Depois de quase duas horas de conversa, o professor Jairnilson Paim levantou da cadeira onde esteve sentado durante toda a entrevista. Saiu pela porta de seu gabinete, no Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (Ufba) para voltar alguns minutos depois com um livro nas mãos: O que é SUS, publicado por ele em 2009.
Entregou-o à repórter. Era um presente. “É um best-seller”, acrescentou. De fato, as vendas são impressionantes para uma publicação científica: de acordo com a editora Fiocruz, responsável pelo livro, foram mais de 15 mil exemplares e sete reimpressões em mais de dez anos.
O professor Jarnilson não é de falar de si. Não gosta nem de falar na primeira pessoa do singular. Sempre lembra da dificuldade que teve para escrever um memorial acadêmico – um tipo de texto que resume toda a vida acadêmica de alguém.
“Não sei falar muito ‘eu, eu, eu’, na primeira pessoa, não, e no memorial você escreve assim”, explicou, antes de seguir falando sobre ‘o professor’ na terceira pessoa do singular.
Ele prefere falar sobre o SUS. Faz sentido que alguém assim tenha se dedicado a pesquisar sobre o sistema baseado justamente na igualdade e na premissa de que todas as pessoas têm direito à saúde. E esse também é um dos motivos pelos quais tem trabalhado tanto, apesar do confinamento imposto pela pandemia da covid-19.
Jairnilson sabe que esse é um dos momentos em que o SUS mais deve ser debatido. Entre reuniões presenciais substituídas por encontros virtuais, tem destinado horários também para falar sobre saúde pública no enfrentamento ao coronavírus em novos ambientes: das palestras em entidades científicas e da sociedade civil aos seminários com jornalistas, estudantes e mesmo pesquisadores de outras áreas, como o Direito.
“Estamos no mesmo barco, mas, no Titanic, os que tinham primeira classe morriam menos que os demais”, enfatizou, em uma das lives que participou – o seminário ISC em Casa, promovido por pesquisadores do instituto.
O cenário, segundo ele, é de um Brasil que vive crises políticas, econômica, sanitária e social – tudo ao mesmo tempo. Tudo isso agrava a pandemia no país.
“No nosso caso específico, temos um SUS extremamente potente, com uma possibilidade grande de ser criativo nessa situação. Mas, ao mesmo tempo, ele vive, nos últimos 30 anos, com um subfinanciamento crônico, convivendo com um setor privado subregulado e que tem sido objeto de prioridade”, analisou, na ocasião.
Mas não basta debater: a covid-19 e o SUS também viraram um projeto de pesquisa. Submetido a um edital do CNPq e sob a coordenação da professora Isabela Pinto, diretora do ISC, o projeto foi aprovado e deve reunir investigações sobre modelos, estratégias e ações de vigilância e de proteção aos trabalhadores, comparando sistemas de saúde.
“A vigência é de dois anos, ainda que os resultados devam ser publicizados no processo e não apenas no término do projeto”, adiantou o professor Jairnilson.
Mas, no que se refere a ele mesmo, os dados – a exemplo do próprio número de cópias vendidas por um de seus principais livros – falam por si. Aos 71 anos, aposentado desde janeiro de 2019, ele é um dos pesquisadores com produtividade 1A na Ufba, onde cursou todos os seus estudos. Da graduação em Medicina, iniciada em 1967, passando pelo doutorado em Saúde Coletiva, concluído em 2007, até chegar ao ponto mais alto da carreira científica no CNPq, toda sua trajetória esteve ligada à Ufba. Prata da casa, diriam alguns.
Nas comunidades acadêmicas, é comum haver movimentos para evitar a chamada endogenia – o nome, emprestado da Biologia, diz respeito à ação de se formar e ficar, o tempo todo, no mesmo grupo, no mesmo lugar. Daí, inclusive, os programas de estímulo à internacionalização das universidades. Mas o professor Jairnilson, de alguma forma, foge à toda regra.
