“Não tínhamos noção durante o jogo da catástrofe que tinha ocorrido na arquibancada, havido mortes e alguns feridos. Eu tenho até uma pequena noção de que poderia ter sido pior caso o gol que Nonato perdeu de pênalti tivesse sido efetivado, porque haveria muito mais vibração"

Arturzinho, técnico do Bahia na ocasião

Por Daniela Leone

Em campo, um jogo de compadres


“Na hora que houve o desabamento, se ouviu um barulho no estádio, aquele grito da torcida, e, dentro de campo, não havia nenhum lance de perigo de gol, expulsão, nada que justificasse aquele clamor”. De dentro das quatro linhas, Antônio Hora Filho garante ter escutado o momento da tragédia. “Lembro claramente que eu olhei para a arquibancada na direção dos gritos para tentar identificar alguma coisa, se era uma briga ou uma confusão, mas a Fonte Nova estava tão lotada que, quem estava em campo, não conseguiu ver nenhum clarão na hora que a arquibancada caiu. Não houve nenhuma paralisação e o jogo continuou até o final”.

Melhor posicionado, o narrador Silvio Mendes viu por volta dos 35 minutos do segundo tempo o que os olhos do árbitro Antônio Hora Filho não conseguiram enxergar a partir do gramado. “De repente, vi aquele corre-corre e não entendi. Eu estava narrando o jogo quando perguntei ‘o que é que está acontecendo na Bamor?’. Eu não sabia que tinha aberto um buraco e que pessoas tinham caído lá embaixo. Eu pensava que era confusão, briga. Era costume dentro da própria organizada ter confusão entre eles”, recorda o radialista, aos 71 anos.

Naquele 25 de novembro de 2007, Silvio estava narrando ao vivo o jogo entre Bahia e Vila Nova-GO para a Rádio Sociedade nas cabines de imprensa, que, no antigo estádio, eram posicionadas no anel superior, em frente ao local onde ocorreu o acidente.

Ainda sem respostas, Silvio seguiu a jornada esportiva com os acontecimentos de dentro das quatro linhas. Àquela altura, a partida já não estava tão interessante. Cientes de que o empate dava o acesso à Série B do Campeonato Brasileiro às duas equipes, jogadores de Bahia e Vila Nova tocavam a bola sem muitas investidas.

“Estavam acontecendo simultaneamente outros jogos que a combinação de resultados influenciaria o acesso dos dois clubes. Em determinado momento, eu vi Túlio se aproximar de um jogador do Bahia e os dois começaram a cochichar”, relata o agora ex-árbitro Antônio Hora Filho. “Achei estranho em um jogo tenso como aquele, de classificação, dois jogadores adversários ficarem muito tempo conversando. Quando o jogo foi reiniciado, percebia-se claramente que o Bahia, quando estava com a bola, não tentava ir para o ataque, ficava tocando bola, gastando tempo, e, quando a bola era recuperada pelo Vila Nova, eles adotavam a mesma postura”.

Centroavante e capitão do Vila Nova na época, Túlio Maravilha confirma o acerto em campo no finalzinho do jogo. “Foi passando o tempo e a gente soube que pelos resultados o empate favorecia as duas equipes. Então, já que já estava quase no final, pra que arriscar, né? A gente sempre estava batendo um papo e dizendo ‘o resultado é bom para os dois, não vamos arriscar tanto’. Nada programado para empatar não, só aquela questão de administrar o resultado”, afirma o ex-jogador.

A ordem para garantir o empate também partiu da beira do campo. “Lembro que eu passei o recado para os jogadores: ‘o empate nos classifica, nos bota na Série B, então, se eles não querem mais jogar, a gente fica tocando bola aqui atrás e eles ficam lá no campo deles’. Lembro que o recado chegou no campo, ficamos tocando a bola e o Vila Nova já não vinha mais pra cima”, conta Arturzinho, técnico do Bahia na ocasião.

Até então, o elenco tricolor nem fazia ideia do que havia ocorrido com quem o aplaudia. “Não tínhamos noção durante o jogo da catástrofe que tinha ocorrido na arquibancada, havido mortes e alguns feridos. Eu tenho até uma pequena noção de que poderia ter sido pior caso o gol que Nonato perdeu de pênalti tivesse sido efetivado, porque haveria muito mais vibração, o público ficaria muito mais exaltado e poderia ter sido pior”, especula Arturzinho.

