Deus não havia de permitir outra desgraça.

Em 2017, Fabianos, Sinhás Vitórias, Cristinas, Isabels, Zé Antônios, Andrés, Felipas e Renatos seguem acreditando no que Graciliano Ramos escreveu, em 1938, quando publicou Vidas Secas. Deus não permitiria outra desgraça.

Por isso, era hora de agradecer. A trovoada não veio em 2017, mas veio a garoa; veio a chuva de inverno; veio o chuvisco capaz de deixar a grama verde. Onde era terra seca, em dezembro de 2016, havia capim verde em setembro de 2017. Quando o CORREIO esteve em Morrinhos, na zona rural de Feira de Santana, no Centro-Norte do estado, pela primeira vez, tudo era marrom. Até os mandacarus estavam acabando, depois de uma seca que durava cinco anos.

No último dia do mês de setembro, a reportagem voltou ao povoado com pouco mais de 200 habitantes. Encontrou gente que, como Fabiano e Sinhá Vitória, se acostumou com a estiagem. Gente que aprendeu a conviver com ela, mesmo quando a seca era tão devastadora quanto foi a última.

Mas é esse mesmo local que, hoje, está coberto por flores amarelas – as beldroegas. Ainda que a seca persista e castigue - e, em alguns locais, mais arrasadora do que antes -, o solo floresce. Dele, vem a energia, a alegria e, principalmente, a expectativa de uma nova vida.

Diante de tanta tristeza recente, havia motivo para comemorar. Em março, acompanhamos os sertanejos que plantaram no dia de São José esperando colher a partir da época do São João, em junho. Agora, era o dia de levar o São José da Capela de Morrinhos de volta à Fazenda de Osmundo, de onde ele veio, em procissão, no dia 11 de março. Na mesma ocasião, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro fora levada da capela à fazenda.

Agora, era hora de os dois voltarem para casa, novamente em cortejo.

“Hoje está tudo verde. É uma seca verde”, diz o aposentado André Batista, 79 anos. É ele quem organiza a procissão e mobiliza os moradores. André não planta mais há 18 anos, desde que se aposentou. Com varizes e dores nas pernas, não consegue mais andar muito para ‘fazer a roça’. A esposa Amanda, 81, ainda chegou a plantar algum feijão, mas nas proximidades de casa. Semeou seis litros do grão e colheu o equivalente a ‘três quartas’ (uma quarta é uma área de aproximadamente 6 m²).

6meses

e 19 dias foi o tempo que São José ficou na capela de Morrinhos

“Eu não faço mais roça, mas os filhos e os outros fazem. (A chuva que veio) Deu para tirar metade da despesa, então, tem que agradecer a Deus. São José está com seis meses e 19 dias lá, por isso, falei: ‘vamos levar São José e esperar em Deus as trovoadas de outubro e novembro”. Adoentado, seu André teve medo de acontecer algo inesperado com ele ou com a esposa; algo que resultasse em uma promessa quebrada com o santo padroeiro dos trabalhadores e das famílias. Por isso, antes que o destino intervisse, marcou a data da procissão.

Seu André lista gente que conseguiu colher até 20 sacos de 60 quilos de feijão. Um conhecido que mora em Irecê, também no Centro-Norte, chegou a mais de 40 sacos.

Para eles, ainda não é o ideal, mas já é uma ajuda grande.

São José foi levado de volta da Capela de Morrinhos para a Fazenda de Osmundos. Os moradores do povoado queriam agradecer pela chuva (Foto: Vanessa Brunt/CORREIO)

Ajuda divina

A varanda da casa de dona Maria Izabel, 66, antes repleta de vasilhames com água, agora abriga bacias de feijão. Quando encontrou a reportagem, ela catava os grãos. Separava os bons dos que não serviriam para nada.

No ano passado, ela só conseguiu um saco de feijão. Esse ano, plantou três tarefas (na Bahia, cada tarefa equivale a aproximadamente 4,3 mil m²). Voltou com oito sacos com 60 quilos de feijão cada. “Deus também ajuda e o santo ajuda”, acredita a lavradora, que foi uma das que acompanhou o cortejo religioso.

