Não era qualquer banca. Eram nomes como o geógrafo baiano Milton Santos, o pernambucano Manuel Correia de Andrade, o paulista Antonio Christofoletti e o carioca Sylvio Bandeira. Tinha, ainda, o advogado baiano Joaquim Batista Neves – que, hoje, a memória custa a trazer o nome de volta.
Esse foi o grupo que o professor Pedro de Almeida Vasconcelos encontrou, em seu concurso para a cadeira titular de Geografia na Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 1987. “Hoje, estão todos no céu”, diz ele, que foi aprovado depois de uma semana de avaliação. Mas Pedro também era um candidato diferente.
Os concursos para titular, normalmente, são prestados por professores que já fazem parte de uma instituição. São uma espécie de progressão interna da carreira acadêmica. Mas, à época, o professor Pedro não tinha qualquer vínculo formal com a Ufba. Já dono de um PhD concluído na Universidade de Ottawa, no Canadá, fora convidado a dar aulas no mestrado em Arquitetura como colaborador. Fora isso, nunca tinha feito concurso para ensinar ou pesquisar na universidade.
Mesmo assim, decidiu tentar o concurso. Em três meses, escreveu uma tese com 160 páginas comparando o transporte público do Brasil com o canadense. Era uma tese totalmente diferente da que defendera no Canadá, em 1985, que era uma análise histórica sobre a variação espacial de regiões metropolitanas brasileiras, e com pouco mais de 360 laudas.
Milton Santos fora exigente. Manuel Correia, que já o conhecia de Pernambuco, percebeu a ansiedade e chegou a fazer um sinal para que se tranquilizasse. Mas o professor Joaquim Batista Neves, ex-diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, por sua vez, tinha preparado 21 páginas de perguntas sobre a defesa.
“Imagine uma tese feita em três meses. Estava cheia de erro até de digitação, porque naquela época era datilografia. Eles pediam 50 exemplares. Para que 50 exemplares? Acho que era para não ter candidato pobre”, reflete ele, hoje com 72 anos.
O professor de São Paulo não queria aprová-lo. Christofoletti argumentava que o cargo de titular era o final da carreira de um professor. “Mas, em dez anos, não tinha aberto nenhum concurso. Eu não fiz concurso para ser titular, fiz para entrar na universidade. E entrei pela porta da frente”, defende.
Com uma trajetória bem própria, o professor Pedro se tornou pesquisador do CNPq em 1987. Em 2001, recebeu a mais alta classificação: a de 1A. Hoje, ele é um dos pesquisadores 1A da Ufba.
A covid-19 poderia ter interrompido seu trabalho, mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Com a pandemia e a suspensão de aulas, ele conseguiu acelerar o trabalho de pesquisa. Ao mesmo tempo, porém, se intensificaram as reuniões de colegiado e bancas finais de pós-graduação por videoconferência.
“Como eu tenho muito material na biblioteca, eu posso trabalhar em casa sem problemas. Pela manhã, trabalho no computador e, à tarde, nas leituras e notas no material. Nos fins de semana, não trabalho no computador e os horários são diferentes para que todos os dias não sejam iguais”, conta.
A entrada do professor Pedro na Ufba não foi o único momento em que destoou de outros pesquisadores. Até mesmo o caminho pela ciência foi um tanto dissonante. Natural de Recife (PE), ele cursou Geografia na Universidade Católica de Pernambuco, entre 1966 e 1969. Como muitos colegas da época, um de seus objetivos era se tornar técnico da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).
Mas não foi o que aconteceu. Assim que se formou, o professor Manuel Correia de Andrade – o mesmo da banca e que tinha sido seu professor durante a graduação – fez um convite. Queria que ele desse aulas em uma disciplina de Geografia no curso de Economia daquela universidade. Foi Manuel quem o incentivou a buscar uma pós-graduação fora do país.
Decidiu entrar em contato diretamente com os consulados da Bélgica e da França para tentar uma bolsa. Escolheu os dois países porque já falava francês. “A França nunca me respondeu, mas a Bélgica disse que eu ia”.
