Ação civil pública ainda espera por julgamento

Por Vitor Villar

Em 25 de novembro de 2007, sete pessoas perderam suas vidas na Fonte Nova com a velocidade de uma queda livre de 15 metros. Com a rapidez de uma notícia, outras tantas tiveram suas vidas arruinadas com a perda dos entes queridos. Uma década depois, no entanto, o cenário pouco mudou para as famílias das vítimas e sobreviventes. Eles ainda esperam pela Justiça, ainda que seja apenas na área cível. Isso porque na área criminal, cuja sentença foi determinada dois anos após a tragédia, todos os citados foram absolvidos.

O Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) é o responsável por duas ações civis públicas. A primeira delas, ajuizada ainda em 19 de janeiro de 2006, poderia ter evitado a tragédia. Tendo por base laudos da Vigilância Sanitária, solicitava a interdição do estádio por meio de liminar.

Demorou um ano e dez meses para que fosse apreciada pela 2ª Vara de Defesa do Consumidor. Dois dias depois do desabamento de parte da arquibancada, a juíza Lícia Fragoso Modesto declarou-se incapaz de julgar o pleito por uma questão técnica: a ação envolvia o Estado como réu, e por isso foi movida para a 8ª Vara de Fazenda Pública.

A ação permanece até hoje na 8ª Vara de Fazenda Pública sem uma sentença. Após a tragédia, recebeu novos adendos por parte do MP. Foram anexadas a ela laudos que, na visão dos promotores, comprovariam a negligência por parte da Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (Sudesb), mantenedora da Fonte Nova.

Com isso, a autora da ação, a promotora de Justiça do Consumidor Joseane Suzart, cobrava, além da interdição do estádio, uma indenização por parte da Sudesb aos familiares das vítimas e aos sobreviventes.

Com a interdição da Fonte Nova decretada pelo governo em 2007 e a demolição do estádio em 2010, a ação perdeu boa parte do seu objeto, mas segue cobrando que as pessoas sejam ressarcidas, pois entende que é preciso avaliar o que aconteceu à época.

Procurada, a Sudesb respondeu por meio de nota. O órgão citou um despacho do juiz Mário Soares Caymmi Gomes em 8 de agosto de 2016, no qual aponta que a ação perdeu objeto: “Tendo em vista fato público e notório que é a demolição e reconstrução da Fonte Nova, parece-me que houve perecimento do direito reclamado nesta ação. Isso porque os pedidos formulados pela autora, a representante do Ministério Público, parecem que já foram atendidos na nova configuração em que se apresenta o referido estádio”.

A Sudesb, porém, reconheceu que o MP pediu prosseguimento da ação em setembro de 2016 e ela segue em curso. No momento, espera um novo despacho do magistrado.


Segunda ação engloba FBF, CBF, Bahia e PM

A segunda ação civil pública, que também teve como autora Joseane Suzart, foi ajuizada poucos dias após a tragédia, em 6 de dezembro de 2007. Também distribuída para a 8ª Vara de Fazenda Pública, é outra que aguarda sentença na primeira instância.

Nesta, a exemplo da primeira ação, a promotora pede uma indenização às famílias das vítimas e sobreviventes. A diferença é que estende a responsabilidade à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), à Federação Bahiana de Futebol (FBF), ao Esporte Clube Bahia e à Polícia Militar “por entender que as entidades tinham conhecimento da situação precária da Fonte Nova e de forma negligente permitiram a realização de partidas de futebol no estádio”.

O processo já passou pela fase de defesa e encontra-se na fase de instrução, na qual o juiz pode solicitar novas provas e depoimentos antes de formatar a sua convicção. A última movimentação foi no dia 21 de setembro deste ano, justamente uma manifestação de Joseane Suzart para que o processo caminhasse.

Durante a elaboração desta reportagem, o CORREIO tentou repetidas vezes entrevistar a promotora Joseane Suzart. Porém, no dia e hora agendados para a entrevista, a autora das duas ações se recusou a receber a equipe e afirmou que estava transmitindo a tutela dos casos para outro promotor de Justiça do Consumidor, Olímpio Campinho. Este, por sua vez, alegou falta de familiaridade com o tema e informou que estava devolvendo o processo a Joseane Suzart.

Diante da recusa coletiva, o posicionamento do MP veio por meio de nota: “De acordo com a promotora Joseane Suzart, as ações não foram julgadas pelo Poder Judiciário mesmo após 25 petições pugnando pelo julgamento do feito. A instituição lamenta que, transcorrida uma década do episódio que marcou a história da Bahia, ceifou sete vidas e trouxe sequelas irreversíveis para diversas famílias, a sociedade não tenha obtido a resposta esperada”.