Ela não teve prejuízo com o feijão, mas a chuva que veio ainda não foi capaz de fazer florescer o milho. Ninguém em Morrinhos conseguiu colher milho.

Mas o pior mesmo, para Maria Izabel, é ver o açude do povoado praticamente seco. Era com a água de lá que lavavam roupas, matavam a sede dos animais. A saída para quem tem gado hoje é comprar água. “Aquele açude, desde que fizeram, nunca vi seco. Mas a seca foi muito ruim. Só quando a trovoada vier mesmo (para encher)”.

A filha dela, Izabel Cristina, 29, preferiu nem plantar este ano. Teve medo de perder tudo, como aconteceu em 2016. “Ano passado, a coisa estava feia. O gado morrendo e o povo tendo que comprar capim, ração, água. Agora, tem que esperar a trovoada vir para encher as fontes, porque ainda está muito seco”.

Apesar de jovem, já deixou a vida de lavradora para o filho. O menino, aos seis anos, plantou seis litros de feijão. Conseguiu colher e já aprende como funciona a vida no campo. No ano passado, a primeira vez que tentou, nada prosperou. Dessa vez, o destino não foi tão cruel.

Aquele açude, desde que fizeram, nunca vi seco. Mas a seca foi muito ruim. Só quando a trovoada vier mesmo

Maria Izabel, lavradora de Morrinhos

Não é chuva de enchente

O vaqueiro José Antônio, que alimentava o gado com mandacaru quando conversou com o CORREIO em dezembro, tem sentido na pele a falta de água para os animais. Na fazenda onde trabalha, tem pagado R$ 140 para encher um carro com água e transportar do rio até o local onde ficam bois e vacas.

Mesmo assim, ele agradece a Deus pelo feijão que veio – dois sacos no ano passado contra 15 este ano. “Deu até para dar aos filhos”, brincou.

Mas tem chovido praticamente todos os dias, segundo a esposa dele, a lavradora dona Doralice Félix dos Santos, 66. “Não é chuva de enchente. É uma chuvinha fina, mas os matinhos vão crescendo. Teve uns tempos que a gente olhava e só via terra. Não via água. Agora, graças a Deus, melhorou”.

Ela também acredita que a fé ajuda. “Sempre que o povo faz esse acompanhamento chove. Mas isso para quem tem fé”.

O bom, para eles, é que ninguém perdeu muito do que investiu. O lavrador Renato Ferreira, 53, foi agradecer pelos seis sacos de feijão que colheu. “Choveu pouquinho, mas deu para ganhar também”. A maior parte foi para o próprio consumo da família, mas ainda conseguiu vender uma coisa ou outra. “Melhorou do ano passado para cá. Mas está bom também”, garante.

Não é chuva de enchente. É uma chuvinha fina, mas os matinhos vão crescendo. Teve uns tempos que a gente olhava e só via terra. Não via água. Agora, graças a Deus, melhorou

Doralice Félix, lavradora e moradora de Morrinhos

Tem água nos canos, mas não no rio

Pouco antes do começo a procissão, a aposentada Felipa Alves, 72, lembrava que já passou por estiagens até piores do que a última, quando era jovem. “A gente saía daqui de madrugada com minha mãe para pegar água no Areal. Saía 1h da manhã, com vaso na cabeça, para chegar lá 7h. No meio do caminho, a sede pegava. Foi uma seca horrível”.

A imagem do ano passado, quando todo mundo perdeu quase tudo, ainda assombra. Mas, dessa vez, ao menos, houve feijão. Quem plantou algo conseguiu colher algo – nem que fosse ‘só alguma coisinha’. Agora, ela pondera, pelo menos há água encanada. Se não houvesse, seriam totalmente reféns das fontes – como o açude – que continuam secas.

“Mas estou vendo dizer que o (Rio) São Francisco está secando, que não vai ter mais água. E nós, que moramos aqui dentro, cadê o dinheiro para ir pegar água no fim do mundo?”, indaga, preocupada. Ainda assim, não deixa de agradecer a Deus pelo que veio do céu – ainda que tenha sido pouco.

“O pessoal que plantou teve. Só faltou o milho, mas é assim mesmo. Viva Deus”, agradecia, enquanto esperava na porta da capela.

