"Eu nunca tinha ido na Fonte Nova. Sempre senti como se fosse um obstáculo, uma barreira na minha vida. Eu precisava superar isso. Quando entrei lá, lembrei na hora da minha mãe. Chorei muito, não consegui conter a emoção, mas aí pensei: ‘poxa, ela estava aqui, mas estava feliz’. Eu também tinha que estar feliz. Foi muito difícil, mas aos pouquinhos foi passando. A torcida é o melhor".

Karen Andrade, 15 anos, conheceu a Fonte Nova no último dia 5, quase dez anos após a morte de sua mãe, Midiã

 
Por Fernanda Varela e Gabriel Rodrigues

'Depois do acidente, virei Vitória. Hoje eu sou Bahia', conta adolescente que perdeu a mãe


Era uma manhã de sol em 25 de novembro de 2007 quando Karen viu sua mãe, Midiã Andrade Santos, pela última vez. Ainda criança, com 5 anos, ela aproveitou o último dia de férias da mãe com um passeio na praia. Ao retornarem para casa, pediu para que a jovem, de 24 anos, ficasse em casa para que pudessem brincar. Torcedora apaixonada pelo Bahia, Midiã pediu desculpas à filha e foi à Fonte Nova. Ela nunca mais voltou.

A mãe de Karen é uma das sete vítimas que morreram no estádio naquele dia. Ela caiu de uma altura de aproximadamente 15 metros depois que um pedaço da arquibancada superior cedeu.

O tempo passou. A menina de 5 anos cresceu criada pela avó materna, Carmen. Hoje tem 15 e ainda carrega uma grande dor pela perda, mas, pela primeira vez, Karen resolveu falar sobre a mãe. Uma das motivações foi a morte do avô Elias, pai de Midiã, no dia 5 de junho, devido a um problema renal. “Todos os anos meu avô ficava com minha avó, chorava, falava disso, dava entrevista. Eu nunca quis. Já tentei, mas não consigo. Esse ano decidi que ficaria com ela e tentaria de novo. Acho que consegui”.

De fato, ela conseguiu. O único pedido da adolescente ao CORREIO foi para não gravar a entrevista em vídeo. “Lembro de tudo que aconteceu naquele dia. A gente foi na praia de manhã, ficamos juntas. Parecia uma despedida. Quando chegamos em casa, ela brincou comigo e disse que ia ao estádio. Eu pedi que ela não fosse, mas ela disse ‘não, Karen. É o último jogo do Bahia. Eu vou, mas eu volto’. Eu disse que tudo bem. Fiquei muito triste quando ela foi para o jogo. Eu chorei muito, implorei para ela não ir, mas ela foi. E ela nunca mais voltou”, conta, com os olhos marejados.

Quem olha para a menina tímida e magrinha pode pensar que ela é frágil. Mas foi com muita força que, no último dia 5 de novembro, faltando 20 dias para a tragédia completar uma década, a filha de Midiã tomou coragem e foi à Fonte Nova pela primeira vez. Ela sabia que não seria uma tarefa fácil.

“Eu nunca tinha ido na Fonte Nova. Sempre senti como se fosse um obstáculo, uma barreira na minha vida. Eu precisava ser forte e tentar superar isso. Quando entrei lá, lembrei na hora da minha mãe. Chorei muito, não consegui conter a emoção, mas aí pensei: ‘poxa, ela estava aqui, mas estava feliz’. Eu também tinha que estar feliz. Foi muito difícil, mas aos pouquinhos foi passando. Fiquei triste em uns momentos e feliz em outros. A torcida é o melhor. E eu gostei porque o Bahia ganhou. Foi muito importante passar por isso”, lembra Karen, com um sorriso no rosto, enquanto exibia vídeos da torcida tricolor no celular. Na companhia de familiares e do namorado, ela viu o Bahia ganhar da Ponte Preta por 2x0, gols de Mendoza e Edigar Junio.

Pela animação, seria fácil dizer que a garota herdou a paixão da mãe e que o sangue tricolor sempre correu naquelas veias. Mas a história não é bem assim. Como era muito nova quando Midiã morreu, Karen sentiu raiva do Bahia durante cinco anos e, por isso, decidiu torcer para o maior rival.

 
 
“Antes eu não era nada. Depois do acidente, virei Vitória. Hoje sou Bahia. Eu só era Vitória por raiva, não era uma coisa de coração. Quando fui entender que o Bahia não tinha culpa por nada daquilo, segui o time da minha mãe. Agora ela está orgulhosa”

Karen Andrade, 15 anos, foi rubro-negra dos 5 aos 10

 

Midiã e Karen tiveram pouco tempo juntas, mas foi suficiente para que dois ensinamentos da mãe guiem a adolescente. “Ela me ensinou a respeitar os mais velhos e sempre, apesar das dificuldades, sorrir. É o que ela fazia. Ela podia ter todas as dificuldades do mundo, mas tinha a felicidade estampada no rosto. É o que mais lembro dela. Minha mãe tinha um sorriso lindo. Ela era uma mulher muito linda”, diz, ajeitando os óculos para enxugar os olhos.

