"Naquele momento, eu falei com o gestor da Sudesb, que era Bobô, e para quem estava na sala junto, que a gente não dormiria tranquilo liberando o anel superior para o público. A situação era calamitosa. Não somente nesse lugar onde aconteceu o acidente, mas em outros lugares o piso estava rachado, com ferragens expostas".
Carl Von Hauenschild, arquiteto que elaborou um relatório apontando a Fonte Nova como o pior estádio do Brasil, três semanas antes da tragédia
Por Gabriel Rodrigues e Vitor Villar
Não foi por falta de aviso
A tragédia que matou sete pessoas na partida entre Bahia e Vila Nova, válida pelo octogonal final da Série C de 2007, foi precedida por uma sequência de alertas emitidos por órgãos públicos e autoridades. Todos tiveram como destinatária a Superintendência de Desportos do Estado da Bahia (Sudesb), responsável pela gestão e manutenção do estádio.
Em 19 de janeiro de 2006, o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), através da promotora de Jusiça do Consumidor, Joseane Suzart, ajuizou uma ação civil pública, com pedido de liminar, para impedir o uso da Fonte Nova. A medida foi tomada após laudos emitidos pela Vigilância Sanitária e pelo Corpo de Bombeiros, alertando para a condição precária nas instalações físicas dos sanitários, lanchonetes e arquibancadas.
Um trecho de um laudo emitido pela Vigilância Sanitária ainda em 25 de agosto de 2005, e anexado à ação civil pública, chama a atenção: “a Fonte Nova apresenta em toda a sua extensão áreas com ferragem exposta, tubulações enferrujadas, piso irregular e sem revestimento em alguns setores, além de infiltrações”.
A ação, que teve como alvo a Sudesb e o Bahia, mandante de jogos no estádio, foi distribuída para a 2ª Vara Especializada de Defesa do Consumidor e ficou um ano e 11 meses sem ser apreciada pela Justiça.
Em setembro de 2006, a Sudesb, na reta final da gestão do superintendente Marcus Cavalcanti e do governador Paulo Souto, encomendou da empresa de engenharia Geluz um relatório sobre a condição estrutural da Fonte Nova.
O laudo destacou os danos causados pela oxidação e alertou para a necessidade de intervenções com urgência: “mediante o atual estado em que se encontram os elementos estruturais, recomendamos que [...] sejam efetuadas intervenções de recuperação estrutural em caráter de urgência [...] principalmente em relação ao possível colapso dos mesmos”.
O relatório da Geluz trazia ainda um orçamento das obras, estimando um gasto de R$ 3,6 milhões apenas com as intervenções mais emergenciais. Ao final, o custo de todo o processo para recuperar a estrutura ultrapassaria os R$ 11 milhões.
Um comunicado interno da Sudesb, datado de 10 de janeiro de 2007 – poucos dias após Raimundo Nonato Tavares, o Bobô, tomar posse como superintendente da autarquia sob o governo de Jaques Wagner -, mostra que o diretor de operações Nilo dos Santos Júnior avisou ao ex-jogador da necessidade das obras orçadas pela gestão anterior. Diz o documento: “o estádio necessitaria de reparos urgentes na estrutura e nas acomodações de arquibancadas, tendo em vista que as mesmas não reuniam condições de uso, em razão do estado deplorável em que se encontra em alguns trechos”.
Em uma investigação posterior, o MP entendeu que a Sudesb utilizou de maneira equivocada a verba disponível de R$ 1,6 milhão ao realizar “obras de fachada” e “paliativas” no estádio. Por causa disso, os promotores Rita Tourinho e Adriano Assis entraram com ação por improbidade administrativa contra Bobô e Nilo dos Santos Júnior. Segundo nota enviada pelo MP ao CORREIO no dia 21 de novembro deste ano, a ação ainda espera julgamento na 5ª Vara de Fazenda Pública.
Alerta no âmbito esportivo
No dia 28 de outubro de 2006, um outro problema chamou a atenção das condições da Fonte Nova. Na partida entre Bahia e Ipatinga, pelo octogonal final da Série C, torcedores invadiram o gramado da Fonte Nova. Pedras foram retiradas das arquibancadas e lançadas ao gramado, transformando o campo de jogo em um campo de batalha. A partida foi suspensa pelo árbitro Antônio Hora Filho por questões de segurança.
Como decorrência dos problemas apresentados, três dias depois o então presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), Rubens Approbato Machado, interditou preventivamente a Fonte Nova. A situação foi enquadrada nos artigos 211 - deixar de manter o local com infra-estrutura necessária a assegurar plena garantia e segurança para sua realização -, e 213 - deixar de tomar providências capazes de prevenir e reprimir desordens em sua praça de desporto - do Código Brasileiro de Justiça Desportiva.
O Bahia também foi punido com a perda de oito mandos de campo e multa de R$ 140 mil. O clube recorreu da decisão e a multa caiu para R$ 50 mil e os mandos de campo perdidos para seis.
Capacidade ampliada às vésperas de Ba-Vis
A Fonte Nova iniciou as atividades no Campeonato Baiano de 2007 com capacidade reduzida a 25 mil espectadores e o anel superior interditado. A justificativa da Sudesb para a redução foi a realização de obras no local. Dias antes do primeiro clássico Ba-Vi da temporada, realizado no dia 11 de março, parte do anel superior foi liberada e a capacidade do estádio subiu para 45 mil pessoas.
A medida da Sudesb foi repetida antes de outro Ba-Vi, dessa vez pela fase final do estadual. Em 22 de abril, o anel superior foi completamente liberado para o que seria o último clássico do ano, e a capacidade de 60 mil pessoas acabou restabelecida. Aquele jogo, vencido pelo Vitória por 6x5, ficou marcado pelos quatro gols do rubro-negro Índio e por ter sido o último Ba-Vi disputado na antiga Fonte Nova.
À época, a reportagem do CORREIO identificou através do portal Transparência Bahia – em que são publicados todos os gastos do governo – duas obras realizadas pela Sudesb na Fonte Nova. Ambos os serviços, descritos como “manutenção de concreto”, custaram R$ 49 mil cada.
Para o arquiteto Carl Von Hauenschild, a decisão da Sudesb em liberar o anel superior foi equivocada. Carl foi responsável pela elaboração de um relatório do Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco), que apontou a Fonte Nova como o pior estádio entre 29 avaliados no Brasil. O documento foi produzido visando a realização da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, e divulgado três semanas antes da tragédia no estádio baiano.
“O problema do acidente não foram os pilares, nem a vibração em cima da estrutura principal do estádio. O problema foram as coberturas, as lajes finas dos assentos, que não foram impermeabilizadas. Em um jogo de futebol você tem cerveja, refrigerante, até urina, elementos que corroem as ferragens. Se eles não são pintados constantemente para reduzir a corrosão, isso vai gerando uma redução das ferragens desses assentos. Foi isso que a gente observou na nossa visitação”, lembra Carl, dez anos depois.
Segundo o arquiteto, Bobô foi avisado dos problemas após a visitação. Também lhe teria sido recomendado não liberar o anel superior.
“Na nossa pesquisa nós atestamos o estado lastimável do estádio, principalmente do anel superior, e, naquele momento, eu falei com o gestor da Sudesb, que era Bobô, e para quem estava na sala junto, que a gente não dormiria tranquilo liberando o anel superior para o público. A situação era calamitosa. Não somente nesse lugar onde aconteceu o acidente, mas em outros lugares o piso estava rachado, com ferragens expostas”, afirma Carl. À época da tragédia, Bobô disse ao CORREIO que não tinha conhecimento do relatório.