Estou vendo dizer que o (Rio) São Francisco está secando, que não vai ter mais água. E nós, que moramos aqui dentro, cadê o dinheiro para ir pegar água no fim do mundo?

Felipa Alves, lavradora aposentada e moradora de Morrinhos

O Rio São Francisco não abastece diretamente Feira de Santana, onde fica Morrinhos, mas a preocupação de dona Felipa não é sem fundamentos. Para a Defesa Civil do Estado (Sudec), a região do Vale do São Francisco é o lugar mais afetado pela seca em 2017 - teve os piores índices de chuva. De acordo com dados da Agência Nacional de Águas (ANA), o volume útil do reservatório da Bacia do Rio São Francisco chegou a 8,83% no fim de setembro de 2017 (4.196hm³). Na mesma época de 2017, o armazenamento do reservatório era de 15,11%.

Para completar, a ANA informou que, a partir do dia 9 de outubro, a barragem de Sobradinho vai operar com vazão de 550m³/s, a menor já alcançada. A redução será a segunda somente no mês de outubro, já que, no último dia 2, a vazão já tinha sido reduzida ao limite de 580m³/s.

“Quem mais sofre são as pessoas que estão no entorno do rio, porque os problemas são sentidos com mais intensidade”, afirma o diretor técnico da agência Peixe Vivo, Alberto Simon. A entidade é uma das delegatárias do Comitê da Bacia do São Francisco.

8,83%

é o volume útil da bacia do Rio São Francisco em setembro de 2017

O caso do São Francisco inspira tantos cuidados que, em junho, a ANA publicou uma resolução no Diário Oficial da União instituindo o chamado Dia do Rio – que, na verdade, é uma medida de restrição ao uso das águas da bacia. Desde então, em toda quarta-feira, até o fim de novembro, a água do Velho Chico só poderá ser usada para consumo humano e animal.

Se até o prazo final, as chuvas não voltarem a cair, a resolução pode ser prorrogada. Quem descumprir as medidas pode ficar sujeito à penalidades como multas, embargos, lacres e apreensão de equipamentos. Mas, como o próprio Alberto Simon faz questão de dizer, “não há soluções mágicas”. “Tem que voltar a chover. E temos que aprender a reduzir o nosso consumo, não tem saída”, aponta.

Ele não é tão otimista quanto os moradores de Morrinhos. Pelo contrário: acredita que a água que cair entre 2017 e 2018, mesmo que venha em abundância, não será suficiente para aumentar o volume do São Francisco. “Podemos ter chuvas isoladas que vão amenizar. Mas, hoje, como o rio é muito largo, nem se pode navegar, porque os bancos de areia estão surgindo. O São Francisco está emagrecendo tanto que está mostrando os ossos. Está correndo sangue”, lamenta.

Em 1988, o Velho Chico enfrentou uma estiagem que fez com que muita gente morresse até de sede. Sobreviveu; mas entre 1915 e 1919, passou por outra seca muito forte. Para Simon, contudo, não há dúvidas: nenhuma das duas teve a mesma dimensão do que a atual.

Ao todo, seja com o Rio São Francisco ou não, há pelo menos 34 municípios baianos que estão passando por racionamento de água, entre os 366 que são atendidos pela Embasa. De acordo com o órgão, o regime é ‘preventivo’ e a distribuição de água é feita em dias alternados, nas diferentes áreas de cada cidade.

Estão passando por racionamento as cidades de Andorinha, Bonito, Caldeirão Grande, Candeal, Capela do Alto Alegre, Capim Grosso, Filadélfia, Gavião, Gentio do Ouro, Ibitiara, Ichu, Itiúba, Jaguarari, Mairi, Morro do Chapéu, Nova Fátima, Novo Horizonte, Pé de Serra, Pintadas, Ponto Novo, Queimadas, Quixabeira, Riachão do Jacuípe, Santaluz, São Domingos, São José do Jacuípe, Seabra, Senhor do Bonfim, Serrolândia, Tapiramutá, Valente, Várzea da Roça, Várzea do Poço e Várzea Nova, além das localidades de Umbuzeiro (distrito de Mundo Novo), Altamira (distrito de Conde).

