Edgar Marcelino de Carvalho Filho acabara de se tornar especialista em reumatologia e imunologia. Tinha chegado ao fim de uma pós-graduação na Universidade da Virginia, nos Estados Unidos, quando recebeu um convite de um de seus mentores no curso.
“Estou sendo convidado para ser o chefe do setor de reumatologia e imunologia na Universidade do Sul da Califórnia. Gostaria de levar dois fellows daqui. Um deles é você”, disse o mestre, naquele ano de 1979. Quando o hoje professor Edgar conta o episódio, mantém o termo em inglês que se refere aos pesquisadores.
Na época, já tinha feito mestrado em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Concluíra o curso em 1977, mesmo ano em que aportou nos Estados Unidos. Talvez por isso nem tenha pensado muito sobre a resposta.
“Eu disse: minha decisão já está tomada. Quero voltar para a Bahia, para a Ufba”, lembra, em entrevista ao CORREIO.
Hoje, ele é um dos pesquisadores com produtividade 1A pelo CNPq na Ufba. Ou seja, ele está no nível mais alto da pesquisa científica no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Quando decidiu retornar, porém, esse não era sequer um cenário que costumasse imaginar. “Mas voltar sempre foi o meu pensamento”, diz ele, hoje com 70 anos.
Na verdade, o professor Edgar queria mais do que voltar à Ufba. Tinha planos maiores. Queria criar um setor de imunologia que funcionasse dentro do Hospital das Clínicas – como é comumente chamado o Hospital Universitário Professor Edgar Santos (Hupes). Acreditava que era o lugar mais apropriado para isso.
“Não existia imunologia na Bahia e esse sempre foi o meu desejo. Também sempre fui ligado a doenças infecciosas, porque as doenças tropicais eram endêmicas aqui na Bahia, mas não se fazia imunologia aqui”, explica.
Foi assim que chegou à Universidade da Virgínia. Queria trazer uma nova área de estudo e atendimento para o estado natal. De fato, era uma área nova. Mesmo em países desenvolvidos, ainda não eram comuns cursos específicos sobre o sistema de defesa do organismo. Muitos, como o que ele cursou, eram especializações em conjunto com a reumatologia.
De lá para cá, a imunologia e os estudos sobre imunidade se desenvolveram tanto que permitiram que o professor Edgar vivesse uma situação diferente da maioria dos pesquisadores, diante da pandemia da covid-19. Ele foi diagnosticado com a doença em 24 de março, quando a Bahia não tinha sequer óbitos registrados e a maioria dos casos era importado.
As pesquisas sobre imunidade ao novo coronavírus ainda não são totalmente conclusivas, mas alguns estudos indicam que ela pode existir. A maior incógnita é de quanto tempo essa imunidade pode durar. No caso dele, depois de 12 dias de sintomas leves, estava completamente recuperado.
“Não precisei ir para o hospital e praticamente não tive manifestações respiratórias. Mas senti muito cansaço, dor, perda de apetite e do olfato”, lembra. Isso, explica ele, fez com que se sentisse seguro para continuar trabalhando após o período de isolamento, tanto com os atendimentos, quanto com a pesquisa.
Ainda que não trabalhe diretamente com a covid-19, assim como tantos outros médicos e profissionais de saúde que adoeceram e voltaram a trabalhar, ele retornou ao campo de batalha. “Não parei. Continuo trabalhando igual”, garante.
Trazer a imunologia para a Bahia não era uma tarefa fácil. Edgar queria desenvolver o projeto na Ufba, mas não tinha nenhum vínculo empregatício com a universidade. A sorte, porém, foi que teve um apoio importante: o professor Heonir Rocha, que tinha sido seu orientador no mestrado. Rocha, inclusive, se tornaria reitor da universidade anos depois, entre 1998 e 2002.
O ex-orientador abriu portas, até no sentido literal. Ofereceu o próprio laboratório para que Edgar começasse a desenvolver as pesquisas. Conseguiu, ainda, uma sala para que o laboratório de imunologia começasse a ser implantado. O espaço não devia ter mais do que 20 m², no quinto andar do hospital.
“Naquela ocasião, minhas pesquisas eram voltadas para estudar população de linfócitos e isso era feito através de um microscópio de imunofluorescência que eu não tinha”, diz o professor Edgar.
O setor da patologia, porém, tinha o equipamento. Assim, se acostumou a descer escadas constantemente: preparava o material no 5º andar; descia para analisá-lo no terceiro subsolo em seguida. Quando fazia avaliações de proliferação linfocitária, outra peregrinação: o único equipamento capaz disso, em todo o estado, ficava na Maternidade Climério de Oliveira, também da Ufba.
