A mãe do professor Jailson de Andrade tem aquela que talvez seja a melhor definição do filho. Costuma dizer que ele é formado por três ‘Ps’: é professor, pescador e pesquisador. Aos 90 anos, ela não poderia estar mais certa.
O primeiro ‘P’ é mais óbvio: desde 1976, Jailson é docente do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Em 1999, se tornou titular – ou seja, atingiu o nível mais alto da carreira acadêmica, na progressão de cargos das universidades federais.
O ‘pescador’ vem do fato de ter barco há quase 30 anos. Ao longo desse período, trocou de embarcação algumas vezes. “Navegar é uma coisa que faz parte do meu dia a dia”, revelou ele, que diz ter um amor especial pela praia de Cacha Pregos, na Ilha de Itaparica, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). Desde que foi pela primeira vez, aos 13 anos, não consegue ficar muito tempo longe. O hábito, porém, foi interrompido na quarentena.
E, por fim, é pesquisador à frente de alguns dos principais projetos do estado: ele é um dos pesquisadores com produtividade 1A pelo CNPq na Ufba. Pesquisadores 1A são aqueles que estão no nível mais alto da pesquisa científica no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, definidos entre aqueles que se destacam entre seus pares.
Em março deste ano, após uma atualização do CNPq, sua bolsa passou a ser ligada ao Senai Cimatec, onde também atua. Também colaborador de outras instituições, ocupa o cargo de pró-reitor de Pós-graduação e Pesquisa do Centro Universitário Senai-Cimatec.
Mas foi a partir da Ufba, onde entrou pela primeira vez em 1970, como estudante de graduação em Química, que traçou sua trajetória nos 50 anos seguintes.
“Meu DNA está ligado à Ufba. Na parte de pós-graduação, por exemplo, coordenei a implantação do doutorado em Química e, depois, o de Energia e Ambiente, com colegas”, contou o professor, hoje com 68 anos.
“Quando solicitei a renovação, eles consideraram o endereço formal (do Cimatec), mas não quer dizer que eu esteja fora da Ufba. Tudo continua igual”.
Como pesquisador 1A, é o coordenador de um dos oito Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) da Ufba. Os institutos são ligados ao CNPq e foram criados para apoiar os principais grupos de pesquisa do país. Desde 2008, com o surgimento do primeiro edital, ele conseguiu trazer um INCT para a Ufba. Era um núcleo que reunia pesquisadores da USP, UFRJ, Unicamp, UFRJ, UFRGS, entre outras instituições.
Com tanta experiência e toda essa estrutura, o professor Jailson logo se envolveu com as pesquisas sobre a covid-19. Nos últimos meses, elaborou dois projetos que devem dar respostas importantes à pandemia do coronavírus: um é sobre a presença do vírus em corpos d’água e em esgotos e outro sobre a presença no ar dos ambientes internos (hospitalares) e externos, bem como as possibilidades de contágio em cada um.
O primeiro, inscrito em um edital do CNPq para o tema, já foi aprovado, mas no limite dos recursos. Ou seja, ainda que o órgão tenha autorizado, não selecionou a proposta para receber investimento nesse primeiro momento. “Assim, a ideia é absorver esses estudos nos projetos que temos em andamento”, explica o professor, hoje também confinado, como a maioria dos colegas.
“Já temos trabalhos ligados à parte atmosférica e à parte da água. As perguntas agora são: o que está sendo determinado, que tipo de amostradores podemos fazer, o tamanho do vírus em escala nanométrica”, diz.
O Senai Cimatec foi o responsável por desenvolver as câmeras de desinfecção que foram instaladas em hospitais da rede pública, para profissionais que estão na linha de frente do combate à covid-19. Os túneis, que pulverizam hipoclorito de sódio por 10 segundos nos profissionais, já são utilizados em unidades de referência para coronavírus, como o Hospital Espanhol e o Instituto Couto Maia, ambos em Salvador.
É por isso que, para o professor Jailson, é tão importante saber o que tem no ar. “O que está no ar é o que deposita na roupa. Depois que a pessoa passa pela câmera, isso diminui. Mas a forma de transporte mais eficiente (do vírus) é o ar. Em seguida, vêm os corpos de d’água. Então, se você combina a mobilidade do ar com a dos corpos d’água, dá uma boa visão de contaminação de ambientes internos e externos”.
De casa, mantém o que chamou de “diário do presidiário”. “Hoje é o dia 84. Cada dia, anoto na minha agenda há quanto tempo estou sem sair de casa, sentado na frente do computador”, disse, quando conversou novamente com a reportagem, na segunda semana do mês de junho.