“Tudo que fiz foi na Ufba a partir da Ufba. Eu não fiz nenhum curso no exterior. Não falo isso por soberba; falo para expressar minha gratidão à Ufba. Tudo que eu sou e fiz foi pela Ufba”.
Em sua entonação, muito mais uma constatação do que qualquer outra coisa. Se sua vida tivesse sido alvo de uma investigação científica, no meio do caminho, os autores de estudo certamente se deparariam com os seguintes números: 163 artigos completos publicados em periódicos, 14 livros publicados, 33 mestres orientados (inclusive o ex-reitor da instituição Naomar de Almeida Filho) e 15 doutores formados.
O professor entende que, para quem está distante da vida na universidade, esses números representam outro universo – ou podem nem representar nada. Acredita que muita gente não conhece o trabalho que é feito por pesquisadores. Alguns até usufruem do que é produzido pelos estudos, mas não sabem que aquilo ali começou com cientistas.
Por isso, em junho do ano passado, foi um dos responsáveis por uma aula pública na reitoria da Ufba. Ele e outros colegas tiveram a iniciativa de criar a aula, que teve como tema ‘A universidade e o direito à saúde’. Queriam defender a instituição e, ainda, mostrar à sociedade o que, de fato, se produz ali. O momento era crítico: em maio, o Ministério da Educação (MEC) tinha anunciado o bloqueio de mais de R$ 55 milhões do orçamento de custeio da Ufba – ou seja, mais de 30% da verba destinada a despesas como água, luz, limpeza e segurança.
“Tem uma palavra em inglês que é ‘accountability’ (prestação de contas). Significa que você tem uma responsabilização pelo que está fazendo. Ao mesmo tempo que você dedicou sua vida à pesquisa, também é importante divulgar o que estamos fazendo”, disse.
O exemplo para compreender como o trabalho dos pesquisadores chega à população não poderia ser mais claro, em seu caso. Em seu perfil na Plataforma Lattes, o professor Jairnilson resume seus interesses de pesquisa em política de saúde, planejamento em saúde, reforma sanitária brasileira e SUS.
O SUS, sobre o qual tanto se debruçou, só existe graças a professores como ele. O sistema único que oferece desde vacinas e o programa de Saúde da Família até tratamentos contra o câncer não veio do estado. Não começou por uma iniciativa de governo, nem por projetos de partidos políticos.
“A universidade fundamentou o direito à saúde pelos estudos, pela revisão da experiência prévia em outros países, pela discussão que os alunos faziam com professores nas semanas comunitárias de saúde, pelo fato de os professores e estudantes irem a comunidades na Zona Leste de São Paulo; em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro; em Plataforma e no Nordeste de Amaralina, em Salvador”.
Agora, diante da pandemia, o sistema tem sido colocado à prova mais uma vez. Uma das perspectivas de estudo do projeto elaborado sobre covid-19 é justamente tentar identificar quantas vidas foram salvas por sistemas universais de saúde, como o SUS, e sistemas privados, chamados por ele de pró-mercado.
“Apesar de o SUS ter sido reduzido e desestruturado nos últimos cinco anos, diferentes setores da sociedade e do estado reconhecem a sua efetiva contribuição para o enfrentamento da pandemia no Brasil. Já o sistema de saúde norte-americano, segmento majoritariamente privado, acumula até o momento mais de 113 mil mortes”, disse, referindo-se aos números na ocasião em que falou com a reportagem, na segunda semana do mês de junho. Hoje, as mortes por covid-19 nos Estados Unidos já passam de 126 mil.
No segundo ano do curso de Medicina, no fim da década de 1960, o então estudante Jairnilson participava de seu primeiro grupo de estudos. Ainda não era na universidade; o grupo era vinculado ao Hospital Aristides Maltez. Na Ufba, a pesquisa veio lá pelo quinto ano da graduação, quando foi convidado a participar de uma pesquisa sobre Doença de Chagas.