A distância entre as duas unidades de saúde é de pouco mais de cinco quilômetros – enquanto o Hupes fica no Canela, a maternidade está localizada em Nazaré.
O laboratório de imunologia só recebeu os próprios equipamentos em 1980. Na ocasião, já professor da universidade, Edgar foi convidado por um professor da Cornell University a participar de um grande projeto de pesquisa apoiado pelo National Institute of Health. Desse projeto, vieram os recursos.
Mas foi só dez anos mais tarde que o serviço se organizou como sonhava. Na época, um programa da Organização Mundial da Saúde, do governo federal e do governo da Bahia forneceu os recursos para o Serviço de Imunologia.
“Esse é um serviço grande, que ocupa uma área de cerca de 600 m² no quinto andar do Hospital Universitário, onde temos cinco laboratórios. Isso fez com que vários pesquisadores se agregassem ao serviço e esse trabalho em conjunto fez com que a imunologia na Bahia crescesse nacionalmente e internacionalmente”, orgulha-se.
Desde o início, o professor Edgar tentou desenvolver diferentes pesquisas simultâneas. Atribui essa característica à juventude. Os principais focos foram as leishmanioses – visceral e tegumentar (cutânea). Essa doença é provocada por um parasita que se multiplica justamente no sistema imunológico. Se o diagnóstico for tardio, pode mais facilmente levar à morte.
Basicamente, queria entender como o corpo humano se defende dos agentes infecciosos e parasitários ao mesmo tempo em que investigava se esses mesmos agentes provocavam doenças nas pessoas. Um dos pontos norteadores da pesquisa, ao longo desses anos, foi o fato de que a resposta do hospedeiro tem relação direta com o desenvolvimento da doença.
Aos poucos, chegaram a conclusões como a de que alguns infectados pela leishmaniose não podem ser identificados como doentes. Pelo contrário: são protegidos da doença. “Esse é um dado importante porque esses indivíduos nos ensinam como podemos nos defender contra esses agentes infecciosos. Eles contribuem, por exemplo, para o desenvolvimento de vacinas”.
Foi também o grupo do professor Edgar que identificou uma mudança no tratamento da leishmaniose, que é estudado há mais de 60 anos. Eles mostraram que, em pacientes com a leishmaniose mucosa, a associação do tratamento que já é usado, com a pentamidina, com outra droga – a pentoxifilina – aumentava a eficácia, as chances e o tempo de cura. Ainda foram os primeiros a documentar a eficácia de uma droga por via oral na leishmaniose – a miltefosina, que foi liberada pelo Ministério da Saúde em 2018.
No Serviço de Imunologia, funciona, ainda, um ambulatório de HTLV. Descoberto em 1981, o vírus HTLV1 é muito frequente na Bahia. Salvador fica em primeiro lugar, entre as capitais brasileiras com maior índice de infectados. O percentual varia, segundo os estudos, de 1,5% a 3% da população.
Em 2001, duas décadas após a descrição do vírus, o professor Edgar criou o ambulatório. Ao longo dos anos, descreveram várias manifestações clínicas até então desconhecidas do vírus. Sem tratamento, o vírus causa problemas urinários. A pessoa passa a não conseguir controlar a urina.
Uma vez, enquanto atendia no ambulatório, ficou comovido com uma paciente – uma senhora idosa que lhe disse que não conseguia mais usar calcinha. Que não tinha como controlar, quando precisava urinar. Ela sentava apenas na parte de trás do ônibus porque, quando o coletivo abria a porta, ela saía correndo. Precisava urinar.
“Fizemos um trabalho com o serviço de fisioterapia do hospital e temos tratado esses pacientes com eletrofisioterapia. Assim, eles têm melhorado esse quadro associado ao HTLV”, diz.
Por pesquisas assim, foi natural ser financiado pelo CNPq, ainda na década de 1990. Ele não sabe, ao certo, quando se tornou 1A – provavelmente em 1995, antes dos anos 2000. É natural, claro, que daí saiam outras oportunidades. O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Medicina Tropical, que coordena desde 2009 com 25 pesquisadores, é uma delas.
Foi com as pesquisas de medicina tropical, inclusive, que o professor Edgar coordenou a descrição e a caracterização de um surto de esquistossomose aguda. Esses bichos, diz, em tom leve, são muito inteligentes.
“A resposta imune é uma coisa que a gente luta muito, mas, quando a resposta é exagerada, ela que causa o problema. E esses bichos escapam do mecanismo de defesa e continuam no organismo”, explica.