“Na hora que houve o desabamento, se ouviu um barulho no estádio, aquele grito da torcida, e, dentro de campo, não havia nenhum lance de perigo de gol, expulsão, nada que justificasse aquele clamor. Eu olhei para a arquibancada na direção dos gritos para tentar identificar alguma coisa, mas a Fonte Nova estava tão lotada que, quem estava em campo, não conseguiu ver nenhum clarão na hora que a arquibancada caiu”

Antônio Hora Filho, árbitro da partida

“Foi passando o tempo e a gente soube que pelos resultados o empate favorecia as duas equipes. Então, já que já estava quase no final, pra que arriscar, né? A gente sempre estava batendo um papo e dizendo ‘o resultado é bom para os dois, não vamos arriscar tanto’"

Túlio Maravilha, atacante do Vila Nova naquele jogo

 

O uniforme de um tempo só


O pênalti perdido pelo ídolo Nonato no primeiro tempo motivou a troca do terceiro uniforme, lançado naquele dia, para o tradicional tricolor, no intervalo do jogo. Com o objetivo de celebrar o acesso, a camisa azul e dourada, usada por apenas 45 minutos, nunca mais foi vista em campo. “Eu lembro que estávamos estreando um uniforme, praticamente todo azul. Nonato perdeu o pênalti, os jogadores chegaram no vestiário já reclamando e nós pedimos para que providenciassem outro material, porque aquele não estava dando sorte”, revela Arturzinho. “O cara que disser que não tem superstição no futebol está mentindo”.

Mesmo com outro manto, o Bahia não conseguiu balançar a rede no segundo tempo. O narrador Silvio Mendes ficou com o grito de gol preso na garganta durante o empate em 0x0 e precisou driblar a emoção para manter o gogó firme em um pós-jogo que marcou seus 49 anos de carreira. Torcedor declarado de Ypiranga e Vitória, Silvio não estava comovido com o fim do calvário tricolor na Série C, mas as notícias que precisou sustentar após o apito final fizeram ele ter vontade de se calar.

“Quando o repórter apurou, veio com a notícia da queda de uma parte da arquibancada. Ele já estava falando do lado de fora do estádio, onde o fato tinha mais repercussão. Levei a transmissão apenas por uma questão profissional, mas ela foi pra cucuia. Me deixou perplexo e triste. Aquilo marcou minha vida profissional. Pra mim continua viva aquela imagem das pessoas correndo pra lá e pra cá. Eu não vi as pessoas caindo, mas vi as pessoas correndo, tentando não ser mais uma vítima daquela tragédia”, recorda Silvio Mendes, hoje integrante da equipe de esportes da Rádio Metrópole.

Sete tricolores não conseguiram escapar com vida. A partida entre Bahia e Vila Nova-GO foi a última vista por Márcia Santos Cruz, 27 anos; Jadson Celestino Araújo Silva, 25 anos; Milena Vasques Palmeira, 27 anos; Djalma Lima Santos, 31 anos; Anísio Marques Neto, 27 anos; Midiã Andrade Santos, 24 anos, e Joselito Lima Júnior, 26 anos. Pouco tempo depois do final da partida, Tony Carneiro, repórter ao qual Silvio Mendes se refere, esteve no local onde eles caíram.

“Vi o pessoal correndo para o lado do Balbininho e, quando eu cheguei lá, já estava uma aglomeração muito grande de gente chorando e gritando. De repórter, eu fui o primeiro a chegar. Meu microfone até falhou na primeira vez que fui entrar no ar, mas depois comecei a registrar o que tinha acontecido”. Ver tanto sofrimento de perto não foi um trabalho fácil. “Eu desabei. Já tinha passado por invasão de torcida, pedrada, mas nunca presenciado uma tragédia daquela. Na hora passou um bocado de coisa pela minha cabeça. Tive que parar várias vezes a transmissão. Foi um pânico. Eu passei três dias dormindo e sonhando com isso”, relata Tony.


