O sertão pegava fogo, o sol chupava os poços e o casal sonhava desgraças. Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam cheios, arrastando os pés. Quando escreveu Vidas Secas, em 1938, Graciliano Ramos não conhecia os lavradores Matheus Dias, 19 anos, e Valquíria Oliveira, 19, mas conhecia Fabiano e Sinhá Vitória.

Os da vida real ainda parecem estar na puberdade, mas já são castigados pela seca desde os primeiros dias da vida – tal qual os da ficção. Para cuidar da rotina da casa, Matheus e Valquíria precisam buscar água longe. Diariamente, saem para pegar água em um riacho que fica a alguns minutos de onde moram, já numa das áreas mais pobres do centro de Morrinhos, povoado na zona rural de Feira de Santana, no distrito de Jaguara. Na casa sem pintura onde moram há seis meses com o filho Allysson, 3, não existe água encanada.

É o buraco onde a vaca Rainha, do primo de seu marido, ficou presa por horas, depois de tentar beber um pouco da água enlamada. E é a mesma fenda a qual recorreu tantas vezes, quando não tinha água em lugar algum. Assim como para o gado e outros animais, aquele açude natural era a fonte de água dela e da família.

"Aqui, quando chove, fica a coisa mais linda, mas quando bate o verão, acaba com tudo", começou a dizer, antes de voltar à realidade: há tempos, não chove.

A casa de Ana Rita também não tem sistema hidráulico. “Agora, a gente tem que pegar água no rio”, conta. Mas diz que não tem problema. Ana Rita é pequenininha – tem pouco mais de 1,50 m – mas é forte. E se gaba disso: faz roça, faz cerca, arranca “toco” (troncos de árvores para abrir espaço para lavoura), carrega peso e até entra na lama para ajudar no resgate da vaca que atolou. “Sou pequena, mas me viro. Se eu tiver podendo andar, faço meu trabalho. Eu não tenho medo".

pior período de seca desde 1910

Os personagens de Morrinhos poderiam estar nos livros de Graciliano, mas também em qualquer uma das 77 cidades baianas que fecharam o ano de 2016 em situação de emergência por seca ou estiagem: ou seja, são um em cada cinco municípios baianos nessa penúria.

Para muito sertanejo, é a pior seca em muito tempo. A conclusão dos meteorologistas ajuda a entender: é o quinto ano consecutivo no Nordeste. Entre os municípios baianos, 43 enfrentam a seca há pelo menos cinco anos. Em outros, até 100% da população foi afetada. Não se amargurava uma seca de tanto tempo assim desde o ciclo de 1979 a 1983, segundo a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), que é uma das responsáveis pelo Monitor de Secas do Nordeste do Brasil, em parceria com a Agência Nacional de Águas (ANA). E, realmente, é o pior período de seca prolongada desde 1910.

“Esta última foi pior do que a anterior porque choveu menos, mas, quanto a impactos relativos à população, a gente crê que foi um pouco menos. Claro que tem um impacto econômico profundo com perdas agrícolas e diminuição do rebanho, mas, como há políticas e obras estruturantes, esse impacto foi um pouco menos grave”, afirma o supervisor do núcleo de meteorologia da Funceme, Raul Fritz.

Caminhando pelo leito do rio

Agora, em trechos onde só existia água do São Francisco, dá até para caminhar na terra. Paratinga é, hoje, a quarta cidade com maior percentual de população afetada no estado – perde para Condeúba (no Centro-Sul), Santa Teresinha (Centro-Norte) e Caém (Centro-Norte) e também figura entre as que amargam a seca prolongada há pelo menos cinco anos.

Em alguns lugares da zona rural, o prefeito diz que é difícil encontrar água até para consumo humano. Como a cidade é rodeada pelo Rio São Francisco, uma parte do território acaba se tornando uma ilha. Segundo ele, são cerca de 740 hectares de ilha. Mas a parte do rio que passa pelo Centro é que está secando, principalmente entre os meses de julho a novembro. “A cidade está passando por uma crise hídrica sem precedentes”.

