Primeira santa brasileira, religiosa se contrapôs a interesses da Igreja para criar obras sociais
Por Jorge Gauthier (jorge.souza@redebahia.com.br)
“Faria tudo para que Irmã Dulce fosse transferida da Bahia”. Em sotaque alemão, mas em português claro a declaração do frei Hildebrando Kruthaup (1902- 1986), do alto dos seus 1,80 m, foi dita em 18 de junho de 1961 diante de um grupo de operários. Afinal, quem era ele e por que Irmã Dulce (1914-1992) o incomodava?
Ela estava no auge. Os leitos do recém-inaugurado Albergue Santo Antônio, que funcionava como hospital, não ficavam vazios. A freira de 1,47 m distribuídos em 45 kg ganhava fama de anjo pelas ruas de Salvador. O azul, branco e preto do seu hábito era presságio de caridade.
Junto com frei Hildebrando, 28 anos antes, Dulce havia fundado o Círculo Operário da Bahia (COB), entidade que no auge promoveu assistência social e evangelização para 10 mil associados na Cidade Baixa.
O desabafo do religioso está registrado em ata da ala feminina do COB - documento inédito ao qual o CORREIO teve acesso e que registra todas as ações de Dulce no Círculo entre os anos de 1942 e 1962. Foram conferidos pelo CORREIO 28 livros de atas dos cerca de 50 volumes que atualmente estão guardados na sede das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), no Largo de Roma.
O frei foi tutor e, por muitos anos, confessor de Dulce, que no próximo domingo (13) será nomeada Santa Dulce dos Pobres, em cerimônia no Vaticano. O trabalho no COB foi embrião para o império de caridade construído por Dulce - as obras hoje são o maior complexo de saúde com atendimento 100% gratuito do Brasil, com mais de 3,5 milhões de atendimentos ambulatoriais por ano a usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
O início
O alemão chegou em Salvador em 1924. Tornou-se sacerdote cinco anos depois e se dedicou à evangelização de operários. Este movimento dentro da Igreja Católica começa a partir de 15 de maio de 1891 com a carta Rerum Novarum (Das Coisas Novas).
O documento escrito pelo papa Leão 13 traz entre as diretrizes o apoio ao direito dos trabalhadores de formarem sindicatos, defendia a propriedade privada e condenava “a crescente onda do comunismo no mundo”.
Doze anos mais velho, foi frei Hildebrando o primeiro a reconhecer o potencial da jovem estudante normalista, quem a indicou ao convento em Sergipe e que colocou Dulce como seu braço direito dentro do COB. Descrito como “homem de talento raro para empreender, de pensamento metódico e com um temperamento fortíssimo”, ele foi a primeira escola de Dulce no mundo da política e negócios.
Irmã Dulce era uma jovem noviça e não parava de trabalhar. Eram raros os momentos em que, por exemplo, ia para a praia de Monte Serrat, aos domingos, junto com sua irmã Dulce Maria de Souza Brito Lopes Pontes (1915-1991), a Dulcinha.
Acabara de regressar de Salvador após passar um ano no Convento do Carmo, em São Cristóvão (SE), e encontrou a capital baiana sob efeito da grande crise econômica provocada pela quebra da bolsa de Nova Iorque cinco anos antes, que causou efeitos na economia do mundo.
A Península Itapagipana era o então polo industrial da cidade com grandes fábricas instaladas - a exemplo da Fratelli Vita, que produzia cristais e refrigerantes. Os operários viviam em condições insalubres. Dulce queria ajudar.
Pupila aplicada
A pupila aprendeu rápido e passou a usar o conhecimento não só em prol dos operários. “No final dos anos 1950 para 1960, a zanga com Dulce começou a ficar maior dentro do COB. O trabalho assistencial de Dulce foi crescendo e se sobrepondo às atividades do COB”, explica o professor assistente do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Evergton Sales, que é autor da dissertação de mestrado Entre o Religioso e o Político: uma história do Círculo Operário da Bahia (1996).
“Muito da zanga interna de parte da diretoria e também do frei Hildebrando se deu quando ela começou a pegar parte do patrimônio do Círculo para incorporar nas obras assistenciais que desenvolvia”, continua Sales.
Enquanto Dulce se preocupava essencialmente com a assistência e cuidado aos mais pobres, parte da diretoria do COB reclamava de ela ‘usar bens do círculo’ para as obras do Albergue Santo Antônio, que surgiu após a freira invadir o galinheiro do convento, em 1947. Parte do terreno do COB, onde funcionava o Cine-Roma, deu origem ao hospital anos depois. Hoje, inclusive, o local onde funcionava a sede do COB é o santuário de Dulce.
Muito da zanga do frei Hildebrando se deu quando ela começou a pegar parte do patrimônio do Círculo para incorporar nas obras assistenciais que desenvolvia
Biógrafo de Dulce, o jornalista Graciliano Rocha destaca que o frei culpou Dulce e seu pai, Augusto Lopes Pontes, “de terem deixado o movimento perder força”. Augusto e o frei não tinham uma relação muito amistosa, aponta o autor do livro Irmã Dulce, a Santa dos Pobres (2019/Editora Planeta). Ambos buscavam conduzir Dulce, que não se deixava influenciar por ninguém.