A rotina no computador se intensificou. Além das reuniões de trabalho, é frequentemente convidado para palestras e seminários por videoconferência – ou, como tanto se popularizou na quarentena, as ‘lives’. Às vezes, são tantos convites para um mesmo dia que precisa recusar. Mas as demandas virtuais têm tido seu lado bom.
“Antes, reunir o comitê gestor do nosso INCT custava entre R$ 15 mil e R$ 20 mil, porque tenho pessoas no Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro. Com custos de passagem, eu já ficava triste. Só isso era um valor imenso. Nesse pandemônio agora, já fizemos duas reuniões com custo zero e está todo mundo aprendendo”, conta.
Só no INCT, são mais de 50 envolvidos. Para o professor Jailson, a pandemia da covid-19 trouxe a ciência de volta para o foco. “Mostrou que a ciência está na base de tudo. Você não consegue mover o mundo fora da base da ciência. É ela quem guia. Um país pode até não estar na ponta daquela questão, mas a resposta tem que vir da ciência”, defende.
O professor Jailson não é casado, nem teve filhos. Durante toda a vida, dedicou-se à ciência. “Para mim, a ciência é uma outra família extremamente ciumenta”, divertia-se. Talvez o caminho tivesse sido outro se, ao entrar na graduação, não tivesse tido contato com professores que foram tão importantes para que seguisse na academia.
Cheio de orgulho, cita dois: o professor Raphael de Menezes Silva Selling, um dos primeiros a desbravar a Química Inorgânica na Ufba, e o professor Antônio Celso Spinola Costa, da Química Analítica. De alguma forma, foi como se os dois apresentassem, ao estudante Jailson, um mundo novo. Assim, enquanto muitos colegas foram para o setor empresarial – o Polo Petroquímico de Camaçari era um dos que mais atraía recém-formados –, Jailson ia no sentido oposto.
Assim que terminou a graduação, emendou o mestrado. Naquela mesma época, começou a dar aulas no curso de Química. Foi justamente quando o professor Raphael se aposentou e Jailson assumiu a disciplina que ele dava, no Departamento de Química Geral e Inorgânica.
“Daí começa meu interesse pela ciência. E é o que eu sempre quis na vida: ser professor, fazer pesquisa científica”, afirma ele, que começou a ser bolsista de produtividade do CNPq entre 1988 e 1989.
Passou por todos os degraus até chegar à classificação de 1A, em 1999.
Entre o fim dos anos 1980 e o início dos 1990, a pesquisa em Química no Brasil cresceu. Ali, o país lançou um programa de incentivo à ciência em parceria com o Banco Mundial, que tinha, como um dos principais aspectos, a meta de aproximar a academia do mercado. Na Bahia, com o Polo Petroquímico, esse ambiente ficou ainda mais favorável.
Foi quando o doutorado em Química da Ufba foi criado, em 1992, com direito a financiamentos diversificados e pesquisas com foco no setor empresarial. Enquanto isso, o professor Jailson desenvolvia o próprio trabalho, tornando-se cada vez mais interdisciplinar.
Se, na Química, hoje, as divisões parecem ser bem definidas, ele prefere não escolher. Na Ufba, foi professor titular do Departamento de Química Geral e Inorgânica. No CNPq, sua área é a Química Analítica. Há quem aposte que seu trabalho, na verdade, é em Química Ambiental, e muita gente diz que ele faz a ligação entre Energia e Meio Ambiente.
“Eu sou professor de Química e gosto de olhar os fenômenos com a visão mais larga possível. Essas classificações são para facilitar, colocar o indivíduo em uma caixinha, mas o principal é ter uma visão ampla”, rebate o professor, também presidente da Academia de Ciências da Bahia e vice-presidente regional para o Nordeste da Academia Brasileira de Ciências.
À frente da ACB, ele deve promover, mais uma vez, o 2 de Julho da Ciência. A data, que costuma ser celebrada em manifestações juntamente aos festejos públicos pelo Dia da Independência da Bahia. Dessa vez, haverá uma marcha virtual em defesa da ciência.
Em 2008, em uma reunião com a Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia (Fapesb), percebeu algo importante: a Baía de Todos os Santos poderia ser um bom foco de pesquisa. A Fapesb se interessou pelo programa e o professor passou um ano inteiro construindo o projeto, mapeando as instituições baianas que queriam estudar a Baía. Podia ser de qualquer área, desde que a Baía de Todos os Santos fosse o foco do estudo.