Foi assim que acabou fazendo um mestrado em Urbanismo e Planejamento Territorial. Ao mesmo tempo em que essa oportunidade o levou ao mestrado, também pode tê-lo afastado, inicialmente, da sala de aula. “Eu não tinha moral nenhuma. Tinha aluno que abria o jornal na minha frente. Eu tinha que bater a porta para dizer que o professor chegou. O professor Manuel Correia foi muito gentil, mas não devia ter me convidado”, diz.
Depois de três anos na Bélgica, onde casou e teve um filho, voltou ao Brasil.
Sem laços profissionais em Recife, escutou o cunhado, um baiano, chamando-o para morar em Salvador. O professor Pedro acabou fazendo a dissertação sobre os preços de terreno na capital baiana com base em anúncios de jornais. Defendeu a dissertação e, em 1973, voltou de vez às terras soteropolitanas.
Logo foi chamado para trabalhar na Companhia de Desenvolvimento Urbano da Bahia (Conder). Foi estagiário, técnico, assessor e se tornou diretor-superintendente. A vivência como diretor também não agradou.
“Detestei”, diz, categórico.
“Não tenho perfil. Eu sou um estudioso. Não sou um homem de ação, de comandar, dar ordem e tal. Imagine, com essa minha timidez, dar ordem para os colegas?”, argumenta, com o mesmo tom de voz baixo que manteve ao longo de duas horas de entrevista.
Quase dez anos depois, em 1982, participou de um evento em Campina Grande (PB), representando a Conder. Lá, encontrou um professor canadense que o chamou para fazer doutorado no Canadá. Até então, nunca tinha cogitado a possibilidade.
“Fui fazer o doutorado e adorei. Imagine ser pago para estudar? Aí, voltei para a Geografia. Fiz geografia urbana, para não mudar muito, e fiquei quatro invernos naquele país. O clima também ajuda você a estudar”, brinca.
Ao longo da entrevista, o professor Pedro reforçou algumas vezes: foi apenas no doutorado que aprendeu a pesquisar de verdade. Na Bélgica, durante o mestrado, explica, estava perdido. “Eu era muito jovem. Não sabia nem fazer fichamento direito”.
Depois dos quatro anos com a família no Canadá, voltou a Salvador e à Conder. Um de seus colegas na companhia foi quem fez a ponte para que ele fosse chamado para dar aulas no mestrado em Arquitetura. Na época, não havia programa de pós-graduação em Geografia. Depois que passou no concurso para titular, passou a dar aulas na graduação em Geografia e continuou associado ao programa de pós-graduação em Arquitetura. Quando a pós-graduação em Geografia foi criada, em 1993, deu aulas nos dois.
Durante todo esse tempo, a geografia urbana foi sua companheira. A tese do doutorado analisava nove regiões metropolitanas brasileiras e o mercado informal em cada uma delas. Já a tese que fez para concorrer à vaga de professor titular comparava o sistema de transporte do Canadá com o do Brasil.
A cidade, de certa forma, sempre foi o centro de suas pesquisas. “Com o desenvolvimento das novas formas dos aglomerados urbanos, seja através do aparecimento de nebulosas urbanas, seja através do crescimento de aglomerações desmesuradas como Los Angeles, os conceitos de cidade e de urbano estão sendo cada vez mais contestados: é quase impossível constatar onde termina uma grande cidade, e mesmo estabelecer a especificidade do urbano neste final de século, com o desenvolvimento de novas formas de comunicação”, escreveu o professor Pedro, em 2006, em um artigo publicado na revista científica Geousp Espaço e Tempo.
Nos últimos anos, orientou trabalhos que vão desde a formação de cidades baianas como Jequié e Serrinha até o comércio informal na Cidade Baixa, em Salvador.
Porém, ao mesmo tempo, seu trabalho não é apenas sobre o contemporâneo. Alguns de seus livros se debruçam justamente sobre o período da escravidão no Brasil – mas a escravidão urbana, como faz questão de frisar. Nos últimos cinco anos, essa tem sido uma de suas pesquisas principais. Ao fim da vigência da bolsa de produtividade atual, em 2021, ele deve lançar um livro sobre o tema.
Ao contrário da escravidão rural, a urbana oferecia mais alternativas. Os chamados ‘escravos de ganho’ andavam com certa liberdade pelas ruas. Uma vez por semana, davam uma combinação aos seus senhores.
