“As fotos não podem ser com todo mundo?”, questionava a professora Paola Berenstein Jacques, naquela manhã de quarta-feira, no fim do ano passado, referindo-se às seis pessoas que a acompanhavam na reunião do grupo de pesquisa Laboratório Urbano. A entrevista tinha sido marcada para logo após o encontro semanal da equipe, na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Mais tarde, ela explicou: tímida, não gostava de chamar atenção. Parecia acreditar muito mais na construção coletiva do que na projeção individual. Por isso, ainda enquanto era fotografada, fez um pedido: que fossem evitadas imagens em que ela parecia estar no alto. “Cria uma imagem inalcançável que não gosto”, explicou a arquiteta e urbanista de 52 anos.
Ela já tinha relutado a dar entrevista. Aceitou muito mais por um pedido da colega Ana Fernandes, professora e também parte desta lista de pesquisadores 1A da Ufba. O argumento de Ana foi certeiro: em um momento em que a produção científica das universidades públicas está em xeque, mais do que nunca, é preciso mostrar o que é feito ali. “Ana e Pasqualino (Magnavita) são grandes pesquisadores”, enfatizou.
Talvez esse episódio ajude a vislumbrar a visão de mundo da professora Paola, que está na Ufba desde 2002. Mais do que isso, talvez ajude a imaginar os motivos pelos quais ela se dedicou a estudar os espaços urbanos e a relação com os corpos.
“Sem dúvida alguma, o estudo das relações entre o corpo-sujeito – corpo ordinário, vivido, cotidiano – e cidade, pode nos mostrar alguns caminhos alternativos ao processo de espetacularização das cidades contemporâneas”, escreveu, em seu livro Elogio aos Errantes (Edufba), em 2010.
Na obra, defende que os estudos de urbanismo têm negligenciado relações entre o corpo e a cidade. “Os estudos, em sua maioria, ainda têm se concentrado na história das pedras”, publicou. Cita, no texto, autores que passaram anos acompanhando a evolução do concreto – muros, casas, ruas e praças. Por isso, os interesses eram outros: não apenas os espaços públicos, mas “os públicos dos espaços”.
Nascida no Rio de Janeiro (RJ), Paola logo passou a observar as paisagens da capital fluminense, sem deixar de refletir sobre as desigualdades que se escondiam ali. “Não lembro muito bem o motivo para eu ter escolhido Arquitetura”, diz ela, que começou a graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1986.
O curso era tão técnico que ela sentia falta justamente de discussões maiores; achava que a ausência de teorias da Arquitetura e do Urbanismo no currículo, de forma geral, ainda era forte. Mas essa sensação que lhe faltava algo a despertou a buscar a pesquisa. Começou como monitora, em disciplinas da graduação, mas era preciso ir além.
Quando se formou, decidiu buscar um curso fora do país. No Brasil, os programas de pós-graduação em sua área ainda eram escassos. Acabou fazendo todo o restante da formação acadêmica na França – especialização, mestrado e até o doutorado em História da Arte e da Arquitetura, concluído em Paris, em 1998.
A tese estudou justamente as favelas no Rio de Janeiro. Na época, a prefeitura da cidade tinha iniciado um programa de urbanização das então mais de 300 comunidades cariocas.
“Mas a maioria dos arquitetos e urbanistas responsáveis pelos projetos ignora o arranjo interno das favelas”, escreveu, na publicação.
No ano seguinte, retornou ao Brasil. Conseguiu uma bolsa de recém-doutor na UFRJ, onde ficaria pelos próximos três anos. Na mesma época, fez os dois primeiros de seus cinco cursos de pós-doutorado. Mas também foi nesse período que seus caminhos acabaram convergindo para Salvador.
Há cerca de 20 anos, a professora Paola participou de um encontro de pesquisadores da Arquitetura e Urbanismo, no Rio de Janeiro. Lá, estavam três professores da Ufba: Ana Fernandes, Marco Aurélio Filgueiras e Pasqualino Magnavita.
“Ana era a diretora da escola (Faufba), na época. Eu era professora na UFRJ, mas não era concursada e eles me falaram que ia ter concurso na Ufba. Aqui tinha um programa de pós-graduação já conhecido, com professores interessantes. A Ufba é muito mais próxima que a UFRJ, que é muito grande”, analisa.
O Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Ufba foi o primeiro da área no Nordeste e um dos primeiros do Brasil: o mestrado foi criado em 1983, após dois cursos de especialização; o doutorado, por sua vez, foi instituído em 1999.
Desde então, muitas de suas pesquisas são sobre Salvador.
“A gente tem essa questão cultural e musical muito forte em Salvador. Tem uma coisa muito vital no espaço público, uma presença corporal. Acho que a Avenida Sete, por exemplo, é um mundo. Tem essa vida aberta e pulsante”, enumera.
Ela não sabe, ao certo, quando se tornou bolsista de produtividade em pesquisa – provavelmente, há mais de 15 anos. A classificação para 1A, porém, veio na última renovação, vigente desde 2017. Para a professora Paola, mais do que um recurso, foi um reconhecimento de um órgão que tanto respeita.
“O CNPq tem uma gestão muito séria. Nesse momento, defender o CNPq é fundamental. Defender o CNPq, agora, é defender o país”, acredita.
O destaque da Ufba na Arquitetura e Urbanismo, para ela, vem da própria tradição do programa. Dos dez pesquisadores 1A na área, em todo o Brasil, três são da instituição. “Mas é um trabalho coletivo”, reforça, com o argumento que destacou algumas vezes ao longo da entrevista.
“O corpo docente é bem coeso, bem próximo e isso é muito bom”, completa.
Uma das duas únicas mulheres entre as pesquisadoras 1A da Ufba, a professora Paola relaciona com a própria Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur). De 1997 a 2015, por exemplo, apenas mulheres foram presidentes da entidade.
“A Anpur é muito matriarcal. Tem um lado muito feminino nessa área do planejamento urbano”, diz. Para ela, muitas mulheres lutaram para que a área fosse, hoje, menos machista e misógina – e a Anpur teria um papel fundamental nesse processo.
A primeira mulher a ser presidente da entidade, a professora Wrana Panizzi, ex-reitora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), assumiu em 1993, justamente após o mandato do notável geógrafo baiano Milton Santos. Aos poucos, o caminho foi sendo aberto para outras mulheres.
“Preciso reconhecer a coragem de todas essas mulheres fortes – arquitetas, urbanistas, sociólogas, geógrafas, etc – que foram presidentes da Anpur, o que sem dúvida possibilitou que nós hoje possamos estar onde estamos, sendo nacionalmente respeitadas como pesquisadoras. É preciso reconhecer historicamente essa luta feminina em nosso campo de saber”, diz a professora Paola.
Ela também não poupa elogios ao falar da colega Ana Fernandes, que chegou a ser uma das presidentes da associação, em 2005. “Ana, para mim, é uma referência. Não me coloco no mesmo patamar. Ela fez parte da minha banca para professor titular”, conta, referindo-se à seleção de 2018.
Assim como outros pesquisadores, ela não gosta de quantificar a produtividade. Acredita que o clima de competição atrapalha a vida acadêmica.
“Acho que (a publicação) é uma consequência de tornar público o que a gente faz com dinheiro público. E, no grupo, muitas publicações são, de fato, coletivas. Meu maior orgulho é quando os bolsistas de iniciação científica viram professores”, diz.
Durante a pandemia, o grupo Laboratório Urbano tem desenvolvido as pesquisas de forma remota. A situação não apenas impede que ela e os outros integrantes tenham acesso a acervos, arquivos públicos e bibliotecas como faz com que estejam fisicamente afastados do seu principal objeto, ao menos nas pesquisas de campo: a rua, os espaços públicos e a cidade.
“Mas as pesquisas continuam, estamos fechando a organização de um livro – da coleção ‘Nebulosas do Pensamento Urbanístico’, que sairá pela Edufba. É um esforço coletivo que reúne equipes de pesquisadores de diferentes universidades além da Ufba”, adianta a professora Paola, citando, ainda, a UFRJ, a UFRGS, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
O livro também é fruto de uma mesma pesquisa – Cronologia do Pensamento Urbanístico. Com essa pesquisa, participaram do Congresso Virtual da Ufba, promovido em maio, por duas semanas e com a participação de mais de 126 mil espectadores, de acordo com a instituição.
As reuniões de pesquisa têm acontecido de forma virtual, com foco justamente na situação atual. “Temos discutido várias questões correlatas à relação entre cidades e epidemias, relação esta que perpassa toda a história do urbanismo desde a emergência desta disciplina”, explica Paola.