Na mesma região, o município de Muquém de São Francisco também enfrenta sua luta diária. Há oito anos, há povoados abastecidos com carros-pipa e, por vezes, a prefeitura precisa providenciar cestas básicas. É que, segundo o técnico agrícola da Secretaria de Agricultura da cidade, Gilmar Correia, a situação é tão grave que não há uma boa safra desde 2003. Gilmar acrescenta ainda que a seca vem aumentando a procura por postos de saúde. "O pessoal procura muito por causa de cálculo renal. Não tem água, os poços estão secando", diz.

O milho, que antes era o principal produto da agricultura familiar local, praticamente não existe mais. Se a média anual de chuva chegava a 700, 800mm, 13 anos atrás, hoje, é difícil passar dos 200mm. Em termos de comparação, em 2015, a média anual de chuva em Salvador foi de 1,8 mil mm.

A situação do Rio São Francisco, de fato, não está nada boa. De acordo com o ambientalista Luiz Dourado, membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), o rio está sofrendo o impacto da duração da seca.

Esses municípios, Muquém e Paratinga, ficam na região que é conhecida como ‘Médio São Francisco’, que é onde o rio já não tem a mesma profundidade de outrora. “A parte mais profunda vai sendo soterrada por aterramento ou por depósito de sedimentos ou areia. Como o rio fica raso, as companhias de abastecimento e as captações para a agricultura precisam de novos componentes hidráulicos para fazer a captação da água. E isso afeta os municípios, cada um com sua vertente”.

200mm

Chuva em Muquém de São Francisco em 2016

Valquíria Oliveira, 19 anos, e Matheus Dias, 19, são como Sinhá Vitória e Fabiano dos dias atuais (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)

À espera do trovão

No povoado de Campo Alegre, que pertence ao município de Santa Teresinha, no Centro-Norte da Bahia, o aguaceiro ainda não caiu, mas o mandacaru já deu flor e é justamente isso que tem alimentado a esperança dos moradores. É que na zona rural, o povo tem uma crença, que já foi até eternizada pelo Rei do Baião, Luiz Gonzaga: quando o mandacaru floresce, é sinal de que a chuva com trovoada está bem próxima.

Dos 10.619 habitantes do município estimados pelo IBGE, 70% vivem na zona rural e, segundo dados da Defesa Civil do Estado, 99,69% da população da cidade foi afetada pela seca - o que, matematicamente, significa que apenas 33 pessoas em toda Santa Teresinha não foram afetadas. “A trovoada é esperada de novembro a março, mas até agora ela não veio”, reclama o vaqueiro Nivaldo Aragão Ribeiro, 41. Enquanto ela tarda, o povo sofre. As fontes de água natural da região secaram; chuva das boas eles nem lembram mais quando teve; falta dinheiro para comprar água e a prefeitura não consegue atender aos milhares de pedidos de carros-pipa.

Só resta a eles se apegar na fé e pedir a Deus que mande água em abundância. “Enchente certa, para encher o tanque e o rio, tem uns 26 anos que teve. Chover até chove, mas não faz enchente. A terra está tão seca, que logo evapora”, lamenta seu Antonio Jorge Souza, 71 anos, dono de um bar no Centro de Campo Alegre. A reclamação tem fundamento: o município está na seca há cinco anos e, na avaliação dos moradores, 2016 tem sido ainda pior.

“Sou nascido e criado aqui e nunca vi do jeito que está. As águas permanentes acabaram. Nunca mais teve enchente. Até o Rio Forte - que nunca vi na minha vida - todo ano a gente pegava muito peixe, nesse poço que ficava. Agora secou tudo O Olho D´Água Pedro Correia, que existia desde antes de eu nascer, e vinha gente de todo lugar pegar água e lavar roupa, secou”, lamenta o vaqueiro João Chaves dos Santos, mais conhecido como Pote, 59.