Na esfera criminal, todos absolvidos

A esfera criminal é até agora a única a ter chegado a uma sentença sobre a tragédia da Fonte Nova. E isso aconteceu com celeridade: em julho de 2010, dois anos e meio após o incidente, a Justiça absolveu de todas as acusações, já em segunda instância, o então diretor geral da Sudesb, Raimundo Nonato Tavares, o Bobô, e o então diretor de operações do órgão, Nilo dos Santos Júnior.

Mais uma vez, a denúncia partiu do Ministério Público. O então promotor e assessor especial criminal Nivaldo Aquino ficou encarregado de apurar o incidente. No dia 4 de março de 2008, ele ajuizou a ação criminal.

Bobô e Nilo Júnior foram denunciados pelos crimes de homicídio culposo – sem intenção de matar – e lesão corporal de natureza culposa. Na visão do promotor, não existia dúvidas da “imprudência e negligência” dos dois denunciados, que “inobservaram os deveres de cuidados alusivos à política de manutenção do equipamento desportivo”.

A ação teve como base o inquérito policial elaborado pela delegada Marilda Marcela da Luz, então vice-diretora do Departamento de Polícia Metropolitana (Depom). Além dos indícios que já constavam na ação civil pública do próprio MP, a investigação levou em conta os laudos elaborados pelo Departamento de Polícia Técnica (DPT) e pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA). Ambos foram conclusivos: a falta de manutenção levou à corrosão da estrutura metálica que sustentava as arquibancadas.

Em 14 de agosto de 2009, um ano e nove meses após o ajuizamento da denúncia do MP, o então juiz substituto da 10ª Vara Crime de Salvador, José Reginaldo Nogueira, absolveu Bobô e Nilo Júnior por falta de consistências nas provas.

O magistrado qualificou o ocorrido na Fonte Nova como “trágico acontecimento”. Foram palavras dele na sentença: “em tema de delito culposo, tem sido sempre entendido que a culpa deve ser provada acima de qualquer dúvida razoável, não se admitindo a sua demonstração por presunções ou ilações dedutivas, sendo, no caso em tela, incabível falar em culpabilidade em razão da prova produzida, que não evidenciou qualquer ato positivo dos réus que tenha contribuído para o fim trágico”.

Dois dias após a decisão, o MP entrou com recurso. O veredito também não demorou: no dia 15 de julho de 2010, a desembargadora Aidil Conceição, da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, manteve a decisão do colega de primeira instância.

Nilo dos Santos Júnior foi exonerado da Sudesb pouco após o incidente, em janeiro de 2008. Após a absolvição, o engenheiro deixou Salvador. O CORREIO buscou contato com ele, mas não obteve sucesso.

Delegada não indiciou Nilo Júnior porque ele alertou Bobô

Aposentada da Polícia Civil desde o final do ano passado, a delegada Marilda Marcela da Luz não esquece de alguns dos detalhes do inquérito que elaborou para a tragédia da Fonte Nova, o qual considera um dos casos mais emblemáticos da sua carreira.

Um deles é que, diferentemente do que foi ajuizado pelo Ministério Público, a delegada não indiciou Nilo Júnior por homicídio. A investigação concluiu que o engenheiro havia alertado a chefia da Sudesb dos riscos da Fonte Nova. “Ele possuía um documento, apresentado em depoimento, mostrando que havia solicitado a interdição. Concluí que dependia do superintendente tomar uma decisão dessas, não dele”, explica Marilda.

Outro detalhe é que, no inquérito, Bobô foi indiciado por homicídio “preterdoloso”. Assim é chamado um crime em que o autor, ao assumir uma conduta menos grave, mas sabendo dos riscos dela, acaba obtendo um resultado muito mais grave. Na ação do MP, o superintendente foi denunciado por homicídio culposo, sem intenção de cometê-lo.

“Entendi na época que a tragédia poderia ter sido evitada. O superintendente não quis matar ninguém, mas assumiu os riscos ao permitir que a Fonte Nova operasse sem condições para tanto”, argumenta Marilda.

Apesar das diferenças, os indícios levantados pela investigação foram a base da ação criminal. Ela cita alguns: “Tomei conhecimento de que a Fonte Nova estava parcialmente interditada e que o anel superior havia sido liberado há pouco tempo”, recorda.

“Houve uma reunião em que o MP solicitou à Sudesb que fossem realizadas algumas adequações antes que a Fonte Nova voltasse a funcionar em sua capacidade máxima. Eles fizeram a liberação do estádio sem ter cumprido essas recomendações em sua totalidade e sem ter ajustado isso com o MP”, completa a ex-delegada.

Outro indício foi um laudo emitido pela empresa de engenharia Geluz, contratada em 2006 para avaliar o estádio, que alertou para a necessidade de obras emergenciais: “A Fonte Nova deveria ter passado por reforma no governo anterior. A reforma não foi feita por aquele governo, nem pelo governo que assumiu (em 2007, ano da tragédia)”. Ainda hoje, a delegada conta que se sente segura da conclusão do inquérito. “Foi um trabalho completo. O nosso trabalho é reunir provas. E aí posso te garantir que a autoria estava determinada e a prova da materialidade também. Estava tudo no inquérito, isso com certeza absoluta”, afirma.

