Tutor de Irmã Dulce, frei alemão pediu transferência de religiosa da Bahia

Irmã Dulce tinha vergonha da imprensa, mas começou a aparecer para arrecadar dinheiro para os pobres
outubro 7, 2019
Órfã de pai e mãe, Iraildes Ramos teve vida mudada pelas ações de Irmã Dulce
outubro 6, 2019

Primeira santa brasileira, religiosa se contrapôs a interesses da Igreja para criar obras sociais

Por Jorge Gauthier (jorge.souza@redebahia.com.br)

“Faria tudo para que Irmã Dulce fosse transferida da Bahia”. Em sotaque alemão, mas em português claro a declaração do frei Hildebrando Kruthaup (1902- 1986), do alto dos seus 1,80 m, foi dita em 18 de junho de 1961 diante de um grupo de operários. Afinal, quem era ele e por que Irmã Dulce (1914-1992) o incomodava?

Ela estava no auge. Os leitos do recém-inaugurado Albergue Santo Antônio, que funcionava como hospital, não ficavam vazios. A freira de 1,47 m distribuídos em 45 kg ganhava fama de anjo pelas ruas de Salvador. O azul, branco e preto do seu hábito era presságio de caridade.

Junto com frei Hildebrando, 28 anos antes, Dulce havia fundado o Círculo Operário da Bahia (COB), entidade que no auge promoveu assistência social e evangelização para 10 mil associados na Cidade Baixa.

frei Hildebrando Kruthaup peb

Frei alemão Hildebrando Kruthaup foi acusado de ser simpático ao nazismo. Nada foi comprovado
(Foto: Livro Audácia e Fé/Reprodução)

O desabafo do religioso está registrado em ata da ala feminina do COB - documento inédito ao qual o CORREIO teve acesso e que registra todas as ações de Dulce no Círculo entre os anos de 1942 e 1962. Foram conferidos pelo CORREIO 28 livros de atas dos cerca de 50 volumes que atualmente estão guardados na sede das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), no Largo de Roma.

O frei foi tutor e, por muitos anos, confessor de Dulce, que no próximo domingo (13) será nomeada Santa Dulce dos Pobres, em cerimônia no Vaticano. O trabalho no COB foi embrião para o império de caridade construído por Dulce - as obras hoje são o maior complexo de saúde com atendimento 100% gratuito do Brasil, com mais de 3,5 milhões de atendimentos ambulatoriais por ano a usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).

 
 

O início

O alemão chegou em Salvador em 1924. Tornou-se sacerdote cinco anos depois e se dedicou à evangelização de operários. Este movimento dentro da Igreja Católica começa a partir de 15 de maio de 1891 com a carta Rerum Novarum (Das Coisas Novas).

O documento escrito pelo papa Leão 13 traz entre as diretrizes o apoio ao direito dos trabalhadores de formarem sindicatos, defendia a propriedade privada e condenava “a crescente onda do comunismo no mundo”.

Doze anos mais velho, foi frei Hildebrando o primeiro a reconhecer o potencial da jovem estudante normalista, quem a indicou ao convento em Sergipe e que colocou Dulce como seu braço direito dentro do COB. Descrito como “homem de talento raro para empreender, de pensamento metódico e com um temperamento fortíssimo”, ele foi a primeira escola de Dulce no mundo da política e negócios.

Especial Pelos Olhos De Dulce_Uso Exclusivo_Matéria 1_Irmã Dulce no Circulo Operário da Bahia _Fotos de 1933 e 1934 _ _Crédito Osid (4)

Irmã Dulce no Circulo Operário da Bahia, na década de 1930 (Foto: Osid/Divulgação)

Irmã Dulce era uma jovem noviça e não parava de trabalhar. Eram raros os momentos em que, por exemplo, ia para a praia de Monte Serrat, aos domingos, junto com sua irmã Dulce Maria de Souza Brito Lopes Pontes (1915-1991), a Dulcinha.
Acabara de regressar de Salvador após passar um ano no Convento do Carmo, em São Cristóvão (SE), e encontrou a capital baiana sob efeito da grande crise econômica provocada pela quebra da bolsa de Nova Iorque cinco anos antes, que causou efeitos na economia do mundo.

A Península Itapagipana era o então polo industrial da cidade com grandes fábricas instaladas - a exemplo da Fratelli Vita, que produzia cristais e refrigerantes. Os operários viviam em condições insalubres. Dulce queria ajudar.