Na véspera da reportagem do CORREIO passar pela zona rural de Santa Teresinha, seu Pote recebeu um caminhão de água da prefeitura para dividir com um vizinho. Ele conta que colocou a água na cisterna e “a velha” economiza do jeito que pode. “A gente não tem culpa, não tem outro jeito a dar. O que imagino, se Deus livre guarde, é se a água acabar. A gente vai fazer o quê? O que há de ser de nós? Só Deus é quem sabe”, lamenta.

Mas iam vivendo, na graça de Deus, como escreveu Graciliano Ramos, e eram quase felizes.

A dona de casa Maria Lita Regis de Brito, 46 anos, também vive com o marido, Derneval Gonçalves de Brito, e a filha caçula na zona rural de Santa Teresinha. Mais de dez quilômetros separam o casal de seu Pote, mas os problemas enfrentados por eles são praticamente os mesmos. “Chuva só fina, que em três dias seca. As fontes de chão que a gente tinha secaram tudo. Onde via água, a bicha secou. A cisterna do governo é que garante água. Se molhar as plantas, a gente fica com sede, não dá para gastar de jeito nenhum, a situação é feia”, conta Lita.

Só não é pior porque nos últimos anos a comunidade foi beneficiada por mais de 800 cisternas, que permitem que eles aproveitem as águas da chuva e sejam menos penalizados nos períodos de escassez. “O único lugar que ainda existe um pouco de água é na cisterna. Com o projeto do governo, todo mundo conseguiu seu tanque. As torneiras estão tudo seca. Quando chove, vem da Serra da Jiboia e enche o tanque”, ressalta Lita.

A situação poderia estar melhor se um projeto que prevê levar água do Rio Paraguaçu para uma parte da zona rural de Santa Teresinha já estivesse pronto. “Não tem água na região de jeito nenhum. Graças à cisterna, o pessoal está se segurando, mas o nível já está bem baixo. Tem essa obra para trazer água do Paraguaçu para cá, mas tem mais de um ano que dizem que vai ficar pronta e nada”, reclama o lavrador Reinaldo dos Santos Oliveira, 35.

A Empresa Baiana de Água e Saneamento (Embasa), responsável pela obra, disse, em nota, que a extensão da rede faz parte da ampliação do fornecimento de água para as localidades de Campo Alegre, Capinan, Cágados, Fazenda Cravo, Pedra Redonda, Mangaba, Mangabeirinha e Ferrugem. Até o momento, 30 quilômetros de redes adutoras e de distribuição, duas estações elevatórias de água tratada, além de três reservatórios de distribuição para beneficiamento de 328 residências e uma população de 984 habitantes foram entregues.

“A previsão inicial era de que a obra fosse concluída em março de 2015. Devido a problemas técnicos e operacionais da empresa contratada para executá-la, a Embasa precisou realizar quatro aditivos de prazo para essa obra”, diz a nota. Agora, a previsão de entrega é fevereiro de 2017.

Tem encanamento, mas não tem água

Mas não necessariamente uma infraestrutura hidráulica vai garantir o abastecimento de algumas cidades. Em Morrinhos, na zona rural de Feira de Santana, mesmo quem tem água encanada em casa não está livre de passar por perrengue. A água vem hoje, vem amanhã, mas daí passa 15 dias sem aparecer. Talvez mais, talvez menos.

“Ninguém sabe”, argumenta a aposentada Maria Izabel Pereira, 65. Na porta de sua casa, quase uma dezena de recipientes cheios de água. Bacias, baldes, panelas grandes - dessas tipo caldeirão. Era o dia de aproveitar para guardar.

Nenhum dos vasos, contudo, estava coberto. Mas, mesmo quando perguntada se não tinha medo de facilitar a reprodução de mosquitos Aedes aegypti – transmissores de doenças como a dengue, a chikungunya e a zika –, Maria Izabel não se abalou. Parecia que, àquela altura, não tinha mais medo de nada. Se sobrevivia à seca, não sobreviveria ao Aedes? “E (a água) é só para usar hoje. Daqui a pouco acaba”.