Marilda diz que compreende o desfecho do caso: “Depois que o delegado cumpre seu papel investigativo, a decisão final de concordar ou não com o inquérito fica a cargo da Justiça. O MP e o Judiciário têm total liberdade de não concordar com o delegado. Até porque nesse ínterim existem as sustentações dos advogados e as ponderações do juiz”.

O que de fato foi garantido às vítimas

Ainda que as ações civis públicas continuem aguardando sentença, isso não significa que as famílias deixaram de ser indenizadas, em certa parte, pelo Estado. Em 22 de dezembro de 2007, pouco menos de um mês após a tragédia, o então governador Jaques Wagner assinou a Lei Estadual Nº 10.954, que prevê o pagamento de uma pensão mensal aos dependentes das vítimas fatais e aos inválidos.

O Governo do Estado afirmou que atualmente 14 pessoas recebem o benefício. São elas pais, cônjuges e filhos das vítimas fatais, já que não houve inválidos. O valor da pensão corresponde à renda mensal da vítima na época do óbito, sendo assegurado pelo menos um salário mínimo – que atualmente é de R$ 937,00 –, a ser dividido entre todos os dependentes. Os familiares contatados pelo CORREIO confirmaram o pagamento.

Os filhos das vítimas terão direito à pensão até completarem 21 anos de idade ou quando se emanciparem. Já os pais terão o benefício cancelado quando chegarem a 76 anos para as mulheres e 68 anos para os homens. Este prazo considera a expectativa de vida média do brasileiro, segundo o IBGE.

Além disso, foi colocado à disposição das familiares um seguro adquirido na compra do ingresso para aquela partida Bahia x Vila Nova. Calculada sobre o preço da entrada para o jogo – R$ 10 na época –, foi determinada uma indenização de R$ 25 mil para as vítimas fatais e outros valores para os sobreviventes, a depender do caso.

Diretor executivo da seguradora Excelsior, que ficou encarregada do pagamento, Nelson Uzêda orgulha-se de todos os familiares e de um sobrevivente terem recebido a quantia. “Eram pessoas realmente necessitadas e o mínimo que a gente podia fazer era garantir o direito delas. Dinheiro nenhum vai substituir a perda de um ente querido, mas pelo menos foi um amparo”.

O sobrevivente neste caso foi Jader Landerson Santos Azevedo, um dos que caíram pela cratera aberta na arquibancada. De acordo com a seguradora, o laudo médico constatou invalidez parcial, dando-lhe direito a R$ 7,5 mil - menos de um terço do seguro total.

“Recebi a visita de muitas pessoas tentando se aproveitar do seguro. Diziam que haviam se machucado no estádio, mas sem qualquer comprovação. Outras apareceram dizendo serem companheiras das vítimas. Só liberamos depois de pelo menos uma certidão de união estável. Por isso, em alguns casos, a indenização demorou”, explica Uzêda.

O valor de R$ 25 mil foi dividido entre os pais, cônjuges e filhos das vítimas fatais. Os menores de idade só terão acesso ao dinheiro quando completarem 18 anos. “Está numa poupança aguardando por eles. Tomamos essa precaução para evitar que terceiros se aproveitem do benefício”, afirma o diretor.

A busca individual por justiça

Para além das ações civis públicas, alguns familiares das vítimas e sobreviventes acionaram a Justiça por meio de ações individuais. O CORREIO encontrou dois casos destes, ambos envolvendo sobreviventes da tragédia.

Em 15 de janeiro de 2008, Jader Landerson Santos Azevedo entrou com uma ação indenizatória por meio da Defensoria Pública contra a Sudesb e a CBF. Ela foi alocada na 5ª Vara de Fazenda Pública e segue sem uma sentença em primeira instância.

O processo encontra-se atualmente nas mãos do advogado da CBF, Fábio Periandro de Almeida Hirsch, para que apresente defesa. O CORREIO procurou a Defensoria Pública do Estado da Bahia, mas não conseguiu entrevista. “A última audiência foi há quatro anos, o juiz disse que ia reler o processo e depois ia marcar outra audiência. Não teve mais nada até agora”, reclama Jader Landerson.

Em 17 de julho de 2009, Patrícia Vasques Palmeira, outra sobrevivente da queda, ajuizou uma ação indenizatória contra o Estado por meio de um advogado particular. Seu defensor, Carlos Alberto Fonseca Bastos, explicou que o processo já obteve um despacho em segunda instância e agora está em fase de recurso.

Segundo Bastos, o Judiciário considerou o processo inviável por ter sido movido contra o Estado, quando a matéria trata especificamente da Sudesb. O advogado afirmou que vai recorrer ainda neste ano, mudando o alvo da ação.