve as três gestações. Ficou viúva em 1976, mesmo ano em que perdeu o pai mas sempre vinha para Salvador para ajudar a irmã freira.
Quando o Anjo Bom adoeceu, Dona Dulcinha foi chamada para substituí-la. Com a morte de Irmã Dulce, Dulcinha ao lado da filha, Maria Rita, assumiu a responsabilidade de dar prosseguimento ao legado da freira.
As duas eram confidentes e, por décadas, trocaram inúmeras cartas. “Não tenho palavras para lhe dizer as saudades imensas que estou sentindo de você. Também não sei como agradecer-lhe por todo o bem, por tudo que você fez no meu aniversário, por todos seus sacrifícios e esforços (...) Não tenho palavras para exprimir minha sincera gratidão!”, escreveu a freira baiana Irmã Dulce, em 1º de junho de 1979. A carta foi revelada em reportagem do CORREIO, em 2015. As cartas escritas por Irmã Dulce compuseram o processo de beatificação enviado ao Vaticano e mostraram a sintonia entre as irmãs.
Mesmo casada e morando no Rio de Janeiro, Dulcinha não abria mão de passar temporadas no convento com a irmã freira. Repetiu essa rotina centenas de vezes - sempre de ônibus ou navio.
“Registros da assessoria de Cultura e Memória das Osid contam que Irmã Dulce chegou a parar um navio na Baía de Todos os Santos para que a irmã pudesse embarcar para o Rio de Janeiro depois de uma temporada em Salvador. Ela temia que seu cunhado ficasse bravo caso Dulcinha não chegasse logo em casa. Na ocasião, a freira implorou para que o navio parasse e que a irmã pudesse subir. Como a embarcação já estava em alto-mar, Dulcinha foi içada por uma corda para o navio”, explica Osvaldo Gouveia, assessor de memória das Osid.
Maria Rita conta que quando tinha 21 anos e estava iniciando seus estágios em Jornalismo, no Rio de Janeiro, teve que conviver com o afastamento de dona Dulcinha. “Em 1976, meu pai e meu avô morreram e por conta disso minha mãe resolveu se mudar para Salvador de vez para cuidar de Irmã Dulce. Ela abriu mão do Rio de Janeiro, só ia lá quando eu pedia muito, e passou a viver com Irmã Dulce”, rememorou Maria Rita, ao CORREIO, em 2015, lembrando que a mãe tinha um instinto de cuidado muito grande por Irmã Dulce.
'Somos dois corpos em uma alma só', dizia sempre Irmã Dulce em carta ou pessoalmente para a irmã