 

'Aquele dia eu decidi que ia parar precocemente'


Foi através do rádio, no caminho para o hotel, que Antônio Hora Filho soube da tragédia ocorrida no estádio onde tinha acabado de trabalhar. “Quando acaba o jogo, o árbitro se tranca no vestiário, fica incomunicável. Durante o percurso eu ouvi aquilo no rádio e confesso que me emocionei muito, fui às lágrimas. Eu passo a imagem de uma pessoa severa, disciplinadora, casca grossa, mas no fundo, no fundo, sou muito emotivo. Senti uma angústia muito grande. Me senti parte daquela tragédia, das famílias daquelas pessoas. Cheguei no hotel e não consegui dormir”.

O episódio marcou a carreira do sergipano nascido em Propriá. O silêncio brotado ali incentivou o apito de Antônio Hora Filho a calar para sempre mais cedo. “Aquele dia foi o primeiro que eu decidi que iria parar de apitar precocemente. Me senti impotente. Eu era o árbitro e não fiz nada para evitar a tragédia. São sentimentos que a gente não sabe explicar. Eu me abati muito naquele evento. Daquele dia pra frente, me desanimei na arbitragem e acabei parando precocemente. Interrompi minha carreira três anos antes do limite e muito se deve ao trauma causado por aquela tragédia na Fonte Nova”, afirma o atual secretário do Esporte, Lazer e Juventude de Sergipe. Ele se aposentou da arbitragem em 2012, aos 42 anos. Na época, a CBF permitia que os árbitros apitassem até os 45 anos. Este ano, a entidade ampliou o limite para 50 anos.

Assim como Antônio Hora Filho, outros profissionais da bola só tiveram conhecimento do ocorrido muito tempo depois do apito final. Festejado pelos torcedores que invadiram o gramado da Fonte Nova quando o jogo acabou, o atacante Nonato teve o uniforme arrancado e desceu o túnel de acesso aos chuveiros apenas de cueca, mas só perdeu o bom humor ao saber do desabamento.

“Já tinha acontecido a tragédia, mas dentro de campo a gente não sabia de nada, como a maioria dos torcedores que estavam do outro lado da arquibancada. Quando a gente chegou no vestiário, que estávamos lá todos comemorando, chegou alguém, não me recordo quem, e falou o que tinha ocorrido”, recorda o artilheiro do time na Série C de 2007, com 19 gols. Só Túlio marcou mais vezes: 27.

O técnico Arturzinho também lembra do momento em que receberam a notícia. “Na mesma hora nós paramos a comemoração e virou uma tristeza muito grande o vestiário, apesar da classificação. Algo tão esperado para o torcedor do Bahia foi um dia de tristeza, porque perdemos torcedores que estavam lá para brindar a classificação e infelizmente perderam vidas. Isso fez com que nós não pudéssemos comemorar”.

O carnaval tricolor preparado para animar o entorno do Dique do Tororó foi cancelado. O trio elétrico que aguardava o time chegou a tocar, mas foi silenciado para dar voz à tragédia. “Era o jogo do acesso, decisivo, e a gente com certeza iria comemorar muito. Pelo segundo ano o Bahia estava disputando a Série C e iria ser uma festa muito grande, mas infelizmente ocorreu essa tragédia e não aconteceu a comemoração da forma que era esperada”, lamenta Nonato. “Até hoje a gente fica comovido, com uma sensação estranha, porque era pra estar comemorando uma coisa, mas por outro lado você fica muito triste porque foram torcedores que acabaram perdendo a vida”, afirma o então capitão do Bahia, Émerson Cris.

Nonato, Túlio Maravilha, Émerson Cris, Arturzinho, Silvio Mendes, Tony Carneiro e Antônio Hora Filho são coadjuvantes entre tantos outros personagens de um dia em que a dor tomou o posto de protagonista e produziu um silêncio que já dura 10 anos. A pontaria de Nonato e Túlio, a braçadeira de Émerson Cris, a prancheta de Arturzinho, os microfones de Silvio e Tony e o apito de Antônio Hora Filho seguem se entrelaçando para contar os detalhes daquele 25 de novembro de 2007.