Nos tempos da Escola Técnica, o jovem Sergio Ferreira começou a vislumbrar um futuro na área da Química. Ele, que, até então, sonhava em ser médico, passou a enxergar uma carreira como chefe de laboratório ou algo parecido. Na época, no início dos anos 1970, a carência por bacharéis em Química levava a salários altos e postos valorizados, no Polo Petroquímico de Camaçari e no Centro Industrial de Aratu (CIA).
“Por conta da idade, aquilo me chamava muita atenção. Durante todo o meu curso, tive vontade de ser um alto funcionário do Polo”, lembra ele, hoje com 64 anos.
Isso quase aconteceu. Começou a graduação na Universidade Federal da Bahia (Ufba) e chegou até a trabalhar como técnico em Química de forma simultânea. Mas a pesquisa entrou na sua rota. Depois que praticamente emendou o mestrado na graduação, não conseguiu mais deixá-la.
Hoje, é um dos pesquisadores da Ufba com produtividade 1A do CNPq – ou seja, está no nível mais alto da pesquisa científica segundo o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Professor do Instituto de Química desde 1982, ele ainda tem outra função diretamente ligada à produção científica: desde o início de março, ele é o pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação. Até o ano passado, ele era o coordenador de pós-graduação.
Mesmo que hoje ocupe um cargo na estrutura central da Ufba, o professor Sérgio já abdicou de oportunidades pela pesquisa. No Instituto de Química, onde é lotado, foi vice-diretor por um período. Pouco depois, apareceu a possibilidade de ser diretor. Abriu mão. Não quis tirar o foco da pesquisa.
Uma de suas maiores preocupações, até mesmo como coordenador dos cursos de pós, é de manter sua produtividade, ainda que a área de Química seja, em suas palavras, “disputadíssima”.
“Apesar de ter alguns cargos administrativos, vivi para ser pesquisador. Sempre tive foco na minha pesquisa. Acho que esse 1A é porque vivi muitos anos voltados para o meu laboratório”.
Com tanta determinação, não foi estranho quando ele viu o trabalho aumentar na quarentena, assim como alguns de seus colegas. Por vezes, começa a jornada às 8h e só para depois das 21h. A pesquisa experimental, conduzida em laboratórios, teve que ser interrompida. Mas, ao mesmo tempo, seminários, leituras, elaboração de projetos e exames de qualificação não pararam.
“Como trabalho com espectro analítica e experimentos com lentes de vidro, materiais muito suscetíveis, estamos preocupados com a umidade, que aumentou muito no último mês. Estou com medo de ter muito mofo nas coisas. Mas, na medida do possível, a gente vai tocando”, diz.
No Polo, nos tempos de estudante, encarava turnos de oito horas: das 8h às 16h, das 16h às 24h e da 0h às 8h. Dividia as jornadas com outros três técnicos de trabalho. Dois não estudavam; outro cursava Matemática.
Para dar conta das aulas, não era raro que tivesse que fazer trocas. Mas os colegas não facilitavam; até aceitavam as trocas de turno, mas da forma como lhes fosse mais conveniente. Mas garante: nunca teve mau humor.
“Trabalhei muito de meia-noite até 8h para chegar de manhã e seguir para a aula. Lembro que era muito difícil trabalhar a noite toda, mesmo com o salário lá em cima”, conta.
No fim da graduação, passou direto para o mestrado. Percebeu que seu negócio era mesmo ensinar e pesquisar.
Gostava de estar em bibliotecas e tinha uma sede grande por ler artigos. Publicou o primeiro em 1988. Era o início do doutorado, mas também uma época em que não havia nem a tradição, nem a cobrança que existe hoje. Não era professor e não estava associado a nenhuma agência. Simplesmente teve vontade de escrever. Foi lá e fez.
Como não tinha inglês fluente, teve dificuldades para colocar o trabalho sobre determinação de níquel em ligas de cobre no papel. Passou por todo o processo de submissão – bem mais caro e complexo do que é hoje, porque tudo era pelos Correios – para enviar o artigo à Escócia.
“Meu primeiro trabalho foi algo muito suado, numa revista que hoje é classificada como Qualis A1, a Talanta”, lembra.
As revistas acadêmicas são classificadas pela sua importância e relevância. O chamado Qualis A1 é justamente o nível mais alto. “O curioso desse artigo é que é o único artigo que eu tenho que eu publiquei sozinho, na vida inteira”.
