Adson x Anderson

A partir daqui as duas histórias se encontram

Preso no Pelourinho 16 anos depois de chegar em Salvador, o advogado Adson
volta a ser o traficante Espinha


Cicatriz de Espinha voltou a ser exposta com a prisão de Adson / Anderson

No dia 30 de agosto deste ano, em uma tarde de segunda-feira, eis que Adson voltou a ser Anderson. Ele foi preso próximo ao Restaurante Tropicália, ao lado da Cantina da Lua, no Pelourinho. Descarregava o carro de mantimentos para o estabelecimento, de propriedade dele e da mãe. Policiais vieram do Rio de Janeiro cumprir um pedido de prisão preventiva por tráfico de drogas, associação ao tráfico, latrocínio e porte de armas. A prisão contou com ajuda do Departamento de Repressão e Combate ao Crime Organizado (Draco) da Polícia Civil baiana.


Adson abastecia seu restaurante no momento que foi preso

Anderson foi levado para a sede da Polícia Interestadual (Polinter), no Complexo Policial dos Barris. Ali ficou custodiado até o embarque para o Rio, onde permanece preso na unidade Jonas Lopes de Bangu 4. A delegada Raíssa Celles, da 77ª Delegacia (Icaraí), comandou as investigações junto com o chefe de investigação Rodrigo Dias e os policiais Daniel Viana, Moreno Villaca e Elias Rodrigues. “É importante ressaltar que Anderson apresenta uma extensa folha de antecedentes criminais respondendo pelos crimes de tráfico de drogas, porte de arma e latrocínio”, confirmou Daniel. Em seu desfavor, constavam três mandados de prisão pendentes, um da 2ª Vara Federal Criminal e dois da 1ª Vara Criminal de Madureira. A delegada explicou que, mesmo depois de tanto tempo, os crimes cometidos por Adson não prescreveram. “São crimes graves que demoram para prescrever. Os mandados estavam todos valendo”, afirma Raíssa. “O artigo 157 (roubar e depois matar) prevê penas altíssimas e prescrições com prazos de mais de 20 anos”, confirma o advogado Vivaldo Amaral, especialista em Direito Penal.

As investigações mostraram, diz a delegada, que Adson havia, de fato, abandonado a vida fora da lei que levava no Rio de Janeiro como Anderson. "Nos últimos anos, ele não tinha qualquer vinculação com o crime. O passado dele é bem pesado, mas ele não tem mais nada a ver com o tráfico de drogas". Ainda que tenha se regenerado, a delegada acredita que Adson deve pagar pelo que fez. Até porque, de uma forma ou de outra, ele usou dinheiro ilícito para iniciar a nova trajetória em Salvador. "Ele começou a vida dele de empresário com o dinheiro do tráfico. O dinheiro que deu ‘start’ à vida dele em Salvador é proveniente do crime. Por isso, eu não diria que ele refez a vida. Ele montou uma vida de mentira. Agora ele vai poder pagar pelo que fez e refazer a vida, mostrar que realmente agora é um homem de bem, tranquilo e inteligente, como todos dizem. Ele nasceu de novo, deixou de trabalhar para o tráfico, mas precisa pagar pelo que fez”.

Mas, o que fez a polícia se interessar por esse caso depois de tantos anos? Porque o empenho recente em prender Anderson? A delegada diz que ele sempre esteve na mira da polícia carioca, que sempre teve certeza do paradeiro do fugitivo. "Não houve denúncia ou algo que nos fizesse se empenhar. Na verdade, já havíamos ido em Salvador e não encontramos ele. Sabíamos que ele estava aí. Dessa vez, fizemos um trabalho de inteligência e localizamos".

Perplexidade
O advogado Carlos Martinez, professor de Direito de Adson na Faculdade 2 de Julho, assistiu no Bom Dia Brasil, da TV Globo, o que parecia ser apenas a prisão de um advogado. “Bom, aquilo já me chamou logo a atenção por ser um colega de profissão. E de Salvador: ‘Será que eu conheço?’ Não identifiquei. Menos de uma hora depois recebi diversas mensagens no celular e as pessoas dizendo que ele tinha sido meu aluno. Comecei a me recordar dele”, lembra Martinez. “Como educador e colega, vi aquilo com muita tristeza. Fiquei perplexo e surpreso”.