Só para dar uma ideia, em janeiro, somente duas cidades estavam em racionamento: Vitória da Conquista e Belo Campo, ambas no Centro-Sul do estado.

neighborhood
34

cidades baianas estão em racionamento preventivo de água

Mais seca pelo estado

Mas não foi só o número de cidades com racionamento preventivo de água que aumentou. Quando o especial Vozes da Seca foi originalmente publicado, no início de janeiro de 2017, eram 77 os municípios baianos que estavam em situação de emergência devido à estiagem – a proporção era de um em cada cinco.

No fim de setembro, o cenário piorou. Enquanto, em Morrinhos, o verde floresceu, a seca voltou a castigar outras cidades. De acordo com a Defesa Civil do Estado (Sudec), atualmente, são 227 municípios em situação de emergência pela estiagem na Bahia. Dos 15 milhões de habitantes do estado, cerca de 5,1 milhões estão sendo afetados pela seca este ano.

No fim de setembro, o cenário piorou. Enquanto, em Morrinhos, o verde floresceu, a seca voltou a castigar outras cidades. De acordo com a Defesa Civil do Estado (Sudec), atualmente, são 227 municípios em situação de emergência pela estiagem na Bahia. Dos 15 milhões de habitantes do estado, cerca de 5,1 milhões estão sendo afetados pela seca este ano.

“O quadro é crítico, de muita gravidade. E isso tem que indicar para o poder público como alertar e adotar, de fato, medidas restritivas e de controle”, defende a promotora Luciana Khoury, coordenadora do núcleo de defesa da Bacia do Rio São Francisco do Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA).

Para a promotora, é preciso adaptar a convivência com a seca a atividades com limite e regramento. “É importante que a crise hídrica seja vista por suas causas reais. A falta de chuva é um grande problema”, diz ela, que destaca a gestão da bacia do São Francisco. No caso do Velho Chico, há muitas empresas agrícolas que causam desmatamento, segundo ela. Só lá, 79% da demanda do uso da água vem do agronegócio.

O quadro é crítico. E isso tem que indicar para o poder público como adotar medidas de controle

Luciana Khoury, promotora e coordenadora do núcleo de defesa do Rio São Francisco

Em Morrinhos, na zona rural de Feira de Santana, o mato ficou verdinho, mas o milho não floresceu (Foto: Vanessa Brunt/CORREIO)

 

Vem, trovoada

De fato, não há dúvidas de que 2017 foi mais um ano de seca prolongada na Bahia – o sexto ano. No Oeste da Bahia, como destaca o superintendente da Sudec, Paulo Sérgio Menezes, praticamente não houve chuva. “Em outras regiões, o que teve foi chuva de inverno, que é o que a gente chama de seca verde”, diz, referindo-se ao que tem acontecido em locais como Morrinhos.

Essa chuva, ele explica, realmente não é bastante para recompor lençóis freáticos, nem para recuperar os poços e níveis de barragens. “As aguadas não sangraram (transbordaram). Quando sangra, limpa a água, que passa a ser própria para consumo de novo. As cisternas também não encheram. A chuva ocorreu agora, mas o prejuízo já estava configurado”, diz.

Outros locais, como o litoral norte baiano, na divisa com Sergipe, foram mais beneficiados pela chuva. Mesmo assim, em todo o estado, o governo tem construído adutoras emergenciais para socorrer as comunidades.

Agora, ele espera que a expectativa de confirmar as trovoadas se confirmem. Até dezembro, a previsão é que chova abaixo da média histórica na região do São Francisco, mas do centro do estado até o litoral, é possível que o nível seja até maior do que em outros anos. “Se vierem mesmo, vai ser muito bom para o estado, já que temos seis anos sem trovoadas”.

6

anos de seca prolongada na Bahia

Enquanto isso, os sertanejos esperam. Que a seca dê uma trégua, que o milho floresça e que o gado volte a ficar gordinho. Muitos, como seu Renato Ferreira, esperam a trovoada.

Seria o milagre pelo qual tanto pediram. “Vai ter. Com fé em Deus”, diz o lavrador.

Ele é como Fabiano, que resistia, pedindo a Deus um milagre.