Família que se importa com o outro Avô, pai, tios e sobrinhos de Dulce são motivados pela caridade
Por Jorge Gauthier (jorge.souza@redebahia.com.br)
O bolo de laranja tinha raspinhas finas da fruta e calda por cima da massa fofinha. O sorvete de goiaba, feito em casa, levava pedaços de coco ralado. Tudo preparado com muito esmero por Alice da Silva Carneiro para que Irmã Dulce tivesse um lanche da tarde de domingo com algum prazer diante de tanto trabalho à frente do Albergue Santo Antônio, que deu origem anos depois ao Hospital Santo Antônio, no Largo de Roma. Dulce pegava um pires, cortava uma fina fatia do bolo, puxava uma conversa qualquer, dava as costas e seguia andando. Não raro deixava a fatia esquecida, que era aproveitada rapidamente pela freira Emerência com quem dividia o quarto no convento vizinho ao albergue. Ela não conseguia parar nem mesmo para dar atenção à sua família.
Alice era madrasta de Dulce. Casou-se com o pai da freira, o dentista Augusto Lopes Pontes, em novembro de 1924, três anos após a morte da mãe de Irmã Dulce- Dulce Maria. Alice entrou para uma família que tinha o amor ao próximo como princípio fundamental. Esse pilar foi colocado na família dos Lopes Pontes pelas mãos do avô paterno de Irmã Dulce, o santoamarense e também dentista Manoel Lopes Pontes (1845-1899).
“Meu bisavô era uma pessoa bastante benevolente. Minha mãe [Dulcinha] contava que uma das maiores preocupações da minha avó é que no dia de receber salário ele chegasse em casa com algum dinheiro porque qualquer pessoa que ele encontrava na rua decidia ajudar, doando algo. Isso ficou na nossa família. Passou para meu avô e depois veio para minha mãe, minhas tias, como Irmã Dulce, e está em nós até hoje”, recorda Maria Rita Lopes Pontes, 64 anos, sobrinha da freira e atual superintendente das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid).
Passou para meu avô e depois veio para minha mãe, minhas tias, como Irmã Dulce, e está em nós até hoje
Após a morte de Irmã Dulce, Dulcinha e Maria Rita assumiram a gestão das obras. “Dona Dulcinha tinha a mesma caridade no coração que a Irmã. Por muitos anos, eu não podia pagar o colégio da minha filha e Irmã Dulce me ajudava. Ela escrevia cartas pedindo bolsas e descontos. Quando Irmã Dulce morreu, dona Dulcinha fez a mesma coisa. As duas tinham um coração muito bom. Era uma coisa de família mesmo”, conta a auxiliar de enfermagem Marina da Conceição Andrade Silva, que atualmente trabalha nas Osid.
Do primeiro casamento do pai, Irmã Dulce teve cinco irmãos: Augusto (1913-1966), Dulcinha (1915-2006), Aloysio (1918-1999), Geraldo (1919-1981) e Regina (junho de 1921-agosto 1921). Regina morreu poucos meses após sua mãe, Dulce Maria, que faleceu em função de complicações no parto. Do segundo, foram duas irmãs. Terezinha (1925-1938) e Ana Maria (1940), a caçula e a única irmã viva que ainda carrega o sangue de Dulce nas veias.
Irmã Dulce veio ao mundo com o nome Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, na Rua São José de Baixo, 36, no bairro do Barbalho, na freguesia de Santo Antônio Além do Carmo. Nasceu numa terça-feira ensolarada do ano de 1914, dois meses antes do início da Primeira Guerra Mundial. Era carinhosamente chamada por Mariinha por todos da família. “Eu tive a felicidade de nascer em uma família muito católica e piedosa. Minha mãe morreu quando eu tinha seis anos. Fui criada por tias muito piedosas também. Minha tia mandava minha irmã e eu procurar uns moleques na rua que nós morávamos para ensinar o catecismo”, disse a freira em entrevista ao documentário Mãos Carinhosas, produzido pela TV Canção Nova, em 1989.
Uma das tias, a Madaleninha, tem papel fundamental na história de Irmã Dulce na formação de um olhar solidário sobre o próximo. Foi com ela que Dulce fez as primeiras visitas em comunidades carentes de Salvador. Aos 13 anos, Irmã Dulce passou a acolher mendigos e doentes em sua casa, transformando a residência da família – que havia se mudado para a Rua da Independência, 61, no bairro de Nazaré - num centro de acolhimento que ficou conhecido como ‘A Portaria de São Francisco’.