Especial Pelos Olhos De Dulce_Uso Exclusivo_Matéria 1_Irmã Dulce no Circulo Operário da Bahia _Fotos de 1933 e 1934 _ _Crédito Osid (3)

Irmã Dulce trabalhava diretamente na execução das obras (Foto: Osid/Divulgação)

Pupila aplicada

A pupila aprendeu rápido e passou a usar o conhecimento não só em prol dos operários. “No final dos anos 1950 para 1960, a zanga com Dulce começou a ficar maior dentro do COB. O trabalho assistencial de Dulce foi crescendo e se sobrepondo às atividades do COB”, explica o professor assistente do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Evergton Sales, que é autor da dissertação de mestrado Entre o Religioso e o Político: uma história do Círculo Operário da Bahia (1996).

“Muito da zanga interna de parte da diretoria e também do frei Hildebrando se deu quando ela começou a pegar parte do patrimônio do Círculo para incorporar nas obras assistenciais que desenvolvia”, continua Sales.

Enquanto Dulce se preocupava essencialmente com a assistência e cuidado aos mais pobres, parte da diretoria do COB reclamava de ela ‘usar bens do círculo’ para as obras do Albergue Santo Antônio, que surgiu após a freira invadir o galinheiro do convento, em 1947. Parte do terreno do COB, onde funcionava o Cine-Roma, deu origem ao hospital anos depois. Hoje, inclusive, o local onde funcionava a sede do COB é o santuário de Dulce.

Muito da zanga do frei Hildebrando se deu quando ela começou a pegar parte do patrimônio do Círculo para incorporar nas obras assistenciais que desenvolvia

Evergton Sales, professor

Especial Pelos Olhos De Dulce_Uso Exclusivo_Matéria 1_Irmã Dulce no Circulo Operário da Bahia _Fotos de 1933 e 1934 _ _Crédito Osid (19)

Dulce focava seu trabalho na parte assistencial (Foto: Osid)

Biógrafo de Dulce, o jornalista Graciliano Rocha destaca que o frei culpou Dulce e seu pai, Augusto Lopes Pontes, “de terem deixado o movimento perder força”. Augusto e o frei não tinham uma relação muito amistosa, aponta o autor do livro Irmã Dulce, a Santa dos Pobres (2019/Editora Planeta). Ambos buscavam conduzir Dulce, que não se deixava influenciar por ninguém.

No final dos anos 1950, o COB - que ficou em atividade até os anos 1990 com menor impacto - entra em declínio não só na Bahia. O movimento circulista decai em todo Brasil em função da Segunda Guerra Mundial e do avanço das leis trabalhistas promovidas pelo governo de Getúlio Vargas. Nesse momento, acontecem cisões dentro do COB motivadas também por divergências da diretoria, do frei Hildebrando e do pensamento de Dulce.

Especial Pelos Olhos De Dulce_Uso Exclusivo_Matéria 1_Irmã Dulce no Circulo Operário da Bahia _Fotos de 1933 e 1934 _ _Crédito Osid (16)

Ações do Círculo Operário aconteciam na periferia de Salvador (Foto: Osid/Divulgação)

Treino

Sobrinha de Irmã Dulce e atual superintendente das Osid, Maria Rita Lopes Pontes pontua que o trabalho da tia no COB foi o ‘treino’ para suas obras. “Ela era uma freira e passou a conviver com enormes responsabilidades de gestão como empresária. Com o COB ela deu início ao processo de profissionalização”, explica Maria Rita, destacando que através do COB, o trabalho de Dulce ganhou mais visibilidade com governos e políticos influentes da época.

O movimento operário perdeu força no anos 1960 e houve um enfraquecimento instantâneo do COB. Sales explica que não há registros que indiquem fielmente o motivo do embate de Dulce e o frei pelos pensamentos ligados ao COB, mas destaca que o frei tinha muito mais poder na Igreja da época. Apesar disso, em 1955, o alemão acabou transferido para Recife. Quando voltou, em 1961, externou em reunião do COB o desejo que Dulce fosse transferida da Bahia. Em 1962, foi um dos responsáveis por desvincular a comunidade franciscana - a qual ele representava - do COB.

