No início dos anos 1990, a internet ainda era algo novo; quase uma coisa escondida. Ninguém sabia muito bem o que estava acontecendo. Não era assim só no Brasil – mesmo na França, onde o professor André Lemos cursava o doutorado em Sociologia na Université Paris Descartes, a Paris 5, na capital francesa, o assunto era novidade.
Até na França, ele foi um pioneiro: começou a estudar cultura digital em 1991. “Pierre Lévy estava na minha banca. Depois, viramos amigos e ele me disse que minha tese de doutorado foi a primeira sobre o tema”, lembra o professor, referindo-se ao sociólogo francês que é um dos mais importantes pesquisadores da cibercultura do mundo.
A tese inovadora vinha com o assunto logo no tema: o título, em francês, era algo como ‘Cibercultura – as novas tecnologias e a sociedade contemporânea’. A parceria entre os dois continua até hoje: em setembro de 2019, inclusive, Lévy veio a Salvador para participar do Fronteiras do Pensamento em um debate mediado justamente pelo professor André Lemos.
“Acho que conservo isso até hoje. Uma espécie de inquietação teórica e epistemológica se deu pela mudança de área e hoje estou na Comunicação porque, na Sociologia, a grande revolução é que essas máquinas estavam se transformando em máquinas de comunicação”, explica.
Hoje – ou melhor, desde 1997 – ele é professor da Faculdade de Comunicação (Facom) da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Lemos está no mais alto nível da carreira em dois aspectos: desde 2014, é professor titular da Facom, além de ser um dos pesquisadores com produtividade 1A do CNPq na Ufba, o que indica o nível mais alto da pesquisa científica.
“Eu tive acolhimento na Facom para trabalhar com isso (cultura digital). Acho que conservo essa inquietação na minha própria área para buscar energias para compreender o contemporâneo”, diz ele, hoje com 58 anos.
Assim como os colegas, o professor André teve a rotina nas salas na Facom alterada pelo avanço da covid-19. De casa, trabalha normalmente, exceto pelas aulas suspensas.
“Reúno meu grupo de pesquisa toda semana, estou fazendo as pesquisas, escrevendo, publicando, orientando meus alunos de TCC, mestrado e doutorado, fazendo muitas conferências (lives)”, cita.
A pandemia, por sua vez, se tornou um dos assuntos de um dossiê lançado por seu grupo, que ainda tem desenvolvido pesquisas sobre fake news e vigilância de dados.
Nascido no Rio de Janeiro, veio para Salvador com os pais na juventude. Aos 17 anos, passou para Engenharia Mecânica na Ufba, em 1980. No início, se imaginava engenheiro; queria fazer projetos de máquinas. Mais ao final do curso, cresceu o interesse pelas leituras a partir da própria Engenharia. Começava, ali, a surgir um pesquisador.
Até então, sua área não tinha muita bibliografia sobre o impacto da tecnologia na sociedade. Queria entender os problemas causados por esse desenvolvimento.
“A gente sabia como botar as indústrias do Polo (Petroquímico de Camaçari) para funcionar. Era isso que a gente era bem ensinado, mas a minha inquietação me levou para outra coisa”, conta.
Assim, decidiu buscar um curso de pós-graduação que respondesse esses dilemas. Chegou ao mestrado em Engenharia de Produção na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ao contrário da graduação, era um curso voltado à política de ciência e tecnologia, história da ciência e filosofia da técnica.
Foi seu primeiro movimento de transição. O segundo veio logo após concluir o mestrado, com o estudo da Sociologia no doutoramento. Era o contexto em que a revolução da informática começava a explodir. Por isso, a Sociologia apareceu como um caminho para entender as transformações tecnológicas.
“Minha formação, embora passeie por áreas, sempre teve um interesse sobre a técnica; os objetos técnicos e a relação com a sociedade”, analisa.
Quando estava para defender a tese, em 1995, estava acompanhado por grandes sociólogos. No entanto, para a banca, precisava de alguém que entendesse mais diretamente do que estava falando. A maioria dos franceses nem mesmo usava email. Foi assim que chegou a Pierre Lévy, que já era um expoente da área. De lá para cá, a amizade continuou. Até livro os dois já lançaram juntos – O Futuro da Internet: em direção a uma ciberdemocracia, de 2010.
O professor André concluiu o doutorado em uma época em que as universidades federais ainda eram carentes de doutores. Assim, era comum que as próprias universidades buscassem pesquisadores que estivessem fazendo doutorado fora do Brasil com bolsas do CNPq ou da Capes.
Assim, foi convidado pela Facom para uma bolsa para recém-doutores.
“Eu digo que fui convidado e acolhido porque muitas escolas de Comunicação talvez não me acolhessem, porque não sou formado em Jornalismo e Comunicação”.
Quando chegou, o professor que ministrava a disciplina de Comunicação e Tecnologia estava se aposentando. E, naquele começo, ainda sem tanta aproximação com a nova área, era a única que acreditava ter condições de ministrar.
De lá para cá, os interesses de pesquisa se expandiram – mas sempre ligados à cultura digital e aos fenômenos contemporâneos. O projeto mais recente foi sobre Smart Cities (cidades inteligentes) e Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês). O objetivo era entender o papel dos objetos a partir das novas funções que adquiriam.