“O resto era deles. Isso era uma contradição do próprio sistema. O escravo não podia ter bens, mas deixava em uma caixinha e normalmente comprava a alforria”, explica o professor Pedro, que também tem estudos sobre escravos libertos, artesãos e os chamados brancos pobres dos períodos colonial e imperial.
A partir da pesquisa sobre a escravidão, ele busca entender a desigualdade social no Brasil.
O trabalho é diferente do conduzido pelos historiadores, como explica. “A gente na Geografia tem um olhar importante porque, por exemplo, os historiadores têm muita dificuldade com mapa, de localizar o intraurbano. E outra coisa é que as relações espaciais são diferentes. A Geografia dá uma contribuição complementar e os temas vão além das disciplinas”, diz.
Um exemplo dessa diferença é justamente os relatos sobre os africanos que chegavam ao Rio de Janeiro e os que chegavam a Salvador. No Rio, cidade portuária que mais recebeu escravos em toda a América, aportavam nativos de países como Angola e o Congo.
Já para Salvador, por outro lado, a maioria dos africanos que chegava era de locais como Benin e onde hoje fica a atual Nigéria. Só que, enquanto o Rio recebia muitos agricultores – em localidades de Angola, por exemplo, já havia ocupação portuguesa -, quem mais vinha para Salvador eram guerreiros. Estados independentes, como a Nigéria, guerreavam com outros. Os perdedores eram mandados para cá – principalmente jejes e nagôs.
“Isso virou uma engrenagem comercial. E é delicado porque, sem a colaboração dos africanos, como você encheria um navio com mil pessoas? E outras coisas terríveis. Por exemplo: aqui, um escravo valia cinco vacas. Na África, um cavalo valia dois escravos. Esse é um lado que precisa ser conhecido para não virar folclore. Essa é a história pesada que a gente arrasta”, diz.
Antes do livro sobre escravidão, porém, vai publicar outro. Originalmente, em maio, lançaria O Universo Conceitual de Milton Santos, pela editora CRV com apoio da Ucsal. “Não quero contar a história dele, mas como os conceitos dele foram evoluindo ao longo do tempo”, explica. Porém, a data de lançamento foi adiada devido à pandemia; a nova data ainda será divulgada.
Em 1998, quando se aposentou da Ufba, começou a dar uma disciplina na Universidade Salvador (Unifacs). Logo foi convidado também para ministrar uma matéria na Universidade Católica do Salvador (Ucsal). E permaneceu assim, com os quatro vínculos, até 2003, quando a Ucsal pediu que ele criasse a pós-graduação em Desenvolvimento Territorial, onde ele trabalha até hoje.
“Quando você se aposenta (da Ufba), não pode dar aula na graduação nem se você quiser. E eu gosto de manter o contato com os jovens”, diz. Também sentia que ainda precisava contribuir com a Ufba; assim, nunca se desligou totalmente dela.
“A população brasileira pagou para eu ficar no Canadá, pagou para eu estudar em Paris no pós-doutorado (em 2004, na Sorbonne). Por isso, eu achei que devia continuar contribuindo com a geografia. É uma espécie de retorno que eu trouxe”, explica.
Mas, desde a morte do geógrafo Sylvio Bandeira – que também foi um dos pesquisadores 1A da Ufba e um de seus grandes amigos -, em 2017, decidiu desacelerar. Pediu para reduzir a carga horária na Ucsal de 40 horas para 20 horas. Na Ufba, no ano passado, pediu para sair do quadro de pesquisadores permanentes do programa de pós-graduação em Geografia para ficar com o status de docente colaborador.
Começou a fazer pilates, natação, emagreceu e mudou até a postura.
“Tentei melhorar a cabeça também porque, se eu parar, estudo o tempo todo. Você pode imaginar como a família reclama. Minha mulher fica brava”, admite.
O estudo, de fato, costuma ser colocado em primeiro lugar, entre suas preferências – junto à pesquisa, que considera relacionada. Em seguida, vem o gosto pelo ensino. Só depois, em terceiro lugar, lista as orientações de trabalho – que são tão importantes para os pesquisadores com produtividade 1A. “Porque as cabeças não são iguais”, justifica.