Américo, colega de faculdade, ficou perplexo: ‘Eu brincava com ele dizendo que ele tinha fugido de algum morro no Rio’

Quando os colegas souberam da prisão de Anderson / Adson, a surpresa foi angustiante. “Eu só lembrava da brincadeira que eu fazia com ele. Eu dizia: ‘Esse cara veio do morro. Esse moleque saiu de lá pra polícia não derrubar ele’. Caramba, velho! A minha brincadeira com ele era essa. Inacreditável”, insistiu Américo, inconformado. “Nunca desconfiamos da conduta dele. Fico muito triste que ele tenha que fazer esse ajuste de contas. Espero que ele continue estudando e que volte aqui para continuar a vida”, diz Edilene.

Voz
A imprensa baiana divulgou amplamente o caso, inclusive o CORREIO. Foi quando iniciamos a busca de respostas sobre como Anderson se transformou em Adson. Primeiro, procuramos a família. Fomos pelo menos cinco vezes ao Restaurante Tropicália, no Pelourinho, onde jamais fomos atendidos por funcionários ou pela esposa de Anderson, que estaria grávida. Em uma das tentativas de dar voz à família, um funcionário apenas admitiu que nunca soube de nada relacionado ao passado criminoso do proprietário do estabelecimento. Por diversas vezes, tentamos falar com a esposa de Anderson, conhecida como Fernanda. Quando ela finalmente nos atendeu, por telefone, disse que teria novidades em breve sobre o marido, mas jamais retornou as ligações. “Essa pergunta eu prefiro deixar no ar”, disse ela, quando questionada se sabia do passado do companheiro. Chegamos a enviar por aplicativo de mensagens 30 perguntas para serem levadas a Anderson na prisão através da família ou advogados. Houve promessa de retorno, mas isso nunca aconteceu. Já com um recém-nascido nos braços, Fernanda foi identificada na última investida de nossa equipe, na porta do restaurante, mas ela se passou por outra pessoa. Os advogados no Rio de Janeiro informaram que não iriam se manifestar sobre o caso.

Cartório
Após diversos contatos com fontes do Departamento de Polícia Técnica (DPT) e Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), descobrimos a origem da certidão de nascimento falsa de Adson. Apesar de se tratar de um documento público, não conseguimos ter acesso a sua cópia. O Cartório de Registro Civil de Nazaré se negou a emiti-lo por duas oportunidades. Na primeira, o funcionário informou que uma desembargadora havia protocolado uma decisão ao cartório para proibir a emissão da certidão. Mas, o TJ-BA, negou que houvesse esse bloqueio.


Cartório em que Adson registrou certidão falsa negou emissão do documento

Na segunda investida, outro funcionário do cartório disse que a oficial do mesmo não havia autorizado a emissão e se comprometia em retornar com explicações à reportagem por telefone, o que jamais aconteceu. Dois dias depois, em 18 de outubro, o TJ-BA publicou no Diário Oficial da Justiça a decisão assinada pelo juiz Gilberto Bahia de Oliveira, da Vara de Registros Públicos, em que ele bloqueia o documento. Na decisão, o juiz informa que o pedido de bloqueio partiu de Christiano Cassetari, Oficial Titular do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais do Subdistrito de Nazaré. “Disse o Sr. Delegatário que o referido registro ocorreu anteriormente à sua gestão(...) Pontuou, ainda, que houve ampla divulgação da notícia de que o referido registro seria falso, visto que o registrado seria, em verdade, Anderson Luiz Moreira da Costa, daí porque o pedido de bloqueio, a fim de que não seja emitida mais nenhuma certidão até a apuração dos fatos nos vários processos que se encontram em trâmite”. Segundo o juiz, a certidão de Adson trata-se “de um registro tardio, pois consta da certidão de inteiro teor (fl. 02) que o Sr. Adson Moreira de Menezes, munido de Petição Judicial despachada (sic) e, perante as testemunhas declarou que nasceu no dia 07 (sete) de julho de 1971, filho de Maria Moreira Menezes, sendo avós maternos Antonio Moreira Filho e Paulina Joaquina Simplício”.

O registro tardio, continua o juiz, é aquele realizado após o decurso do prazo legal de 15 dias, previsto no artigo 50 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73) e, de acordo com a antiga redação da lei. O registro tardio de maiores de 12 anos depende obrigatoriamente de autorização judicial. Foi o que Anderson conseguiu, não se sabe exatamente como. “De nada adianta toda a cautela exigida e observada para o Registro Tardio pelos Registradores Civis das Pessoas Naturais se não forem tomadas cautelas para evitar o uso por terceiros de certidões de nascimento falsas no momento da obtenção de documentos”, critica o magistrado. Enquanto isso, a Corregedoria Geral do TJ-BA adotou uma investigação preliminar a fim de “apurar os fatos narrados pela imprensa”. O CORREIO procurou Christiano Cassetari, o titular do cartório de Nazaré, para saber quais providências seriam tomadas, mas não o localizou. A pedido de uma supervisora, deixamos o contato no próprio cartório. Não houve retorno. "Acredito que não poderemos fazer muita coisa porque isso aconteceu em outra gestão, quando os cartórios ainda eram públicos", disse a supervisora. Informado da situação, a corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) notificou o TJ-BA para que este adotasse medidas.