Na sede de Jaguara, distrito de Feira onde fica Morrinhos, é a mesma inconstância. Passam alguns dias e, novamente, dona Antonieta Batista, 77, se vê sem água. No dia que conversou com o CORREIO, a água apareceu fraca pela manhã, mas ainda rendeu o suficiente para encher uma meia dúzia de vasilhames. Antes mesmo do meio-dia, já não saía nada das torneiras.

Por vezes, recorre ao Rio Jacuípe em busca de água para o dia a dia. Para limpar a casa, usar nos banheiros. "Às vezes, (a gente) panha (sic) no rio para gastar, para lavar, passar pano na casa, botar no banheiro", conta a aposentada. Mas beber dessa água, nem pensar. "Oh, meu Deus. A do rio agora tá mesmo que sal". Um dia, ela já foi lavradora. Hoje, não aguenta mais.

Todos os moradores dizem não receber carros-pipa.

R$28mi

é o investimento na ampliação do sistema que abastece a região de Morrinhos

As dificuldades no abastecimento em Morrinhos – na verdade, em todo o distrito de Jaguara – são reconhecidas pela Embasa. Em nota, o órgão informou que o abastecimento no distrito é feito em períodos alternados, porque o sistema não tem capacidade de atender a todas as localidades ao mesmo tempo. Segundo eles, esse sistema de alternância pode ter intervalos maiores do que o comum se houver alguma situação como vazamento na rede ou falhas no fornecimento de energia.

Ainda na nota, a Embasa informa que está ampliando o sistema de abastecimento dos municípios de Santo Estevão, Ipecaetá, Anguera e Serra Preta, além dos distritos de Bonfim de Feira e Jaguara (em Feira de Santana). “Estão sendo investidos R$28 milhões na implantação de novos reservatórios, adutoras, módulos da estação de tratamento, além da ampliação da estrutura de captação. Cerca de 95% da estrutura já está concluída e, ao final da obra, a capacidade de produção de água vai dobrar, passando dos atuais 120 litros por segundo para 240 litros por segundo. A previsão é que a obra seja entregue em fevereiro de 2017”, afirmam.

O sistema de abastecimento de Santo Estevão, Ipecaetá, Anguera, Serra Preta, Bonfim de Feira e Jaguara vai dobrar sua capacidade de produção.

2016: 120 litros por segundo

2017 (fevereiro): 240 litros por segundo

Em Morrinhos, na zona rural de Feira de Santana, os moradores sofrem com a intermitência de água (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)

Água que chega de carro

Mas a água nem sempre chega pelo rio ou pelos canos em casa. O que salva muita gente é a água que chega pelas estradas, sobre quatro rodas. Em Morrinhos, são cerca de dois mil poços cadastrados para receber água, segundo o secretário de Recursos Hídricos e Desenvolvimento Rural de Feira de Santana, Joedilson Machado.

O município tem, hoje, sete carros-pipa que fazem de duas a cinco viagens por dia – a depender da distância. De acordo com o secretário, há localidades que são até 70 quilômetros distantes do Centro de Feira. Porém, a água só chega se o morador for até a secretaria solicitar. “Quando o tanque estiver prestes a secar, a pessoa tem que avisar e a gente faz uma programação. Mas tem pessoas que esperam o tanque secar para dizer que secou”, explica, querendo dividir a culpa com o morador que está a 70 quilômetros do Centro.

Já em Muquém de São Francisco, há períodos em que os caminhões chegam a fazer duas viagens por dia, segundo o técnico agrícola da Secretaria de Agricultura da cidade, Gilmar Correia. Eles abastecem, principalmente, cerca de 40 localidades do município. “Já tem mais de oito anos que é assim. Tem caminhões de 10 mil, 12 mil, 15 mil litros de água”.

Outra das cidades mais afetadas pela seca (100% da população, segundo a Defesa Civil), Condeúba, no Centro-Sul do estado, também precisa recorrer aos caminhões com água. Só assim para amenizar os quase dois anos sem nenhuma chuva, que voltou a aparecer somente em dezembro.