“Em um verão baiano, enquanto todo mundo estava indo para praia, eu estava fazendo pesquisa com camundongos, ratinhos e as culturas de Trypanosoma cruzi (o agente etiológico da Doença de Chagas)”, lembrou, aos risos.
Nessa época, a Ufba já contava com um departamento de Medicina Preventiva. Por ali, continuou se aproximando das pesquisas. Tornou-se monitor e, quase todo fim de semana, viajava para a zona rural de cidades como Sapeaçu e Cruz das Almas. Lá, faziam exames com as fezes das crianças para a pesquisa de campo. Depois, participou de um projeto em um centro de saúde no Nordeste de Amaralina.
Foi na monitoria que percebeu que queria ser professor universitário. Era algo que, até então, nunca tinha sido cogitado. Daí, emendou a graduação no mestrado. Ainda no sexto ano da faculdade, sabia que faria mestrado em Medicina e Saúde. Foi ali que teve o primeiro contato com um tema que viria a acompanhá-lo durante toda a vida: os indicadores de saúde no Brasil.
“Nós vivíamos, na época, numa ditadura, em que essas relações entre saúde e sociedade não era bem discutidas. Nós vivíamos um paradoxo: era um momento em que o PIB crescia 10% ao ano, em média, e as condições de saúde da população estavam piorando”.
Em 1975, ano que defendeu a dissertação, se tornou professor – passou em uma seleção pública para ser professor auxiliar. Naquele mesmo ano, abriu um concurso para professor assistente, em que os candidatos precisariam ter uma tese, que equivaleria à tese de doutorado hoje. Assim, naquele mesmo ano, o professor Jairnilson defendeu uma dissertação e escreveu uma tese. Passou por cada degrau da carreira acadêmica até alcançar o mais alto – o de professor titular – em 2000.
A relação com o CNPq veio de forma concomitante. Desde 1978, é bolsista do órgão. Se tornou 1A, pela primeira vez, em algum momento entre 1980 e 1990. Não sabe ao certo. Só que a produtividade é constantemente avaliada. Em algum ano, passou a ser 1B e depois, há uns cinco ou seis, voltou a ser 1A.
“Você poderia imaginar ‘ah, ficou mais burrinho’, mas não é bem assim. É que se tiver outros tantos disputando vagas, você termina, às vezes, deslocando algum para 1B. Se eu publiquei 10 trabalhos e alguém chegou e publicou 30, pode ser que ele pegue minha vaga, porque é uma situação muito competitiva”.
De 2013 até o ano passado, tocou um de seus maiores projetos. Venceu um edital do CNPq com o Ministério da Saúde para criar uma rede de pesquisadores em política de saúde com uma ferramenta chamada Observatório de Análise de Políticas e Saúde e um centro de Documentação Virtual alimentado pelas próprias pesquisas.
Esse projeto tinha 12 eixos de pesquisa, além de reunir profissionais da Bahia, e de instituições como a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal do Ceará (UFC). Juntos, estudaram temas como a judicialização da saúde, o próprio SUS, a saúde na infância e a relação da mídia com a saúde. No início do ano passado, apresentaram o relatório.
“Uma das coisas que mais chamou atenção foi ver um país em que a saúde sempre foi subfinanciada enfrentar, a partir de 2015 e 2016, um conjunto de políticas de austeridade. A política de austeridade é um remédio para a crise, mas o remédio pode ser pior do que a doença”, ponderou.
O alerta vem acompanhado de uma lista. Cita exemplos concretos que documentaram de lá para cá: o crescimento da mortalidade infantil, o reaparecimento do sarampo, ameaças ao avanço do controle do HIV/AIDS.
Para os alunos, tem uma orientação frequente: o pesquisador não deve negar o senso comum, mas superar. Não basta ler um artigo. Tem que olhar a metodologia para ver se é compatível com o objetivo e as conclusões. Se não for, os resultados, por consequência, serão questionáveis.
“A atenção básica diminuiu as internações hospitalares. Antes, a maioria das hospitalizações era por diarreia e, depois do SUS, praticamente ninguém com diarreia se hospitaliza. Ou seja, é porque está resolvendo na atenção básica”, dizia.