No final dos anos 1950, o COB - que ficou em atividade até os anos 1990 com menor impacto - entra em declínio não só na Bahia. O movimento circulista decai em todo Brasil em função da Segunda Guerra Mundial e do avanço das leis trabalhistas promovidas pelo governo de Getúlio Vargas. Nesse momento, acontecem cisões dentro do COB motivadas também por divergências da diretoria, do frei Hildebrando e do pensamento de Dulce.
Treino
Sobrinha de Irmã Dulce e atual superintendente das Osid, Maria Rita Lopes Pontes pontua que o trabalho da tia no COB foi o ‘treino’ para suas obras. “Ela era uma freira e passou a conviver com enormes responsabilidades de gestão como empresária. Com o COB ela deu início ao processo de profissionalização”, explica Maria Rita, destacando que através do COB, o trabalho de Dulce ganhou mais visibilidade com governos e políticos influentes da época.
O movimento operário perdeu força no anos 1960 e houve um enfraquecimento instantâneo do COB. Sales explica que não há registros que indiquem fielmente o motivo do embate de Dulce e o frei pelos pensamentos ligados ao COB, mas destaca que o frei tinha muito mais poder na Igreja da época. Apesar disso, em 1955, o alemão acabou transferido para Recife. Quando voltou, em 1961, externou em reunião do COB o desejo que Dulce fosse transferida da Bahia. Em 1962, foi um dos responsáveis por desvincular a comunidade franciscana - a qual ele representava - do COB.
Nesse período, Dulce já estava afastada do dia a dia do movimento circulista pelo surgimento das Obras Sociais Irmã Dulce que começaram a gerenciar o Hospital Santo Antônio.
Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, dom Murilo Krieger reforça que a união de Dulce e o frei foi fundamental para a formação das obras assistenciais da freira. Eles começam a divergir, pontua Dom Murilo, a partir do momento em que Dulce direciona suas energias para os pobres de forma geral e não apenas nos operários.
“Foi providencial a presença do frei Hildebrando na vida de Irmã Dulce. Houve no início do Círculo Operário uma comunhão de pensamentos e preocupações. Em um dado momento, eles começaram a discordar assim como aconteceu com Paulo e Barnabé no antigo testamento. Cada um foi para um canto e abriram novos campos de evangelização”, esclarece Dom Murilo.
Foi providencial a presença do frei Hildebrando na vida de Irmã Dulce. Houve no início do Círculo Operário uma comunhão de pensamentos e preocupações. Em um dado momento, eles começaram a discordar
Durante a Segunda Guerra Mundial, o frei foi alvo de uma campanha antigermânica que chegou a acusá-lo de ser simpatizante nazista. No entanto, nada foi provado.
Santa que era, Dulce não morreu ‘brigada’ com o frei. Anos depois do regresso do religioso para Salvador, eles reavivaram os laços, mas não chegaram a tocar projetos conjuntamente. O ano era 1975 e Dulce vivia a plenitude das suas obras sociais.
Artimanhas para fazer o bem
Dulce tinha uma meta: ajudar aos mais necessitados. Para o COB, ela era uma ‘mãe’. Através do movimento chamado circulista, colocou sua face empreendedora para trabalhar. Virou uma locomotiva de ideias com o intuito de arrecadar fundos para realizar os projetos. Além do pedido diário de esmolas, ela encabeçou o projeto da criação de três cinemas populares - o Cine Roma, o Cine Plataforma e o Cine São Caetano. Coube a ela também a ideia de criar o grupo musical Milionárias do Ritmo - operárias que se apresentavam antes da exibição dos filmes tocando, especialmente, canções de forró dentre eles os clássicos de Luiz Gonzaga.
Dulce tinha artimanhas para conquistar corações que resistiam em fazer doações. Uma delas era conhecida da cabeleireira Iraildes Ramos de Souza, 71 anos.
Circulismo no mundo
O movimento circulista surgiu na Europa no final do século 17 após o papa Leão 13 escrever a Rerum Novarum (Das Coisas Novas)- uma carta que tinha como objetivo apoiar o direito dos trabalhadores de formarem sindicatos, mas que rejeitava o socialismo ou social democracia.
Circulismo no Brasil
Foi um movimento nascido no seio da Igreja Católica que tinha como preocupação barrar a questão comunista mas também se apresentava como um movimento autônomo dos trabalhadores cristãos.
Fonte: Dissertação de mestrado Entre o Religioso e o Político: uma História do Círculo Operário da Bahia de Evergton Sales(1996)
1932 Primeiro Círculo Operário do Brasil
O primeiro Círculo Operário do Brasil surgiu em 1932, na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul.10 de janeiro de 1936 União Operária de São Francisco
Em 1936, Irmã Dulce funda a União Operária de São Francisco com operários Ramiro S. Mendonça, Nicanor Santana e Jorge Machado, que foi o embrião do movimento circulista no estado.1937 União vira Círculo Operário da Bahia
Com a participação do frei alemão Hildebrando, a União vira Círculo Operário da Bahia (COB), em 1937.