Os carros-pipa vêm do governo federal. Porém, Condeúba não é a única. Atualmente, a Operação Carro–Pipa Federal atende 986.968 pessoas em 147 municípios da Bahia. De acordo com o Ministério da Integração, são 1.475 caminhões envolvidos - o que significou um investimento de R$ 116,6 milhões de janeiro a setembro de 2016. Quem entrega é o Exército, que também é o responsável por uma avaliação técnica em conjunto com a prefeitura de cada cidade. Ainda segundo o Ministério da Integração, a média de abastecimento é 20 litros por pessoa por dia.

Só que nem sempre os recursos chegam no tempo da necessidade dos moradores. Em 2015, o secretário municipal de Administração e Planejamento de Condeúba, Décio Pereira, diz que chegou a tirar do próprio bolso para contratar o carro. “Se depende de um recurso que chega em seis meses, o dono do carro-pipa não quer mais trabalhar com a gente e nossa prioridade é a vida (das pessoas)”.

Na semana que recebeu a equipe do CORREIO, o presidente da Associação Comunitária Rural Lagoa Grande, Lagoa da Mata e Gavião, Edmilson Chaves, 35 anos, que mora na zona rural de Santa Teresinha, também tinha comprado um caminhão de água. “A vizinha também comprou um e minha mãe também vai comprar. Levou três dias para chegar, veio de Itatim. A secretaria está recebendo muitos pedidos, mas não consegue atender todos. Fiz um pedido há seis meses. Tive que pagar R$ 200. Nessa época de hoje, com minha filha casando, é complicado, R$ 200 hoje é nada para se desmanchar, mas para se fazer é muita coisa”, diz.

A água falta para todos, mas não é todo mundo que consegue comprá-la. As fontes de renda são escassas. Tirar R$ 200 de um orçamento que na maioria das vezes não chega nem à metade dos R$ 937 do salário mínimo é tarefa quase impossível e para bem poucos. “Custa entre R$ 150 e R$ 180 um caminhão-pipa com 10 mil litros. Mas nem todo mundo tem dinheiro para comprar. A prefeitura que às vezes dá”, diz o lavrador Reinaldo dos Santos Oliveira, 35 anos, que vive em Campo Alegre, povoado de Santa Teresinha.

Racionamento no estado

Em duas cidades da Bahia, as vizinhas Vitória da Conquista e Belo Campo, no Centro-Sul do estado, a resposta teve que ser mais radical: os dois municípios vivem, hoje, um regime preventivo de racionamento de água.

De acordo com a Embasa, o racionamento em Vitória da Conquista foi mesmo devido à redução das chuvas – que, em consequência, provocou a queda no volume de água armazenada nos reservatórios de Água Fria I e II e na vazão do rio Catolé, que são os mananciais que abastecem a cidade.

Na prática, o racionamento fez a seca bater na porta até dos moradores da ‘cidade grande’. Na casa da professora Maria Rúbia Viana, 53, que fica no bairro do Ibirapuera, em Conquista, a nova rotina – de três dias com água, três dias sem água – já provocou até briga. “É uma briga eterna para desligar logo o chuveiro. Eu vivo controlando tudo. Tenho medo de chegar a uma coisa maior e não só em Conquista, porque a humanidade caminha para isso”, conta ela, que vive em uma casa com dez pessoas, incluindo marido, filhos, genros, netos e uma sobrinha.

É uma briga eterna para desligar logo o chuveiro. Eu vivo controlando tudo. Tenho medo de chegar a uma coisa maior e não só em Conquista

Maria Rúbia Viana, 53, professora e moradora de Vitória da Conquista

Nascida em Tremedal, também no Centro-Sul do estado, Maria Rúbia diz que era acostumada à falta de água. Mas, quando se mudou para a nova cidade, 25 anos atrás, achou que as coisas seriam diferentes: Conquista tinha água em abundância – e “água boa”. E as coisas até que foram diferentes mesmo. Porém, em 2015, começaram a mudar. Desde o início de 2016, veio o racionamento.