Especial Pelos Olhos De Dulce_Uso Exclusivo_Matéria 1_Irmã Dulce no Circulo Operário da Bahia _Fotos de 1933 e 1934 _ _Crédito Osid (12)

Mulheres eram maioria nas ações do Círculo Operário (Foto: Osid)

Nesse período, Dulce já estava afastada do dia a dia do movimento circulista pelo surgimento das Obras Sociais Irmã Dulce que começaram a gerenciar o Hospital Santo Antônio.

Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, dom Murilo Krieger reforça que a união de Dulce e o frei foi fundamental para a formação das obras assistenciais da freira. Eles começam a divergir, pontua Dom Murilo, a partir do momento em que Dulce direciona suas energias para os pobres de forma geral e não apenas nos operários.

“Foi providencial a presença do frei Hildebrando na vida de Irmã Dulce. Houve no início do Círculo Operário uma comunhão de pensamentos e preocupações. Em um dado momento, eles começaram a discordar assim como aconteceu com Paulo e Barnabé no antigo testamento. Cada um foi para um canto e abriram novos campos de evangelização”, esclarece Dom Murilo.

Foi providencial a presença do frei Hildebrando na vida de Irmã Dulce. Houve no início do Círculo Operário uma comunhão de pensamentos e preocupações. Em um dado momento, eles começaram a discordar

dom Murilo Krieger, Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil

Durante a Segunda Guerra Mundial, o frei foi alvo de uma campanha antigermânica que chegou a acusá-lo de ser simpatizante nazista. No entanto, nada foi provado.

Santa que era, Dulce não morreu ‘brigada’ com o frei. Anos depois do regresso do religioso para Salvador, eles reavivaram os laços, mas não chegaram a tocar projetos conjuntamente. O ano era 1975 e Dulce vivia a plenitude das suas obras sociais.

Artimanhas para fazer o bem

Dulce tinha uma meta: ajudar aos mais necessitados. Para o COB, ela era uma ‘mãe’. Através do movimento chamado circulista, colocou sua face empreendedora para trabalhar. Virou uma locomotiva de ideias com o intuito de arrecadar fundos para realizar os projetos. Além do pedido diário de esmolas, ela encabeçou o projeto da criação de três cinemas populares - o Cine Roma, o Cine Plataforma e o Cine São Caetano. Coube a ela também a ideia de criar o grupo musical Milionárias do Ritmo - operárias que se apresentavam antes da exibição dos filmes tocando, especialmente, canções de forró dentre eles os clássicos de Luiz Gonzaga.
Especial Pelos Olhos De Dulce_Uso Exclusivo_Matéria 1_Irmã Dulce no Circulo Operário da Bahia _Fotos de 1933 e 1934 _ _Crédito Osid (17)

A música Asa Branca era uma das preferidas de Dulce (Foto: Osid)

Dulce tinha artimanhas para conquistar corações que resistiam em fazer doações. Uma delas era conhecida da cabeleireira Iraildes Ramos de Souza, 71 anos.

Circulismo no mundo

O movimento circulista surgiu na Europa no final do século 17 após o papa Leão 13 escrever a Rerum Novarum (Das Coisas Novas)- uma carta que tinha como objetivo apoiar o direito dos trabalhadores de formarem sindicatos, mas que rejeitava o socialismo ou social democracia.

Circulismo no Brasil

Foi um movimento nascido no seio da Igreja Católica que tinha como preocupação barrar a questão comunista mas também se apresentava como um movimento autônomo dos trabalhadores cristãos.

Fonte: Dissertação de mestrado Entre o Religioso e o Político: uma História do Círculo Operário da Bahia de Evergton Sales(1996)

  • 1932 Primeiro Círculo Operário do Brasil

    O primeiro Círculo Operário do Brasil surgiu em 1932, na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul.
  • 10 de janeiro de 1936 União Operária de São Francisco

    Em 1936, Irmã Dulce funda a União Operária de São Francisco com operários Ramiro S. Mendonça, Nicanor Santana e Jorge Machado, que foi o embrião do movimento circulista no estado.
  • 1937 União vira Círculo Operário da Bahia

    Com a participação do frei alemão Hildebrando, a União vira Círculo Operário da Bahia (COB), em 1937.
ac968f9e-1731-4b0e-a2e2-4af42a11797e

Jornal O Imparcial registrou a criação da União Operária do São Francisco (Foto: Divulgação/Osid)

O projeto Pelos Olhos de Dulce tem o oferecimento do jornal CORREIO e patrocínio do Hapvida.