A tia, contudo, deixou de visitar a sobrinha quando ela já era freira e vivia no Convento Santo Antônio, junto ao Albergue Santo Antônio, na sede das Osid.
“Ela passou anos dizendo que não ia ver Irmã Dulce, mas não explicava o motivo. Depois de muito tempo, ela disse que não ia lá porque todas as vezes que chegava Irmã Dulce não dava atenção. Ela dizia que não ia lá para ver Irmã Dulce de costas porque quando chegávamos ela falava conosco e já saía andando para percorrer o hospital. Quem queria continuar a conversa tinha que sair correndo atrás dela”, relembra Marta Maria Lopes Ponte Caldas, 68 anos, que é assistente social e gerontóloga.
Marta é filha de Geraldo, irmão de Dulce que também era dentista. Ela se recorda com perfeição dos momentos que a tia Madaleninha reclamava. “Era impressionante como ela não conseguia ficar muito tempo conosco. Tínhamos realmente que ir correndo pelo convento para falar com ela. Isso durou a vida inteira, mas mudou um pouco quando as freiras deixaram ela sozinha”, diz Marta referindo-se ao período entre 1964 e 1974 quando Dulce sofreu afastamento da Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus.
“Antes desse período, chamado de exclaustração, nós tínhamos restrição para circular lá na área do convento. Quando íamos, as outras freiras ficavam no nosso pé. Brincávamos só numa área do fundo do convento que tinham umas britas. Quando as freiras abandonaram Irmã Dulce, ela deixava a gente entrar até o claustro [área do convento onde ficam os quartos dos religiosos]. Foi uma surpresa ver como era o claustro. Era um quarto normal, mas no nosso imaginário de criança era de outro jeito”, recorda Marta. O carinho da tia freira era pouco convencional: ‘ela apertava a bochecha e dava um puxão de leve no cabelo’.
Ter uma tia freira movia com o imaginário das crianças da família. Marta, por exemplo, conta que sempre achou que Dulce não tinha cabelos. “Eu achava que Irmã Dulce era careca. Quando ela ficou doente já nos anos 1990 que pudemos visitá-la. Eu tomei um susto quando vi que ela tinha cabelos e que havia uma mulher linda embaixo daquele hábito. A roupa de freira escondeu a beleza dela. A parte do hábito que ficava no rosto mesmo ela vivia deixando mais coberto. Uma vez meu pai disse que ela começou a esconder mais o rosto com medo depois que um homem na rua falou que ela era uma freira bonita”, comenta Marta.
Amor de pai
Por cinco anos o pai de Irmã Dulce tentou convencê-la a não ir para o convento. Queria que a jovem de olhos amendoados se casasse. “Ela era uma moça muito bonita. Quando ela decidiu ser freira, aos 13 anos, meu pai pediu que ela esperasse até completar 18 anos e se formasse professora. Ele nos dizia que fez isso na tentativa de que ela desistisse da ideia. Ele chegou a levar ela em vários eventos da sociedade na Pupileira, em Nazaré, mas ela não se importava. Só tinha cabeça nos doentes e pobres. Ele ficava preocupado, mas sabia que ela tinha a missão de continuar o que nosso avô plantou no passado”, diz Ana Maria, irmã caçula de Dulce.
Se o avô de Dulce era benevolente na cidade de Santo Amaro, o pai dela dedicou boa parte de sua vida à caridade assim como a filha. Professor emérito da faculdade de Odontologia da Universidade Federal da Bahia, Augusto Lopes Pontes fundou e administrou o Abrigo Filhos do Povo, no bairro da Liberdade. Ele pagava todo custo de funcionamento do espaço. O colégio do abrigo chegou a ter 4 mil alunos. Augusto ainda fez doações milionárias ao Círculo Operário da Bahia, projeto social mantido por Dulce a partir dos anos 1930, e foi seu principal orientador.
Ele chorou muito, mas ele era católico praticante e se conformou. Eu fui estudar, mas minha cabeça estava sempre mais virada pensando nos pobres e nos doentes
“Ele foi um dos grandes conselheiros de Irmã Dulce durante toda sua vida. Quando a congregação se afastou de Dulce, ele a apoiou ainda mais. Ele a apresentou a grandes empresários e comerciantes que eram pacientes dele. Muita gente ajudou Dulce através da influência do meu avô”, conta Maria Rita Lopes Pontes. A devoção de Dulce a Santo Antônio também veio em parte pelo pai. Na casa da família, por exemplo, tinham dois altares dedicados ao santo.