É possível que você já tenha lido algo sobre a pesquisa do professor José Maria Landim. Referência nos estudos sobre erosão costeira, é comum que ele seja convidado a dar entrevistas sobre o tema. Mas a verdade é que o próprio Landim pouco lê o que é publicado a respeito dele.
Quando foi entrevistado pelo CORREIO para este especial, confessou: não tinha lido as últimas reportagens em que foi citado, a exemplo de quando o seu trabalho foi listado entre 10 pesquisas de excelência na Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 2019, ou quando, a partir de seus estudos, explicamos a erosão em cidades como Prado e Mucuri, que chegaram a decretar situação de emergência entre 2017 e 2018.
Não era por afetação, nem nenhum tipo de arrogância. Pelo contrário: em meio à timidez, o professor Landim não gosta de falar sobre si mesmo. No final da conversa, explicou que acredita que é sempre preciso ter humildade.
“A gente não deve nunca ficar se achando porque isso acaba afetando a sua percepção”, disse.
Professor do Instituto de Geociências da Ufba, ele é um dos três professores de sua unidade que é pesquisador com produtividade 1A pelo CNPq, o mais alto nível da pesquisa científica no órgão – ainda que o único na área de Oceanografia. Mas, para ele, ser classificado como alguém que desenvolve o mais alto nível de pesquisa em todo o país não tem “nada de excepcional”.
“A gente está conversando aqui. É uma coisa de outro mundo? Não, é uma coisa normal. Como dizem os filósofos lá, a única coisa que eu sei é que eu não sei nada”, reforçou, mais de uma vez. Em toda a carreira, já orientou mais de 100 pessoas. Só doutores foram 30. Com orgulho, sabe do paradeiro de alguns: muitos tornaram-se professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), das Universidades Federais de Minas Gerais (UFMG), Fluminense (UFF) e de Sergipe (UFS), além da própria Ufba.
Ele próprio foi parar na Geologia por acaso. Na juventude, os pais queriam que fizesse Engenharia. Do alto da revolta juvenil, na hora de se inscrever para o vestibular, porém, decidiu ir por um lado que não tivesse nada a ver com a Engenharia. Foi assim que, em 1974, entrou na Ufba.
Na graduação, começou a traçar o caminho da pesquisa. Primeiro, foi monitor da disciplina Geologia Geral. Em seguida, a professora Yeda Ferreira – que coordenara a criação do Igeo, pouco antes, em 1968 – fez um convite: queria que ele participasse do programa de iniciação científica.
“Entrar nesse programa foi uma grande motivação para mim. Eu comecei a me entrosar com a pesquisa e me motivou a fazer um mestrado aqui no Igeo”, lembrou o professor Landim, que concluiu o mestrado em 1983.
Antes mesmo da conclusão, ainda em 1980, já começara a ensinar na Ufba. Depois, por estímulo dos professores da instituição, fez doutorado pleno no exterior – na Universidade de Miami, nos Estados Unidos.
O foco na pesquisa guiou seus passos seguintes. Nunca fez um concurso para trabalhar fora da universidade, assim como nunca chegou a enviar um currículo para ser funcionário de empresas. A carreira esteve sempre ligada à Ufba – em 1999, tornou-se professor titular, que é o mais alto posto acadêmico.
O CNPq veio antes disso. Quando voltou do doutorado, em 1987, aplicou para ser pesquisador do órgão. Subindo os níveis, foi classificado como 1A em algum momento dos anos 2000. O nível não era seu objetivo. Na verdade, nem mesmo acreditava que um dia chegaria a ser pesquisador 1A.
“Eu achava que o que eu estava fazendo aqui era o que eu estava fazendo aqui e que, para chegar a 1A, precisaria de muita coisa. Mas fui surpreendido numa determinada situação em que fizeram a reclassificação dos pesquisadores. No final, é uma espécie de recompensa pela atividade que você desenvolve”, analisou.