Impressões digitais
O Departamento de Polícia Técnica (DPT) nos dá uma pista de como Adson passou esse tempo todo sem ser descoberto (ou pelo menos parte desse tempo). Segundo o órgão, até 2009, não havia um sistema que fosse capaz de comparar automaticamente as impressões digitais das identidades com dados do poder judiciário, por exemplo. Somente nove anos atrás, implantou-se o Sistema Informatizado por Impressões Digitais da Bahia (SIIDA-BA) que faz uso da tecnologia AFIS. Graças a ela, hoje, o Banco de Dados do Instituto de Identificação Pedro Mello é alimentado com dados provenientes de identificações criminais de presos trazidos para o Instituto e também por informações fornecidas pela Polinter, pelo Centro de Documentação e Estatística Policial (Cedep) e pela Justiça.

A OAB abriu um processo ético disciplinar para investigar o fato. É provável, disse a assessoria da OAB, que a diretoria ou o Conselho Seccional tenha instaurado um incidente de inidoneidade moral. Mas tanto o processo disciplinar quanto o incidente correm em sigilo, por força de lei federal. Caberá às pessoas envolvidas nesse processo decidir se Adson perderá a carteira da OAB, mesmo tendo estudado anos a fio e passado no exame da Ordem, mostrando-se apto a advogar. O CORREIO ouviu quatro advogados sobre o fato. Eles preferem não se identificar e divergem. “Ele só se formou advogado porque cometeu um crime. Não estou sequer levando em consideração os crimes pregressos. Me refiro ao crime de falsidade ideológica. Ele não tem o direito de advogar”, disse um advogado criminalista. “Adson passou por todas as etapas que tinha que passar e adquiriu os conhecimentos necessários para exercer sua função. Depois que pagar pelos crimes que cometeu, deveria voltar à vida normal”, opinou outro criminalista. O fato é que todos criticam a OAB no caso. “O sistema é falho! Se um conseguiu fazer isso, devem haver muitos outros. É preciso fazer um recadastramento e estabelecer um filtro mais rígido, com regras mais apuradas para saber quem é quem. Isso é inaceitável”, defendem.

Violência doméstica
Na Bahia, todos os que mantiveram contato com Anderson são unânimes em acreditar que ele se regenerou por completo. Mas, há registros mostrando que seu novo nome não é tão limpo assim. Primeiro porque Adson Moreira de Menezes aparece em três ações no TJ-BA relacionadas a Execução Fiscal. São taxas de licenciamento de estabelecimentos provavelmente com dívidas com o município. Até aí nada demais. O problema é que, com uma busca mais apurada, o sistema do tribunal consegue pescar um processo de violência doméstica. Este talvez seja o único momento que Adson se reconecta com Anderson. Até porque, no Rio, Anderson também respondeu processo por violência doméstica. Em Salvador, em 2010, na 1ª Vara de Violência Doméstica Familiar contra a Mulher, Anderson foi denunciado pelo Ministério Público por suposta prática do crime de Lesão Corporal Qualificada, praticada contra Mônica Young Ae Yu, que teria ocorrido em outubro de 2008, no interior do Motel Céu Azul, no bairro do Barbalho.

Apesar dos argumentos da defesa de que o réu não teria vínculo afetivo, a juíza chegaria à conclusão de que o casal namorava há cerca de um ano e meio quando das agressões. A magistrada Luciana Viana Barreto designaria o dia 13 de outubro de 2011, às 15h, para audiência de instrução e julgamento. Acontece que, por algum motivo, o processo foi finalizado. O CORREIO teve acesso a um endereço que seria de Mônica Yu, no bairro da Saúde, mas, no imóvel indicado, ninguém nos atendeu. O fato é que, no momento em que agredia uma mulher em um quarto de motel, em Salvador, Adson foi Anderson novamente. Por um instante, a persona que ele assumiu por tanto tempo na Bahia, sua máscara, simplesmente caiu. Mas, quem é aquele homem na sua essência? Qual a sua real persona? Anderson ou Adson?