Agora, tem estudado mais a partir da epistemologia e como a visão dos objetos é negligenciada nas teorias da Comunicação. Para o professor André, a visão hoje é muito antropocêntrica. Com isso, torna-se difícil ver os produtos e processos da cultura digital.
“Quando eu posto no Facebook, sou eu ou o Facebook (quem posta)? Eu não tenho o menor controle de para onde a minha postagem vai. Se eu penso no Facebook apenas em relação aos humanos, não vou compreender o processo”.
Assim, o projeto de pesquisa aprovado para desenvolver de 2019 a 2024 é acerca da compreensão dos processos de mediação e sobre como absorver o papel dos objetos técnicos nas suas análises da cultura digital. Se uma pessoa posta no Instagram, por exemplo, ela pensa em legenda, hashtag, em um lugar ‘instagramável’ e, assim, um objeto passa a alterar a prática das pessoas no dia a dia.
Em 2015, estava entre os 700 pesquisadores mais citados – entre todas as áreas. Na Ufba, apenas 27 pesquisadores estavam no ranking Webometrics Ranking of World Universities, que listou três mil profissionais com base nas citações do Google Acadêmico. Mas o maior reconhecimento talvez tenha vindo antes: em 2014, foi classificado pesquisador 1A do CNPq.
Como a maioria dos colegas, vê a classificação como um “reconhecimento” do trabalho.
“Não é um direito adquirido. Se eu começar a não ser produtivo, perco esse status”, reflete.
A produtividade, de forma geral, é avaliada por critérios como o número de publicações. No caso do professor André, a média é de cinco a seis artigos por ano.
“Eu faço o que gosto. Me dedico à pesquisa por prazer. Gosto de orientar, gosto de dar aula. Minha dedicação é total, mas não acho que abdiquei de nada. Minha família me acolhe muito bem, compreende minha carga de trabalho”, conta.
Pai de dois filhos, se divide entre a rotina com a família e o trabalho. Ainda assim, não costuma passar noites trabalhando. Diz, com frequência, que é um burocrata: trabalha até meio-dia, depois das 14h às 18h.
Aos orientandos, tenta mostrar a realidade – ou seja, “as dores e as delícias” de fazer pesquisa. Tenta estimular que prossigam com o ‘vírus’ da inquietação da pesquisa. E, em um contexto de contingenciamento e cortes orçamentários, sabe que o financiamento de pesquisadores, através de bolsas e outros auxílios, é importante.
“Nem todo mundo tem o privilégio de trabalhar no que quer. Eu tive o privilégio pelo meu esforço e pelo governo brasileiro. Se não fosse o apoio, jamais estaria fazendo o que faço hoje. Talvez fosse um engenheiro no Polo. Talvez estivesse mais rico, mas não estaria mais feliz”.
Além da vida na universidade, o professor André tem outras facetas. Uma de suas paixões, por exemplo, é a escrita. Já tem três livros de ficção lançados – dois romances e um livro de poesias. Costuma escrever nas férias, quando também aumenta a lista de livros de ficção lidos.
“Vejo algumas séries, filmes, mas sou leitor compulsivo. Leio uns 30 livros de ficção por ano e leio vários ao mesmo tempo”, revela. Em 2019, alguns dos títulos que leu incluíam Máquinas Como Eu, de Ian McEwan; A Transparência do Tempo, de Leonardo Padura, e O Sol na Cabeça, de Geovani Martins.
A cada 15 dias, tenta ir à praia – geralmente, no Litoral Norte, entre Itacimirim, Praia do Forte e Arembepe. Gosta do contato com a natureza, ainda que sempre leve computador e alguma quantidade de trabalho.
Quando estava para mudar para o Rio de Janeiro, por volta de 1984, descobriu o tai chi chuan. Desde então, pratica. Passou pelo judô, karatê, tae kon do, mas o tai chi trouxe equilíbrio até na respiração.
“Me dá tranquilidade de espírito”, explica ele, que é o do tipo de pessoa que gosta de fazer listas do que fazer para se organizar. “Gosto muito de andar também, de um lugar a outro. Acalma a mente e me permite pensar melhor. Vários pensadores faziam isso. (Arthur) Schopenhauer, (Friedrich) Nietzche pensavam andando”, completa.
Nem sempre os dias em sala de aula são fáceis. Na graduação, principalmente, não é incomum chegar para dar aula e encontrar um estudante dormindo.
“Mas eu dou a melhor aula possível, porque o aluno do lado está prestando atenção. Eu sempre brinco com a Matrix: que pílula vão tomar? A azul ou a vermelha? Eles (os alunos) já são adultos. Não tem papai e mamãe obrigando”, diz.
O desafio para os estudantes de graduação é difícil. No filme de 1999, o protagonista precisa escolher entre as duas pílulas. Se escolher a azul, vai continuar inconsciente de que percebe a realidade como uma ilusão. Se escolher a vermelha, vai compreender que tudo que acreditou ao longo da vida era mentira.
Agora, o professor André tem sentido diariamente a desvalorização dos professores e pesquisadores das universidades federais. Sabe que a carga emocional é tão pesada que afeta até mesmo a produtividade.
“Por isso, cada vez que eu vou falar, digo que a Ufba é um patrimônio da Bahia. Somos produtivos e a universidade está sob ataque. É preciso que as pessoas entendam que a universidade é um lugar sério”, reforça.