Resultado: o professor Jailson se viu à frente de um enorme projeto, que reunia Ciências Humanas, Exatas e Artes. Além do tamanho, a própria duração é um diferencial, em comparação a outros programas: o projeto total deve levar 30 anos, dividido em seis ‘ondas’ de cinco anos.
“Fazer as pessoas falarem a mesma língua levou um tempo, mas decolamos. A dúvida era: vocês terão fôlego?”, lembrou.
Pois, as duas primeiras ondas já foram concluídas. Entre os produtos da pesquisa, há livros sobre história colonial, estudos sobre baías, ações poéticas, atlas da culinária e relatórios sobre aspectos humanos, oceanográficos e em segurança, meio ambiente e saúde. Até uma coletânea com textos escritos por professoras da rede municipal de Vera Cruz, com histórias sobre a Ilha de Itaparica, foi lançada.
Atualmente, estão na terceira fase, cujos recursos vieram do próprio CNPq, após praticamente todo o ano de 2018 de negociações. Assim, até 2023, há recursos garantidos.
Para a quarta fase, a Fapesb, que andava com dificuldades financeiras, deve conseguir apoiar mais cinco anos. “Mesmo com toda tempestade, a Baía de Todos os Santos continua navegando. E é importante porque eu diria que o grande mote desse projeto é que ele junta ciência da melhor qualidade de todas as áreas com trabalho junto às escolas. É totalmente integrado”, reflete.
No final do ano passado, veio até um projeto sobre a Antártida. Pela primeira vez, um grupo do Nordeste – capitaneado pelo professor Jailson e pelo professor Moacyr Cunha Filho da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – conseguiu aprovar estudos sobre o continente mais frio do planeta.
Mais do que isso: em outubro, o grupo embarcou dez pesquisadores que fizeram estudos na região de convergência das Ilhas Malvinas com o Oceano Antártico.
“Projetos como esse colocam a Bahia em posições de destaque. Não estamos de carona. Estamos pautando”, reforçou.
No final de 2019, ainda encontrou tempo para se dedicar às investigações e discussões sobre o óleo que atingiu o litoral do Nordeste e alguns estados do Sudeste. Uma das frentes do INCT coordenado por ele é especificamente ambiente, além de energia. O instituto é vinculado ao Centro Interdisciplinar de Energia e Ambiente (Cienam), também sob a coordenação dele.
Em fevereiro de 2020, um artigo assinado pelo professor Jailson e outros cinco pesquisadores, sobre a contaminação de organismos marinhos na Baía de Todos os Santos foi publicado na revista Nature.
“É um estudo completamente novo que foi feito pouco antes do derramamento do óleo. Agora, ele é considerado um marco, porque temos uma referência para tudo que vier depois do derramamento”.
Nos últimos meses, as experimentações ficaram comprometidas devido ao fechamento do laboratório. No entanto, as análises sobre o que já havia sido coletado continuam. Uma das próximas edições da revista da ACB deve ser dedicada a projetos sobre o óleo.
Para dar conta de tantos projetos, acorda entre 4h20 e 4h30. Antes da quarentena, às 5h30, saía para caminhar. Antes disso, porém, já leu os principais jornais do país – Estadão, Folha de S. Paulo e O Globo – e os jornais locais. Depois da caminhada, saía para trabalhar. Não voltava para a casa antes das 20h.
“Minha mãe diz: ‘poxa, você não para de trabalhar. Eu digo: ‘minha mãe, eu não trabalho’. Eu me divirto. Eu gosto. Fazer ciência é o que eu gosto”, garantiu.
Na família, não há outros pesquisadores. Diz ter sido o único a fazer voto de pobreza. Entre os estudantes, porém, nem consegue contar quantos influenciou para seguir a carreira científica. Identificá-los é relativamente fácil: nas aulas, enquanto tentava ligar o assunto do dia com situações da vida real, observava os alunos. Em alguns, um aspecto em comum – o tal do ‘brilho’ no olho.
“Esse brilho no olho é fundamental. É uma coisa que é o estar inquieto, de querer saber mais. E eu sempre tive estudantes interessados”, contou.
Mas ele sabe que a carreira acadêmica não é para qualquer um. Ciência é bonita, mas é competitiva. Quem fica parado, diz, fica para trás. Para manter a qualidade, é preciso ter um ritmo cada vez mais intenso.
“O Brasil e a Bahia precisam investir em ciência, tecnologia e educação. Sem educação, não tem ciência. E, se você não faz, você anda para trás, porque outros vão andando por nós”.