Não foram poucas as vezes que tentaram desestimulá-lo.
“Claro que ouvi que não dava em nada. Sempre, sempre, sempre. Mas eu olhava muito os meus pares”, revela.
Na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, onde fez doutorado, se espelhava nos professores.
Na Bahia, colegas como o professor Jailson Andrade – outro dos pesquisadores com produtividade 1A – orientavam. Diziam para que ele publicasse artigos, que tentasse ser pesquisador do CNPq. Foi o professor Jailson, inclusive, quem o convocou para ajudar a Ufba. “A gente precisa de pesquisadores aqui”, disse, na época.
Ali, o doutorado em Química na Ufba começava a ser desenhado. Enquanto isso, desenvolvia a pesquisa em Química Analítica, passando por temas que iam desde a parte ambiental até a de alimentos e combustíveis. Formou tantos doutores que perdeu a conta – sabe que passam dos 40 (segundo o Lattes, 47). Muitos se tornaram professores da Ufba e das universidades estaduais baianas.
Nos últimos anos, tem se debruçado na quimiometria. O nome complicado é de uma disciplina que usa métodos estatísticos e matemáticos para planejar ou selecionar experimentos de forma otimizada para ter o máximo de informação química. É a partir da quimiometria que se modelam experimentos. Empresas industriais, por exemplo, recorrem a ela para otimizar procedimentos e gastar menos.
Uma vez, ouviu de um colega se era capaz de escrever um artigo em um ou dois dias. Respondeu que não. Para o professor Sérgio, os artigos são como uma aula. Assim, gosta de escrever de forma didática. Daí, vem a consequência: quanto mais um texto é didático, mais provável é de que ele receba citações.
“Os artigos são lidos à medida que tenho um cuidado. Não é simplesmente jogar lá. Você tem que vender o seu peixe de forma didática, porque quem pega um artigo geralmente é um estudante que quer aprender”.
Essa prática lhe deu uma vantagem. Quando a produção de artigos passou a ser cobrada pelas agências, já era uma realidade para o professor Sérgio. “Eu já estava dentro do jogo”, sintetiza.
Em 1993, recebeu a primeira classificação de produtividade do CNPq – a de nível 2. Para ele, o gás da idade ajudou. O nível 1A veio há mais de 10 anos, acompanhado de um alto índice de orientandos. Um requisito constante para os doutores formados por ele é de que todos tivessem, pelo menos, um artigo publicado.
O professor Sergio é um dos dois únicos pesquisadores negros entre os com classificação 1A na Ufba. No passado, quando entrou no Instituto de Química, conta, eram mais professores negros. Havia mais baianos – hoje, há também mais pesquisadores de outros estados e países.
“Minha situação foi um pouquinho mais favorecida pela orientação de meus pais de promover a educação dos filhos. Mas as oportunidades ainda são muito poucas e, na minha geração, foi muito pior”, lamentou.
Seu pai, que trabalhou como pedreiro e carteiro, foi o primeiro negro a entrar na Faculdade de Arquitetura da Ufba, em 1960. Com dificuldades para concluir, ao mesmo tempo em que trabalhava, se formou em 1969. Por anos, trabalhou construindo casas e apartamentos populares.
“Essa e outras coisas favoreceram a minha situação hoje, além de eu ter segurado com muita garra todas as oportunidades”.
Essa mesma dedicação é exigida de seus orientandos. Vez ou outra, quando um pensava em se candidatar para ser professor substituto, recebia um alerta. “Se você quiser, pode continuar, mas procure outro orientador”, dizia. Queria assiduidade. Sabia que, se o estudante trabalhasse em outra coisa ao mesmo tempo, não conseguiria se dedicar 100% à pesquisa.
“Durante um bom tempo, escolhi alunos que pudessem dar uma dedicação exclusiva ao laboratório. Isso facilitava porque trabalhávamos em conjunto”, explica.
Atualmente, porém, com as bolsas de mestrado e doutorado ficando cada vez mais escassas, ele admite que é difícil encontrar alunos que possam focar apenas na pesquisa, sem trabalhar.
Pela Ufba, diz que só tem gratidão.
“Mas reconheço que, sem meus estudantes, sem meus bons alunos, eu não seria um pesquisador 1A”.