“Deus me livre daquilo. Eu, quando passo, nem olho. Não gosto nem de olhar para aquele lugar. Eu não gostava de futebol, agora tenho pavor. Ele era o único da família que ia para jogos"

Gleice Marques, irmã de Anísio, sobre voltar à Fonte Nova

 

Por Fernanda Varela e Gabriel Rodrigues

Sonho interrompido


Todos os dias Gleice lembra do irmão. Basta abrir a porta da casa onde mora com a mãe, na Fazenda Grande do Retiro, que ela se depara com os sonhos que ficaram para trás. Gleice é irmã de Anísio Marques Neto, um dos sete mortos na tragédia ocorrida na Fonte Nova, no dia 25 de novembro de 2007. Então com 27 anos, ele caiu de uma altura de cerca de 15 metros quando parte da arquibancada superior do estádio cedeu e morreu na hora.

Gleice mora em um terreno que tem mais de uma casa. Uma delas começou a ser construída por Anísio, mas não deu tempo de ficar pronta. Dez anos depois, um outro irmão ocupa o imóvel, que ainda está em construção.

“O sonho dele era ajudar a mãe, terminar de construir a casa dela e dele. Ele começou a fazer ali, ó”, diz ela, apontando para a casa branca na parte superior de um dos imóveis. “Começou e não terminou. Passamos para outro irmão, que ainda está tentando construir lá. Mainha também segue tentando ajeitar a casinha dela”, conta Gleice, desviando o olhar.

 

Com um alicate na mão, ela ajeitava as unhas na calçada quando foi abordada pelo CORREIO, que procurava parentes das vítimas. De primeira, não se identificou, mas o semblante de incômodo a denunciou. Indicou a casa de Djalma, uma outra vítima cuja família se recusou a falar. Na sequência, Gleice finalmente revelou quem era.

Ela não permitiu ser fotografada, mas abriu o portão de casa, acarinhou um dos cães e se ajeitou no braço de um dos sofás da sala. Enfim, decidiu falar de Anísio. O olhar muitas vezes perdido denunciava que o tema ainda incomoda. Ao relembrar o dia da morte do irmão, demonstrou desconforto.

“Foi horrível. Ele ia sempre para o estádio. Na época, eu não morava nesta casa. Morava na Santa Mônica. Quando cheguei aqui, já soube logo da notícia. Ficou todo mundo desesperado”, lembra. A notícia deixou a vizinhança confusa.

“O povo chegou falando. A gente ouviu na hora, quando ligou o rádio e a televisão. Ninguém quis acreditar. O pessoal ficou sem entender, porque o nome dele é Anísio, mas todo mundo conhecia como Júnior. Depois que descobriram que era ele. Mas a família soube logo. Quando ouvimos o nome dos mortos, tivemos noção que era ele. Meu irmão foi até lá (na Fonte Nova), mas já tinham levado ele para o IML. Todo mundo ficou muito abalado”.

Gleice fala baixinho. Quando o assunto é a Fonte Nova, a garganta dá um nó e a voz fica quase imperceptível. O local é sinônimo de muita dor para a família.

“Deus me livre daquilo. Eu, quando passo, nem olho. Não gosto nem de olhar para aquele lugar. Eu não gostava de futebol, agora tenho pavor. Ele era o único da família que ia para jogos. Tem outros irmãos que são Bahia, mas ele que era fanático. Meu sentimento em relação a isso tudo é desgosto. Não gosto nem de lembrar. É muito difícil. Dá vontade de chorar. Ninguém na família fala sobre isso”, revela. “Só lembro da cena que passou na televisão, com os corpos. Vi meu irmão ali caído. Ele morreu na hora. Foi o momento mais difícil, assim como o dia que vimos ele no caixão”.

Segundo Gleice, uma das que mais sofrem com a ausência é a mãe de Anísio, Maria Neusa.

 
“Mainha está sobrevivendo, né? Ela não fala sobre isso. É tudo muito pesado. A maior dor é que ninguém foi culpado, foi todo mundo inocentado. É uma impunidade que causa revolta, difícil de aceitar”.

Gleice Marques, irmã de Anísio

 

Mas nem toda lembrança é cercada de dor. Ela finalmente sorriu quando lembrou da parceria com o irmão. “A gente bebia junto, conversava. Ele sempre me acompanhava, ficava comigo quando eu estava fazendo as unhas. Me ajudou muito com meus filhos também. Rezo sempre por ele”, lembra com carinho.

Filho de uma família de sete irmãos, Anísio deixou outros sonhos para trás, como o de ver os três filhos crescerem. Hoje, os garotos têm 10, 14 e 16 anos. “Ele não teve nem tempo de registrar o filho, que era recém-nascido. A mãe, coitada, passou por toda a burocracia para registrar o menino. Todos tiveram que fazer exame de DNA para provar que eram filhos, por causa da pensão”, explica.

A pensão a que ela se refere foi estabelecida no decreto 11.016/2008, pelo então governador Jaques Wagner, e é igual à renda mensal recebida pela vítima na data do óbito, assegurado valor não inferior ao do salário mínimo (atualmente R$ 937).