Na Geologia, pesquisou muitas áreas. Trabalhou com Geologia e Geofísica Marinha, fez mapeamentos geológicos, orientou trabalhos de arqueologia, mapeamento ambiental e, com um colega, produziu a segunda edição do Mapa Geológico da Bahia. Depois, passou a enveredar pela Oceanografia.
Quando aplicou para o CNPq pela primeira vez, tentou uma bolsa na Geologia. Na época, contudo, seu projeto foi deslocado para a Oceanografia pelo comitê da área no CNPq. Hoje, é pesquisador 1A do comitê de Oceanografia.
“Eu me sinto bem atuando tanto na área de Ciências do Mar quanto na área de Geologia. O cara, para ser pesquisador, tem que ter uma curiosidade e ser uma pessoa obsessiva para ficar ali tentando resolver as questões que aparecem. Se você não tiver aquela obsessão, você não vai se aprofundar o suficiente”, reforçou.
Praticamente tudo em seu trabalho, de certa forma, está relacionado à compreensão da erosão costeira. Ultimamente, tem se dedicado ao trabalho com os deltas – a exemplo do delta do Rio São Francisco. Entender o que acontece na região de um delta – que é a foz formada por canais ou braços do leito do rio – é importante para conseguir avaliar a vulnerabilidade deles às mudanças climáticas.
“Todos os deltas do mundo estão sofrendo processo de erosão da linha de costa, inundação de planícies por dois fatores: intervenção humana e mudança no clima”, explicou o professor.
A intervenção humana vem, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial, quando milhares de barragens começam a ser construídas. Essas barragens acabam prendendo sedimentos ao longo do curso do rio, fazendo com que mais nada chegue à foz. Além disso, algumas delas foram construídas para regularizar vazão e garantir energia elétrica o dia inteiro. Só que isso também provoca alterações nos rios.
A erosão costeira interfere também na cultura e nas atividades humanas. A tendência é que as praias da Orla de Salvador, por exemplo, não tenham para onde migrar, com a subida do nível do mar. Muitas podem desaparecer por completo.
“Na maré alta, no Porto da Barra, não tem lugar para a pessoa ficar na areia. Como você vai resolver isso? Pode resolver criando uma alimentação de praia, identificando fontes de areia. A gente estuda para mapear essas fontes de areia”.
Desde 2012, ele é o coordenador do Instituto Nacional de Tecnologia (INCT) de Ambientes Marinhos Tropicais. O objetivo central do instituto, que reúne pesquisadores do Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Paraíba e Pernambuco, é avaliar como a heterogeneidade desses ambientes pode determinar a resposta deles às mudanças climáticas – e erosão costeira é justamente uma delas.
Aos 64 anos, já poderia estar aposentado da Ufba pelo tempo de serviço. No entanto, tem adiado. Colocou um prazo para si mesmo: daqui a menos de um ano, em 2021, quando completar 65 de idade. A sala de aula, explica, “cansa”.
“É por isso que o professor tem que aposentar mais cedo. Tudo isso é um desgaste. E você não desliga”.
Há alguns anos, o professor Landim criou o ‘kit aula’. É uma caixa em que guarda tudo que costuma usar com os alunos – mas tudo comprado do próprio bolso. É lá que guarda seu projetor, extensões, adaptadores de tomada e até pilhas para o controle dos aparelhos de ar-condicionado. Andava sempre com o kit, até a suspensão temporária das aulas da Ufba, devido à pandemia da covid-19.
“Se não tivessem essas coisas, seria uma maravilha. Mas, infelizmente, tem. Outro dia, eu estava dando aula no térreo e o ar-condicionado estava quebrado. Daqui a pouco, um cachorro começa a latir embaixo da janela. Latia, latia, não parava. E eu não conseguia dar aula”, contou.