A Ufba tinha anunciado funcionamento parcial no início do segundo semestre de 2019; a medida foi justamente para reduzir os gastos após os cortes de recursos repassados pelo MEC. Muitos professores aproveitaram o período para tirar férias, inclusive porque o acesso à universidade estava restrito. Mas não o professor Jairnilson.
“Eu já estava de férias”, riu, referindo-se à aposentadoria. Em seguida, explicou: mesmo com ele aposentado, o grupo de pesquisa continuava trabalhando, com reuniões transferidas para o turno da manhã. Antes da entrevista, marcada para 10h, tinha feito duas sessões de orientações.
Nas aulas, tenta fazer relações com a arte. Durante toda a conversa com o CORREIO, fez citações e analogias. Citou Karl Marx duas vezes; numa delas, a célebre frase de que ‘se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária’. Em outro momento, lembra a Estação Primeira de Mangueira.
“Infelizmente, só vi o desfile pela televisão. A Mangueira é uma favela, um morro, que produziu coisas incríveis. Cartola era da Mangueira. Mas eu quero chegar em Paulinho da Viola”, explicou, retornando ao assunto inicial: como, nas aulas, citava a música de Paulinho da Viola para a Mangueira para mostrar a relação entre ciência e a arte.
“A vida não é só isso que se vê. É um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber”, completou, parafraseando Sei Lá, Mangueira, música de Paulinho da Viola e Hermíno Bello de Carvalho. Ou seja, continua, existem outras formas de entender a vida. William Shakepeare fez isso, Nelson Rodrigues também.
Para o professor Jairnilson Paim, a sociedade tem obrigação de fazer ciência, mas não deve se deslumbrar com ela.
“A gente tem que entender que tem outras formas de saber que também são válidas para entender a vida, a realidade, o mundo”, enumerou.
É por isso que não lê só o que é produzido na sua área. Gosta de literatura, política, filosofia. É apaixonado por biografias. Na ocasião da entrevista, citou a leitura de Sobre Lutas e Lágrimas: Uma Biografia de 2018, lançado no ano passado pelo jornalista Mário Magalhães.
Diz que demora de aprender coisas novas. Não tem e não usa celular. “Quem lhe disse isso, menina?”, perguntou, entre uma gargalhada e a explicação para evitar o aparelho. Além de se considerar ‘jurássico’, acha o celular muito invasivo.
Escuta João Gilberto e, antes da pandemia, só não ia mais ao cinema porque os horários não lhe são muito atraentes. Ama a praia, especialmente o Porto da Barra e Guarajuba, em Camaçari. Também antes de ficar confinado, saía todos os dias para caminhar pelo Centro da cidade. Caminhando, explica, costuma ter ideias para projetos de pesquisa. De uma ‘andada’, no mínimo, vem a inspiração para um parágrafo ou um artigo.
Pai de dois filhos (uma publicitária que fez doutorado em Saúde Coletiva e hoje é professora do ISC; e um advogado que integra o Conselho Estadual de Saúde), tem dois netos: um de 15 anos, outro de cinco. O mais velho diz que vai cursar Biologia; o mais novo ainda “está muito pirralhinho”.
Se alguém, em algum momento, tentou desestimulá-lo na pesquisa, não funcionou. Vez ou outra, escuta uma brincadeira de algum amigo: os colegas médicos estão bem, financeiramente, e têm até fazendas; ele, por outro lado, ‘tem muito lattes’.
“Eu nunca tive muito ânimo para ser rico, para ganhar dinheiro. Meus interesses são outros. Eu defendo o público. Fui, a vida toda, um servidor público. Na verdade, eu sou um servidor do público. Mesmo que o estado me pague, meu compromisso é com a população. Isso que me deu satisfação na vida”, justificou o professor Jairnilson, explicando, de forma indireta, o motivo de não gostar de falar na primeira pessoa do singular.