Agora, descarga no vaso sanitário, só quando for mesmo necessário. A água para lavar roupa é reutilizada e ganha vários novos usos – de substituir a descarga até lavar o quintal. Banho de dez minutos? Nem pensar. A vigilância da água logo bate na porta – a menos que o responsável assuma as consequências para tomar banho “de cuia” depois.

“Muda toda a nossa rotina, mas é um mal necessário. Só não pode ficar sem água para beber. E, pelo menos, ajuda a educar o povo, que não tem consciência. Tem gente que usava água boa até para varrer o quintal”, critica.

Morador do bairro da Boa Vista, em Vitória da Conquista, o policial militar da reserva Jorge Gonçalves Rocha, 59, passa por uma situação ainda mais complicada. Em sua casa, o racionamento sequer é regular. Com frequência, os três dias passam a ser quatro, cinco, seis... Entre junho e julho de 2016, chegou a ficar duas semanas sem água.

No imóvel onde mora com a esposa e três filhos, os dois reservatórios de 500 litros de água sempre foram suficientes para atender à demanda. Desde o fim de 2015, passou a ter quatro reservatórios, além de uma caixa subterrânea com capacidade para mil litros. No dia previsto para a água chegar, ficam esperando até 2h da manhã, para que todos os tanques sejam cheios.

O aumento do armazenamento não quer dizer que o consumo tenha aumentado. Se, antes, a família usava entre 10 mil e 12 mil litros de água, hoje, não passa de cinco. O número de banhos caiu de três para um por pessoa e o xixi só desce pelo vaso sanitário – com o balde – depois da terceira ou quarta ida ao banheiro. Um “chuveirão” que ficava no quintal e fazia a alegria do filho mais novo já não existe mais. Até as flores, que eram molhadas diariamente, agora só recebem água a cada três dias.

“A gente sabia que a seca cresceu muito e que as barragens não iam suportar, mas estava segurando. Só que, com a estiagem, foi colapso quase total. Eu acredito que, sem falar de governo A ou B, mas, se os governos fossem mais sérios, esse problema de Conquista teria sido resolvido mais de quinze anos atrás. Mas, como obras dessas ficam escondidas embaixo da terra, eles não se importam. Prefeitos, deputados, governadores, tinham que ser mais sérios e se importar com a população que dá o emprego para eles".

Em Belo Campo, que fica a 65 quilômetros de distância de Vitória da Conquista, a água, que vinha três vezes por semana, passou a vir dois. Só que, para muitos moradores, como a professora Márcia Oliveira, 45, a água vem “suja”. E, não bastasse vir assim, vez ou outra, ainda dá outros sustos.

“Eu até brinquei com meu filho, porque veio uma minhoca. Eu disse para ele que veio lombriga. Creio que seja do reservatório, porque a água estava muito suja. Estamos há dois meses nesse racionamento e está uma luta mesmo”.

Ainda que, segundo a Embasa, a última medição dos reservatórios da região, realizada no início de janeiro, tenha indicado que a barragem Água Fria I está com sua capacidade máxima (175 mil metros cúbicos), a de Água Fria II tem 57% da capacidade total de 6,5 bilhões. Como as chuvas no fim de 2016 não foram suficientes, não há previsão para o fim do racionamento nas duas cidades. Quando a medida começou, Água Fria II estava apenas com 34% do total.

Além disso, a Embasa informou que, caso sejam constatadas irregularidades no abastecimento, os moradores devem procurar o órgão, para registrar uma ocorrência. Daí, uma equipe de técnicos será encaminhada ao local para avaliar a situação. A Embasa ainda afirma que o racionamento em Belo Campo continua igual - ou seja: a cada três dias - e que "limpeza dos reservatórios domiciliares deve ser feita regularmente pelos usuários para que a qualidade da água recebida não seja comprometida".

Sem previsão, os moradores esperam dias melhores, sem deixar de se preocupar com o presente. "Eu costumo falar em casa que a gente tem que aproveitar cada gotinha. Tenho medo de ficar pior, mas ainda tenho a esperança que o sertão vai virar mar", diz a professora Márcia Oliveira. Enquanto isso não acontece, o sertão continua pegando fogo.