Os INCTs, como são mais conhecidos, só podem ser coordenados por pesquisadores classificados como 1A ou 1B.
“Eu sempre tive essa atenção voltada para poder melhorar, em alguma coisa, essas doenças que eu estudo. Esse é o foco principal do pesquisador. Ser 1A é uma consequência natural das coisas”.
Edgar sempre quis ser professor. Quando entrou no curso de Medicina da Ufba, em 1968, se aproximou de professores e já acompanhava as atividades científicas que eles desenvolviam. Logo viu que queria ser um deles.
Filho de um clínico geral e de uma professora também dona de escola infantil, tinha crescido em um ambiente em que as duas profissões conversavam – literalmente. O pai também era professor; dava aulas na escola primária da família. Fundada em 1934, a Escola Antônio Calmon funcionou até cinco anos atrás.
Quando regressou à Bahia, vindo da Virginia, um colega, professor da Ufba, perguntou: entraria na medicina privada? Respondeu que não. A criação do serviço de imunologia no estado estava diretamente ligada ao seu objetivo de vida: ser professor da Ufba. “Não vai passar de um Fusca”, ouviu, do colega.
Além da Ufba, também foi professor titular da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública de 1986 a 2016. Mesmo com a agenda apertada, foi chamado a dar aulas duas vezes por semana. Aceitou por um motivo: ampliar o ensino da imunologia.
“Não vamos discutir se o homem interfere no meio ou se o meio interfere no homem. O fato é que minha decisão de fazer Medicina e de gostar de ensinar começou realmente na adolescência”, conta.
De 1980 a 2014, quando se aposentou, nunca deixou de ensinar na graduação. Ministrava as disciplinas de Clínica Médica e Imunologia Clínica – foi na primeira, uma obrigatória, que tornou-se professor titular. De 2002 a 2014, também, foi chefe de uma das enfermarias do Hupes. Lá, era responsável por 16 doentes que ficavam internados, além dos três ambulatórios (dois de imunologia e um de HTLV).
Hoje, só dá aulas na pós-graduação, mas não deixou de atender. Às quartas-feiras, por exemplo, pode sempre ser encontrado no ambulatório de HTLV. A cada quinze dias, passa as quintas e sextas-feiras no posto de saúde de Porto de Pedra, um distrito de Presidente Tancredo Neves, município no Sul da Bahia.
Em 1986, identificaram que a região era endêmica para leishmaniose no estado. De lá para cá, instituíram o espaço como um centro de referência para o diagnóstico e tratamento das leishmanioses.
“O ensino sempre foi minha meta maior e, enquanto eu puder transmitir coisas relevantes para os alunos, vou fazer isso. A pesquisa foi uma consequência. Mas também nunca pensei em parar essa rotina de contato com os pacientes”, garante.
Além disso, duas tardes por semana, atende consultas particulares em seu consultório, em Salvador, e ainda vai diariamente à Fundação Oswaldo Cruz, onde também é pesquisador. Depois de ter se infectado e se curado da covid-19, o professor Edgar continua indo e atendendo presencialmente em todos esses espaços.
Porém, conseguiu notar uma redução no número de pacientes que busca os serviços – seja devido às restrições de transporte público, seja porque muitos têm evitado ir a hospitais. “Mas as atividades continuaram. Sei que não é o que aconteceu com todo mundo, porque eu tive a doença e fiquei imune, e não podia parar pelo fato de lidar com pacientes”.
De fato, não dá para dizer quem influencia – o homem ou o meio. O que se sabe é que, após ter unido a carreira dos pais, o professor Edgar viu dois dos três filhos se tornarem médicos pesquisadores. O mais velho, Lucas Pedreira de Carvalho, também é professor de Imunologia da Ufba e pesquisador nível 2 do CNPq. O mais novo, Augusto, faz pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia, também na área de imunologia. O filho do meio, por sua vez, é publicitário.
A esposa também é médica – pneumologista; o neto de 21 anos estuda Medicina. Mas, pelo visto, não deve seguir a área de imunologia.
“Ele é muito interessado pela parte clínica e acho que a pessoa deve ser assim mesmo”, disse.
Das 7h da manhã até o início da noite, ele está focado nos trabalhos de pesquisa, ensino e no dia a dia ambulatorial. Depois, é como se desligasse a tomada. A vida é outra. Antes do período de confinamento, era o momento de ler, jogar tênis, fazer caminhadas, ir ao teatro.
“A vida de pesquisa não atrapalha, de maneira nenhuma, a vida social”, garante.