Aos alunos, costuma dar um conselho: que conheçam as mais diferentes ideias. Às vezes, um estudante pode não ter interesse em uma disciplina ou outra, mas, lá na frente, garante, vai perceber que ter conhecido aquele tema vai torná-lo um profissional melhor.
Em troca, aprende outros aspectos com os alunos. Hoje, é comum se deparar com situações em que percebe que pensa diferente daqueles que têm a mesma idade. Vez ou outra, é adicionado em grupos de Whatsapp com colegas dos tempos de colégio, de ginásio. Nesses ambientes, nem sempre são pessoas que têm contato com as gerações mais jovens.
Resultado: as piadas são as mesmas, as ideias são as mesmas. Nesse bolo, estão incluídas piadas ou declarações machistas, homofóbicas, preconceituosas.
“Eles não percebem que determinadas atitudes não são mais toleráveis. O pessoal da minha geração ainda acha engraçado muita coisa que eu já não acho. Vejo com outros olhos, até porque os jovens de hoje nem entendem isso mais como piada. É isso que os alunos me dão de retorno”, disse o professor.
Por ano, a publicação de artigos e capítulos de livro é variável. Cada pesquisa pode chegar a demorar dois, três anos – o tempo de um mestrado, por exemplo.
Mas, para o professor Landim, esse tipo exigência é importante para a pesquisa. Quando um trabalho é submetido à publicação, ele passa pelo crivo de avaliadores internacionais. Recebe anotações e intervenções de cada um deles para, em seguida, ser editado ou até praticamente reescrito.
“Se não tiver isso, não te estimula ou não te faz crescer. Tem até uma frase de Santo Agostinho: ‘eu prefiro aqueles que me criticam, porque me corrigem, do que os que me elogiam, porque me corrompem’. A crítica é fundamental”.
Ele sabe que, por mais que muitos estudantes queiram desenvolver pesquisa, a maioria sonha com um bom emprego. Não é incomum – especialmente diante da falta de bolsas – que muitos decidam deixar a carreira de pesquisadores por uma oportunidade de emprego com salários mais altos.
Certa vez, conversava com um gerente de um hotel famoso de Salvador. Seu interlocutor não conseguia entender como ele dava aulas e fazia pesquisa – sem ganhar a mais por uma atividade ou outra. “Você faz pesquisa de graça?”, questionava.
Mas o professor Landim sabe que, ao longo de todos os anos na Ufba, trouxe ‘lucros’ à universidade que vão além do capital simbólico. Trouxe recursos, trouxe equipamentos que ficam para a universidade.
“Eu sempre fui obcecado nisso, de ir em frente. Por isso, tem várias coisas que eu pago do meu bolso. Se quebrou algo que não pode esperar, eu pago”, contou ele, pai de uma filha de 31 anos e de um garoto de 14 anos.
Nem as mudanças na rotina devido à quarentena mudaram esse perfil. Agora, de casa, enquanto cuida de afazeres domésticos, coordena a rotina de orientação de alunos por videoconferência, faz relatórios, propostas de projeto e mesmo reuniões virtuais com os órgãos colegiados da universidade.
“A única atividade que a gente fica impossibilitado é dar aulas presenciais, porque até a parte de manutenção do laboratório, tento ir uma vez por semana no Igeo ver se está tudo funcionando. Choveu muito no mês de maio e é impressionante como o mofo começa a cobrir tudo”, diz, preocupado com o trabalho de uma vida.
Para ele, é natural que pesquisadores sejam assim. Afinal, as perguntas não deixam de existir – as investigações continuam, seja qual for a área do conhecimento. No caso dele, essa sensação talvez seja ainda mais forte, ainda que não esteja na linha de frente das pesquisas sobre covid-19.
“Às vezes, alguma ressaca destrói um muro, um calçadão, ou algum outro fenômeno natural pode acontecer. Estamos numa situação de pandemia, mas nenhum desses fenômenos deixa de acontecer e a gente tem muitos dados que foram coletados e precisam ser interpretados e sistematizados”, explica.