 
 

Raiva já não cabe na mochila

Apesar de ter aprendido a conviver com a dor da perda, Karen admite que o mês de novembro não é como os outros do calendário. “A gente toca a vida, mas é difícil. Quando novembro chega, começo a ficar triste, abatida. Até minha feição muda. Apesar de terem passado dez anos, acho que hoje é mais difícil do que logo quando aconteceu, porque eu era pequena. Hoje eu entendo melhor as coisas. Quando era pequena, eu entendia que ela era uma estrela e sempre ia me ver. Todo mundo falava que ela estava viajando, então eu tinha esperança de que ela ia voltar. Hoje eu entendo e sei que ela não vai mais voltar. É uma dor que carrego e que não tem como passar”, diz a jovem. Ainda assim, é da infância que vem a lembrança mais marcante. “O pior disso tudo era quando tinha festa da escola, porque era sempre minha avó quem ia. Todo mundo tinha mãe, menos eu”.

Karen leva uma vida “normal”. Ainda mora com a avó materna na Liberdade e frequenta a escola nos Dendezeiros. Na mochila, carrega dor e saudade; raiva não mais. “Algumas pessoas foram culpadas disso, eu sei, mas não tenho raiva. Ter raiva não traz ela de volta. Hoje em dia eu não sinto mais nada por essas pessoas”, afirma.

 

Coração de mãe não se engana

A frase popular é uma grande verdade na vida de Carmen Andrade, 56 anos. No dia 25 de novembro de 2007, o coração dela apertou. Sem fazer ideia do que aconteceria, tentou, de todas as formas, impedir que sua filha, Midiã, fosse à Fonte Nova. A jovem de 24 anos, no entanto, estava irredutível. Naquele dia, ela foi ao estádio e não voltou mais.

A ferida cicatrizou, mas as lembranças ainda estão vivas na memória da dona de casa, que narra com clareza tudo que aconteceu no dia da morte da filha.

“Midiã me disse na sexta-feira que ia para a Fonte Nova no domingo. Eu levava Karen, a filha dela, comigo para todo canto que eu ia, e nesse dia não levei. Eu disse para Midiã que não ficaria com a menina, porque ela não ia para a Fonte Nova. Ela insistiu, pediu para a irmã tomar conta. Karen também pediu para que ela não fosse, mas não adiantou. Aí ela foi e ficou por lá”, lembra. “Falar dela não me machuca. Doer, não dói mais. A ferida cicatrizou, mas a lembrança dela não tem como tirar. Até eu morrer, vai continuar. Tenho cinco filhos. É como se fossem meus cinco dedos. Um quebrou”, metaforiza.

Religiosa, Carmen acredita que as tentativas dela e da neta em impedir que Midiã fossem ao estádio eram um aviso. “Foi um aviso, com certeza. A gente sempre inventa desculpa para explicar a morte, mas foi um aviso de Karen. Não foi um dia comum. Eu levava a menina para cima e para baixo, e nesse dia eu não levei, não queria que Midiã fosse para a Fonte Nova e ela foi. Mas acredito que Deus sabe de todas as coisas. A gente que não sabe de nada”, conforma-se.

 
 

Outro filho não entrou por falta de ingresso

A família parecia sentir que Midiã não voltaria daquele jogo. Um dos irmãos da vítima, Maurício chegou a dizer para a avó materna que sentiu que algo de ruim aconteceria na Fonte Nova. “Naquele dia, meu filho disse para a minha mãe: ‘olhe, minha avó, nem que me dê ingresso de graça, eu não vou para esse jogo. Estou sentindo que vai acontecer alguma coisa’. Midiã não ia sempre, ela começou a ir nos últimos jogos”, revela Carmen.

Por pouco, ela não viveu o luto de dois filhos. Outro irmão de Midiã, Márcio Elias chegou a ir para a Fonte Nova, mas não conseguiu comprar ingresso. Ao saber da tragédia, Carmen pensou de imediato no primogênito, mas quando viu um casal de amigos à porta, sentiu: era Midiã.

“Eu sabia que meu filho mais velho ia. Quando cheguei em casa, falaram que teve um acidente na Fonte Nova, aí só pensei no meu filho, não pensei nela. Fui ligar a televisão para assistir, mas minha filha disse que não era para eu ver. Quando ela saiu, eu liguei a TV e passou o nome de todos os mortos, menos o de Midiã, porque a identidade dela ficou com um amigo. Meu cunhado chegou a vir aqui dizer para eu não me preocupar, disse que não era nenhum conhecido nosso, porque não tinha o nome dela. Quando um casal conhecido nosso chegou aqui na porta, eu olhei para eles e disse: ‘foi Midiã, não foi?’. E eles confirmaram. Eu nem soube da notícia por alguém, eu mesma que falei. Meu cunhado ficou desesperado. Aí pronto, acabou, desabou pra mim. Fui parar na emergência do hospital, com a pressão lá nas alturas. Tomei remédios para dormir, porque eu não conseguia mais dormir. Desenvolvi diabetes por causa desse negócio”, relembra, com uma foto da filha em mãos.

 

Apesar de demonstrar ser uma fortaleza, dona Carmen tem suas fragilidades. Uma delas é o último lugar onde a filha esteve. É só cogitar pisar na Fonte Nova que ela fica angustiada.

“Nunca na vida eu quero pisar ali, nem se tiver programação da igreja. Eu nunca levei Karen lá, mesmo ela pedindo. Não levei para ver o buraco, nem para o enterro da mãe. Eu quis que ela tivesse lembrança da mãe dela viva, feliz. Midiã era linda. A vida dela era sorrir. Antes eu sentia raiva disso tudo, procurava culpado. Hoje, não. Quem perdeu a vida foi minha filha, ninguém vai pagar nada, nem apagar isso”, desabafa.

Tanta força, tem um motivo: a fé. Em Deus e em um reencontro com a filha. “Eu creio que ela está lá no céu, me aguardando. Vou reencontrar com ela, com certeza. Minha filha...”.